Mudança em precatórios é ‘contabilidade criativa’? O que dizem economistas sobre plano do governo


Pedido da União ao STF sobre pagamento de despesas judiciais divide opiniões de especialistas em contas públicas

Por Mariana Carneiro e Adriana Fernandes
Atualização:

BRASÍLIA - A proposta do governo Lula para mudar de forma permanente a forma de contabilizar as despesas com o pagamento de precatórios (sentenças judiciais da União), encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, divide opiniões de especialistas em contas públicas.

Os críticos apontam risco da volta de contabilidade criativa para melhorar o resultado fiscal das contas públicas com a separação da parcela dos juros e do principal dos precatórios para a classificação dessas despesas.

“Temos assistido a uma série de medidas similares que, quando avaliadas em conjunto, geram o temor de que estamos caminhando para um campo de ilusão contábil-fiscal perigoso”, avalia o economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper.

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“É uma contabilidade criativa que não faz bem ao governo”, afirma o ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, que foi um crítico feroz da PEC dos Precatórios, que estabeleceu um limite anual para o pagamento dessas despesas e “rolou” a fatura excedente para o futuro.

No grupo dos apoiadores, o pesquisador do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), José Roberto Afonso, diz que não há maquiagem nas contas. Segundo ele, a “pedalada” feita no governo Bolsonaro sai mais cara do que simplesmente o Tesouro emitir um papel no dia em que a Justiça mandou pagar o precatório.

Apesar das divergências, porém, os especialistas veem em comum a necessidade de resolver a bola de neve que a PEC dos Precatórios gerou para as contas do governo.

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José Roberto Afonso, formulador da LRF, pesquisador do IDP

Para José Roberto Afonso, proposta não configura 'maquiagem' Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

“Não existe maquiagem. Se há, é na situação atual, porque há uma dívida pública, líquida e certa, inclusive porque a Justiça já garantiu que é devido. Essa dívida está contabilizada nos balanços dos governos, sempre esteve. Se fosse uma empresa, estaria no passivo.

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O governo deve, não pode negar, mas combinou que não pagaria. Essa foi a PEC do Paulo Guedes, e o teto de gasto para precatório serviu para pedalar para o futuro, para 2027, essa dívida. Não se pagou quando a Justiça mandou e a mesma PEC que pedalou disse que passará a incidir Selic desde a data da pedalada. Ou seja: quando se chegar em 2027, mesmo que fosse pago o precatório, a menor parte seria o gasto primário original e a maior parte do valor composto por juros e encargos.

Essa correção judicial e constitucional pela Selic tem tido taxas muito maiores do que o custo médio da dívida pública federal. Ou seja: a pedalada sai mais cara do que simplesmente ter emitido papel no dia em que a Justiça mandou pagar o precatório. Defendo que a série histórica seja corrigida, de forma retroativa.

Desconheço que o manual do FMI (Fundo Monetário Internacional) determine ignorar dívidas contabilizadas, como é o caso dos precatórios e dos restos a pagar. Não conheço um país do G-20 em que a estatística fiscal seja calculada pelo seu Banco Central. A exemplo de Lei Kandir, o STF é chamado a decidir sobre o que os outros poderes não resolvem.”

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Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda

Para Maílson da Nóbrega, mudança é um 'tropeço' do governo Foto: Iara Morselli

“É um equívoco, um erro, porque a despesa financeira derivada do juro sobre o estoque não pago não pode ser separada do principal. É um tropeço que o governo está dando. Isso vai ser mal recebido pelos mercados. O governo tem que consertar porque não ganha nada com isso.

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Não tem como disfarçar esse gasto como despesa financeira, mesmo que considere só os juros. O próprio governo pode resolver isso. Não é função do STF entrar nessas questões de classificação de gasto. As normas de contabilidade do BC não autorizam essa interpretação e nem as normas do FMI. É uma contabilidade criativa que não faz bem ao governo.

O governo perde a oportunidade de realizar uma operação perfeita, de considerar todos os encargos e principal, como gasto primário. Precatório é sempre considerado despesa por qualquer manual de contabilidade pública. A solução é rever essa proposta. Não pode ter tratamento diferente: principal e juros.

