BRASÍLIA - A mudança proposta pelo governo Lula na forma de registro dos precatórios (dívidas judiciais da União) na contabilidade pública pode acabar em divergência com o Banco Central.
O BC é o responsável por calcular o resultado das contas públicas tendo como referência regras definidas pelo manual do Fundo Monetário Internacional (FMI), que visa a harmonizar as estatísticas internacionais e permitir que a situação fiscal de cada país possa ser comparada com seus pares.
O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, evitou comentar se o BC também vai fazer a mudança da contabilidade, caso o Supremo Tribunal Federal (STF) declare inconstitucional a emenda dos precatórios (também conhecida como PEC do Calote), aprovada em 2021, que fixou um limite anual para o pagamento dessas despesas - “rolando” o valor que extrapola esse teto.
Ao Estadão, Ceron descartou a possibilidade de o Ministério da Fazenda fazer consulta ao FMI. Pela proposta, o governo estabelece uma segregação (diferenciação) do estoque de precatórios entre a parcela que deve ser paga como despesa primária (valor do principal da causa) e aquela que deve ser paga como despesa financeira (os encargos financeiros de juros incidentes sobre o valor principal da causa).
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Isso significa que o principal da dívida, pago como despesa primária, será contabilizado no resultado primário do governo (saldo entre receitas e despesas, sem contar os juros da dívida). Já os juros, que serão separados e tratados como despesa financeira, não serão contabilizados no resultado primário.
O FMI considera os gastos com o pagamento de precatórios uma despesa primária, contabilizada no resultado primário, e é dessa forma que o BC registra.
Ceron minimizou o debate sobre o manual do FMI e disse que o tratamento contábil proposto está em linha com o arcabouço normativo fiscal brasileiro e com o defendido por especialistas em finanças públicas.
O secretário disse que mais importante do que discutir sobre o manual do FMI é mostrar que, hoje, a contabilidade da dívida pública “esconde” o estoque de precatórios que não é pago e vai sendo empurrado para frente - o que, na prática, representa um endividamento.
“O que acontece hoje é que nem o BC reclama que a dívida brasileira está subestimada porque não conta com precatórios. Com esse mecanismo, a gente limpa as estatísticas fiscais”, rebateu Ceron ao comentar os críticos. “Do ponto de vista do arcabouço jurídico brasileiro, os juros têm natureza financeira. É difícil alguém negar isso”, acrescentou.
Para ele, o Ministério da Fazenda está seguro sobre essa interpretação e não tem de consultar o FMI para propor a mudança ao STF.
“Para nós, para além do fiscal, os efeitos econômicos e reputacionais são o que importa para sair dessa”, disse Ceron. “Ainda que fosse para reconhecer tudo isso como dívida e pagar tudo como despesa financeira, ainda que o manual do FMI dissesse que isso não é o mais adequado para o registro, o ganho econômico e reputacional para o País valeria muito a pena, mais do que se algum especialista vai gostar ou não de um registro como esse.”
Em caso de decisão favorável do STF, o plano da equipe econômica é apresentar um pedido de abertura de crédito extraordinário ao Congresso para pagar todo o valor atrasado, avaliado em R$ 95 bilhões — sendo R$ 65 bilhões de precatórios acumulados e não pagos, mais a previsão para 2024.
O pagamento, viabilizado pela abertura de crédito extraordinário (fora do teto de despesas), seria deduzido dos valores orçamentários já previstos na proposta de Orçamento de 2024, e ficaria de fora dos limites existentes nas regras fiscais.
A solução apresentada pelo governo Lula ainda depende de um série de fatores. Em primeiro lugar, o STF precisa decidir pela inconstitucionalidade da PEC. E, depois, o Congresso precisa aprovar o crédito extraordinário com valor elevado – valor esse que ficará fora do limite de gastos da nova regra fiscal.