É razoável que essa despesa principal e juros não seja considerada no limite de gasto do novo arcabouço fiscal. Tem que excluir. Tem que ficar fora do teto para sempre, porque é uma despesa que não tem controle. É uma decisão correta buscar corrigir um erro grave do governo Bolsonaro. A PEC foi uma manobra para abrir espaço no Orçamento e impulsionar gastos que favorecessem a candidatura do presidente Jair Bolsonaro.”

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Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena; ex-secretário de Fazenda de São Paulo

Governo propõe uma solução correta para o tema, diz Salto Foto: Dida Sampaio/Estadão

“O governo sugere, agora, uma solução correta para o tema: pagar as despesas devidas, derivadas de decisão judicial, separando o que é despesa primária do que é gasto financeiro. A saber, os precatórios são corrigidos pela Selic.

A expectativa é que o Supremo acate a tese e dê fim a essa novela dos precatórios, conferindo previsibilidade. Pode abrir espaço em relação a um cenário de referência em que todo o pagamento - do juro e do principal - continuasse a ser tratado como despesa primária.

Neste caso, minha solução e sugestão é que se adote uma meta fiscal mais apertada na exata proporção dessa eventual folga, para evitar gastos adicionais. Cabe destacar que o pagamento das despesas financeiras vai sensibilizar a dívida. Não existe almoço de graça. É uma resposta retumbante à PEC dos Precatórios, que foi uma pedalada constitucionalizada. Resolve-se o nó górdio (dificuldade que parece não ter solução) trazido pela PEC dos Precatórios.”

Manoel Pires, coordenador do Observatório fiscal do Ibre/FGV; ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

É difícil de entender os juros do precatório como despesa financeira, diz Pires  Foto: Dida Sampaio/Estadão

“Eu acho louvável o governo tentar resolver e pagar os precatórios postergados. Isso é positivo. Mas tenho dificuldade de entender os juros do precatório como despesa financeira porque decorre de uma despesa primária. Não há uma operação de crédito envolvida nisso.

Existem vários operações que envolvem juros e que são classificados como primária em função da sua origem. Por exemplo: quando uma empresa atrasa o imposto, ela paga juros e isso é registrado como receita primária. Se a ideia for pagar esse ano, pode ser conveniente para o governo em função das questões relacionadas à necessidade de incorporar novos gastos nos mínimos constitucionais de saúde e educação, pode abrir espaço para completar no caso do pagamento extraordinário.

Já uma eventual reclassificação da parte dos precatórios como despesa financeira pode abrir espaço para o governo no novo arcabouço fiscal, para alocar outras despesas - no caso do ano que vem, inclusive as despesas com Previdência Social, que parecem estar subestimadas. Ainda temos que compreender todas as repercussões fiscais dessa intenção.”

Gabriel Barros, sócio e economista-chefe da Ryo Asset; ex-diretor da IFI

Mudança cria cria uma lógica que não tem respaldo jurídico e contábil, segundo Barros Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

“É negativo; cria uma nova lógica que não tem respaldo jurídico e contábil para ser feito. Mesmo com essa extravagante proposta de mudança contábil, a meta de déficit zero continua bastante desafiadora. De outra forma, ajuda a reduzir o gap (lacuna) para atingir a meta, mas ainda assim não resolve o problema de ela não ser crível.

É prática contábil heterodoxa. Dois pesos e duas medidas. A Lei 4.320 (de normas para elaboração dos orçamentos) não autoriza esse tipo de tratamento diferenciado. É uma interpretação nova e diferente do que se faz nos últimos 30 anos em matéria de contabilidade federal.

Além disso, a prática resulta na abertura de espaço fiscal para que se gaste mais nos próximos anos. Ou seja: autoriza uma política fiscal ainda mais expansionista que a elevação do pé direito do teto já entregou, aprovado via PEC da Transição e que subiu o gasto em 2% do Produto Interno Bruto (PIB).”

Marcos Mendes, pesquisador do Insper

Proposta pode indicar uma rota preocupante, diz Mendes Foto: Amanda Perobelli/Estadão

“A iniciativa do governo é meritória, uma vez que interrompe uma moratória unilateral que afeta a credibilidade do direito de propriedade e a segurança jurídica. O governo propõe que o pagamento do saldo acumulado e não-pago fique isento do limite de despesas fixados pelo ‘novo arcabouço fiscal’ e também não afete a meta de resultado primário do exercício em que os pagamentos de atrasados forem feitos.

Deve ficar claro para a sociedade que o déficit primário maior se dará pelo reconhecimento de uma obrigação de pagar que já existia e estava fora das estatísticas. Mas não há qualquer princípio legal ou de práticas contábeis que justifique a providência de separar o principal dos juros de precatórios, dando tratamento de despesa primária a um e de despesa financeira a outro.

O argumento de que precatório atrasado é dívida - e, portanto, despesa financeira - passa a constituir incentivo para que, no futuro, se atrase o pagamento de precatórios, apenas para pagá-los como despesa financeira. O que preocupa nesta proposta infundada é o fato de ela ser mais uma providência de prática fiscal ou contábil voltada a minorar ou ocultar o real tamanho do déficit público.

Temos assistido a uma série de medidas similares que, quando avaliadas em conjunto, geram o temor de que estamos caminhando para um campo de ilusão contábil-fiscal perigoso. É temerário que se tente estabelecer em lei, ou até na Constituição, princípios que deveriam estar nos manuais de contabilidade, atendendo às boas práticas internacionais.

Se for dado o passo adicional, de tentar enquadrar o Banco Central, forçando-o a seguir a regra aqui proposta, estaremos em rota preocupante.”

BRASÍLIA - A proposta do governo Lula para mudar de forma permanente a forma de contabilizar as despesas com o pagamento de precatórios (sentenças judiciais da União), encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, divide opiniões de especialistas em contas públicas.

Os críticos apontam risco da volta de contabilidade criativa para melhorar o resultado fiscal das contas públicas com a separação da parcela dos juros e do principal dos precatórios para a classificação dessas despesas.

“Temos assistido a uma série de medidas similares que, quando avaliadas em conjunto, geram o temor de que estamos caminhando para um campo de ilusão contábil-fiscal perigoso”, avalia o economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper.

“É uma contabilidade criativa que não faz bem ao governo”, afirma o ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, que foi um crítico feroz da PEC dos Precatórios, que estabeleceu um limite anual para o pagamento dessas despesas e “rolou” a fatura excedente para o futuro.

No grupo dos apoiadores, o pesquisador do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), José Roberto Afonso, diz que não há maquiagem nas contas. Segundo ele, a “pedalada” feita no governo Bolsonaro sai mais cara do que simplesmente o Tesouro emitir um papel no dia em que a Justiça mandou pagar o precatório.

Apesar das divergências, porém, os especialistas veem em comum a necessidade de resolver a bola de neve que a PEC dos Precatórios gerou para as contas do governo.

José Roberto Afonso, formulador da LRF, pesquisador do IDP

Para José Roberto Afonso, proposta não configura 'maquiagem' Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

“Não existe maquiagem. Se há, é na situação atual, porque há uma dívida pública, líquida e certa, inclusive porque a Justiça já garantiu que é devido. Essa dívida está contabilizada nos balanços dos governos, sempre esteve. Se fosse uma empresa, estaria no passivo.

O governo deve, não pode negar, mas combinou que não pagaria. Essa foi a PEC do Paulo Guedes, e o teto de gasto para precatório serviu para pedalar para o futuro, para 2027, essa dívida. Não se pagou quando a Justiça mandou e a mesma PEC que pedalou disse que passará a incidir Selic desde a data da pedalada. Ou seja: quando se chegar em 2027, mesmo que fosse pago o precatório, a menor parte seria o gasto primário original e a maior parte do valor composto por juros e encargos.

Essa correção judicial e constitucional pela Selic tem tido taxas muito maiores do que o custo médio da dívida pública federal. Ou seja: a pedalada sai mais cara do que simplesmente ter emitido papel no dia em que a Justiça mandou pagar o precatório. Defendo que a série histórica seja corrigida, de forma retroativa.

Desconheço que o manual do FMI (Fundo Monetário Internacional) determine ignorar dívidas contabilizadas, como é o caso dos precatórios e dos restos a pagar. Não conheço um país do G-20 em que a estatística fiscal seja calculada pelo seu Banco Central. A exemplo de Lei Kandir, o STF é chamado a decidir sobre o que os outros poderes não resolvem.”

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda

Para Maílson da Nóbrega, mudança é um 'tropeço' do governo Foto: Iara Morselli

“É um equívoco, um erro, porque a despesa financeira derivada do juro sobre o estoque não pago não pode ser separada do principal. É um tropeço que o governo está dando. Isso vai ser mal recebido pelos mercados. O governo tem que consertar porque não ganha nada com isso.

Não tem como disfarçar esse gasto como despesa financeira, mesmo que considere só os juros. O próprio governo pode resolver isso. Não é função do STF entrar nessas questões de classificação de gasto. As normas de contabilidade do BC não autorizam essa interpretação e nem as normas do FMI. É uma contabilidade criativa que não faz bem ao governo.

O governo perde a oportunidade de realizar uma operação perfeita, de considerar todos os encargos e principal, como gasto primário. Precatório é sempre considerado despesa por qualquer manual de contabilidade pública. A solução é rever essa proposta. Não pode ter tratamento diferente: principal e juros.

É razoável que essa despesa principal e juros não seja considerada no limite de gasto do novo arcabouço fiscal. Tem que excluir. Tem que ficar fora do teto para sempre, porque é uma despesa que não tem controle. É uma decisão correta buscar corrigir um erro grave do governo Bolsonaro. A PEC foi uma manobra para abrir espaço no Orçamento e impulsionar gastos que favorecessem a candidatura do presidente Jair Bolsonaro.”

Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena; ex-secretário de Fazenda de São Paulo

Governo propõe uma solução correta para o tema, diz Salto Foto: Dida Sampaio/Estadão

“O governo sugere, agora, uma solução correta para o tema: pagar as despesas devidas, derivadas de decisão judicial, separando o que é despesa primária do que é gasto financeiro. A saber, os precatórios são corrigidos pela Selic.

A expectativa é que o Supremo acate a tese e dê fim a essa novela dos precatórios, conferindo previsibilidade. Pode abrir espaço em relação a um cenário de referência em que todo o pagamento - do juro e do principal - continuasse a ser tratado como despesa primária.

Neste caso, minha solução e sugestão é que se adote uma meta fiscal mais apertada na exata proporção dessa eventual folga, para evitar gastos adicionais. Cabe destacar que o pagamento das despesas financeiras vai sensibilizar a dívida. Não existe almoço de graça. É uma resposta retumbante à PEC dos Precatórios, que foi uma pedalada constitucionalizada. Resolve-se o nó górdio (dificuldade que parece não ter solução) trazido pela PEC dos Precatórios.”

Manoel Pires, coordenador do Observatório fiscal do Ibre/FGV; ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

É difícil de entender os juros do precatório como despesa financeira, diz Pires  Foto: Dida Sampaio/Estadão

“Eu acho louvável o governo tentar resolver e pagar os precatórios postergados. Isso é positivo. Mas tenho dificuldade de entender os juros do precatório como despesa financeira porque decorre de uma despesa primária. Não há uma operação de crédito envolvida nisso.

Existem vários operações que envolvem juros e que são classificados como primária em função da sua origem. Por exemplo: quando uma empresa atrasa o imposto, ela paga juros e isso é registrado como receita primária. Se a ideia for pagar esse ano, pode ser conveniente para o governo em função das questões relacionadas à necessidade de incorporar novos gastos nos mínimos constitucionais de saúde e educação, pode abrir espaço para completar no caso do pagamento extraordinário.

Já uma eventual reclassificação da parte dos precatórios como despesa financeira pode abrir espaço para o governo no novo arcabouço fiscal, para alocar outras despesas - no caso do ano que vem, inclusive as despesas com Previdência Social, que parecem estar subestimadas. Ainda temos que compreender todas as repercussões fiscais dessa intenção.”

Gabriel Barros, sócio e economista-chefe da Ryo Asset; ex-diretor da IFI

Mudança cria cria uma lógica que não tem respaldo jurídico e contábil, segundo Barros Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

“É negativo; cria uma nova lógica que não tem respaldo jurídico e contábil para ser feito. Mesmo com essa extravagante proposta de mudança contábil, a meta de déficit zero continua bastante desafiadora. De outra forma, ajuda a reduzir o gap (lacuna) para atingir a meta, mas ainda assim não resolve o problema de ela não ser crível.

É prática contábil heterodoxa. Dois pesos e duas medidas. A Lei 4.320 (de normas para elaboração dos orçamentos) não autoriza esse tipo de tratamento diferenciado. É uma interpretação nova e diferente do que se faz nos últimos 30 anos em matéria de contabilidade federal.

Além disso, a prática resulta na abertura de espaço fiscal para que se gaste mais nos próximos anos. Ou seja: autoriza uma política fiscal ainda mais expansionista que a elevação do pé direito do teto já entregou, aprovado via PEC da Transição e que subiu o gasto em 2% do Produto Interno Bruto (PIB).”

Marcos Mendes, pesquisador do Insper

Proposta pode indicar uma rota preocupante, diz Mendes Foto: Amanda Perobelli/Estadão

“A iniciativa do governo é meritória, uma vez que interrompe uma moratória unilateral que afeta a credibilidade do direito de propriedade e a segurança jurídica. O governo propõe que o pagamento do saldo acumulado e não-pago fique isento do limite de despesas fixados pelo ‘novo arcabouço fiscal’ e também não afete a meta de resultado primário do exercício em que os pagamentos de atrasados forem feitos.

Deve ficar claro para a sociedade que o déficit primário maior se dará pelo reconhecimento de uma obrigação de pagar que já existia e estava fora das estatísticas. Mas não há qualquer princípio legal ou de práticas contábeis que justifique a providência de separar o principal dos juros de precatórios, dando tratamento de despesa primária a um e de despesa financeira a outro.

O argumento de que precatório atrasado é dívida - e, portanto, despesa financeira - passa a constituir incentivo para que, no futuro, se atrase o pagamento de precatórios, apenas para pagá-los como despesa financeira. O que preocupa nesta proposta infundada é o fato de ela ser mais uma providência de prática fiscal ou contábil voltada a minorar ou ocultar o real tamanho do déficit público.

Temos assistido a uma série de medidas similares que, quando avaliadas em conjunto, geram o temor de que estamos caminhando para um campo de ilusão contábil-fiscal perigoso. É temerário que se tente estabelecer em lei, ou até na Constituição, princípios que deveriam estar nos manuais de contabilidade, atendendo às boas práticas internacionais.

Se for dado o passo adicional, de tentar enquadrar o Banco Central, forçando-o a seguir a regra aqui proposta, estaremos em rota preocupante.”

BRASÍLIA - A proposta do governo Lula para mudar de forma permanente a forma de contabilizar as despesas com o pagamento de precatórios (sentenças judiciais da União), encaminhada ao Supremo Tribunal Federal, divide opiniões de especialistas em contas públicas.

Os críticos apontam risco da volta de contabilidade criativa para melhorar o resultado fiscal das contas públicas com a separação da parcela dos juros e do principal dos precatórios para a classificação dessas despesas.

“Temos assistido a uma série de medidas similares que, quando avaliadas em conjunto, geram o temor de que estamos caminhando para um campo de ilusão contábil-fiscal perigoso”, avalia o economista Marcos Mendes, pesquisador do Insper.

“É uma contabilidade criativa que não faz bem ao governo”, afirma o ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, que foi um crítico feroz da PEC dos Precatórios, que estabeleceu um limite anual para o pagamento dessas despesas e “rolou” a fatura excedente para o futuro.

No grupo dos apoiadores, o pesquisador do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), José Roberto Afonso, diz que não há maquiagem nas contas. Segundo ele, a “pedalada” feita no governo Bolsonaro sai mais cara do que simplesmente o Tesouro emitir um papel no dia em que a Justiça mandou pagar o precatório.

Apesar das divergências, porém, os especialistas veem em comum a necessidade de resolver a bola de neve que a PEC dos Precatórios gerou para as contas do governo.

José Roberto Afonso, formulador da LRF, pesquisador do IDP

Para José Roberto Afonso, proposta não configura 'maquiagem' Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

“Não existe maquiagem. Se há, é na situação atual, porque há uma dívida pública, líquida e certa, inclusive porque a Justiça já garantiu que é devido. Essa dívida está contabilizada nos balanços dos governos, sempre esteve. Se fosse uma empresa, estaria no passivo.

O governo deve, não pode negar, mas combinou que não pagaria. Essa foi a PEC do Paulo Guedes, e o teto de gasto para precatório serviu para pedalar para o futuro, para 2027, essa dívida. Não se pagou quando a Justiça mandou e a mesma PEC que pedalou disse que passará a incidir Selic desde a data da pedalada. Ou seja: quando se chegar em 2027, mesmo que fosse pago o precatório, a menor parte seria o gasto primário original e a maior parte do valor composto por juros e encargos.

Essa correção judicial e constitucional pela Selic tem tido taxas muito maiores do que o custo médio da dívida pública federal. Ou seja: a pedalada sai mais cara do que simplesmente ter emitido papel no dia em que a Justiça mandou pagar o precatório. Defendo que a série histórica seja corrigida, de forma retroativa.

Desconheço que o manual do FMI (Fundo Monetário Internacional) determine ignorar dívidas contabilizadas, como é o caso dos precatórios e dos restos a pagar. Não conheço um país do G-20 em que a estatística fiscal seja calculada pelo seu Banco Central. A exemplo de Lei Kandir, o STF é chamado a decidir sobre o que os outros poderes não resolvem.”

Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda

Para Maílson da Nóbrega, mudança é um 'tropeço' do governo Foto: Iara Morselli

“É um equívoco, um erro, porque a despesa financeira derivada do juro sobre o estoque não pago não pode ser separada do principal. É um tropeço que o governo está dando. Isso vai ser mal recebido pelos mercados. O governo tem que consertar porque não ganha nada com isso.

Não tem como disfarçar esse gasto como despesa financeira, mesmo que considere só os juros. O próprio governo pode resolver isso. Não é função do STF entrar nessas questões de classificação de gasto. As normas de contabilidade do BC não autorizam essa interpretação e nem as normas do FMI. É uma contabilidade criativa que não faz bem ao governo.

O governo perde a oportunidade de realizar uma operação perfeita, de considerar todos os encargos e principal, como gasto primário. Precatório é sempre considerado despesa por qualquer manual de contabilidade pública. A solução é rever essa proposta. Não pode ter tratamento diferente: principal e juros.

É razoável que essa despesa principal e juros não seja considerada no limite de gasto do novo arcabouço fiscal. Tem que excluir. Tem que ficar fora do teto para sempre, porque é uma despesa que não tem controle. É uma decisão correta buscar corrigir um erro grave do governo Bolsonaro. A PEC foi uma manobra para abrir espaço no Orçamento e impulsionar gastos que favorecessem a candidatura do presidente Jair Bolsonaro.”

Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena; ex-secretário de Fazenda de São Paulo

Governo propõe uma solução correta para o tema, diz Salto Foto: Dida Sampaio/Estadão

“O governo sugere, agora, uma solução correta para o tema: pagar as despesas devidas, derivadas de decisão judicial, separando o que é despesa primária do que é gasto financeiro. A saber, os precatórios são corrigidos pela Selic.

A expectativa é que o Supremo acate a tese e dê fim a essa novela dos precatórios, conferindo previsibilidade. Pode abrir espaço em relação a um cenário de referência em que todo o pagamento - do juro e do principal - continuasse a ser tratado como despesa primária.

Neste caso, minha solução e sugestão é que se adote uma meta fiscal mais apertada na exata proporção dessa eventual folga, para evitar gastos adicionais. Cabe destacar que o pagamento das despesas financeiras vai sensibilizar a dívida. Não existe almoço de graça. É uma resposta retumbante à PEC dos Precatórios, que foi uma pedalada constitucionalizada. Resolve-se o nó górdio (dificuldade que parece não ter solução) trazido pela PEC dos Precatórios.”

Manoel Pires, coordenador do Observatório fiscal do Ibre/FGV; ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

É difícil de entender os juros do precatório como despesa financeira, diz Pires  Foto: Dida Sampaio/Estadão

“Eu acho louvável o governo tentar resolver e pagar os precatórios postergados. Isso é positivo. Mas tenho dificuldade de entender os juros do precatório como despesa financeira porque decorre de uma despesa primária. Não há uma operação de crédito envolvida nisso.

Existem vários operações que envolvem juros e que são classificados como primária em função da sua origem. Por exemplo: quando uma empresa atrasa o imposto, ela paga juros e isso é registrado como receita primária. Se a ideia for pagar esse ano, pode ser conveniente para o governo em função das questões relacionadas à necessidade de incorporar novos gastos nos mínimos constitucionais de saúde e educação, pode abrir espaço para completar no caso do pagamento extraordinário.

Já uma eventual reclassificação da parte dos precatórios como despesa financeira pode abrir espaço para o governo no novo arcabouço fiscal, para alocar outras despesas - no caso do ano que vem, inclusive as despesas com Previdência Social, que parecem estar subestimadas. Ainda temos que compreender todas as repercussões fiscais dessa intenção.”

Gabriel Barros, sócio e economista-chefe da Ryo Asset; ex-diretor da IFI

Mudança cria cria uma lógica que não tem respaldo jurídico e contábil, segundo Barros Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

“É negativo; cria uma nova lógica que não tem respaldo jurídico e contábil para ser feito. Mesmo com essa extravagante proposta de mudança contábil, a meta de déficit zero continua bastante desafiadora. De outra forma, ajuda a reduzir o gap (lacuna) para atingir a meta, mas ainda assim não resolve o problema de ela não ser crível.

É prática contábil heterodoxa. Dois pesos e duas medidas. A Lei 4.320 (de normas para elaboração dos orçamentos) não autoriza esse tipo de tratamento diferenciado. É uma interpretação nova e diferente do que se faz nos últimos 30 anos em matéria de contabilidade federal.

Além disso, a prática resulta na abertura de espaço fiscal para que se gaste mais nos próximos anos. Ou seja: autoriza uma política fiscal ainda mais expansionista que a elevação do pé direito do teto já entregou, aprovado via PEC da Transição e que subiu o gasto em 2% do Produto Interno Bruto (PIB).”

Marcos Mendes, pesquisador do Insper

Proposta pode indicar uma rota preocupante, diz Mendes Foto: Amanda Perobelli/Estadão

“A iniciativa do governo é meritória, uma vez que interrompe uma moratória unilateral que afeta a credibilidade do direito de propriedade e a segurança jurídica. O governo propõe que o pagamento do saldo acumulado e não-pago fique isento do limite de despesas fixados pelo ‘novo arcabouço fiscal’ e também não afete a meta de resultado primário do exercício em que os pagamentos de atrasados forem feitos.

Deve ficar claro para a sociedade que o déficit primário maior se dará pelo reconhecimento de uma obrigação de pagar que já existia e estava fora das estatísticas. Mas não há qualquer princípio legal ou de práticas contábeis que justifique a providência de separar o principal dos juros de precatórios, dando tratamento de despesa primária a um e de despesa financeira a outro.

O argumento de que precatório atrasado é dívida - e, portanto, despesa financeira - passa a constituir incentivo para que, no futuro, se atrase o pagamento de precatórios, apenas para pagá-los como despesa financeira. O que preocupa nesta proposta infundada é o fato de ela ser mais uma providência de prática fiscal ou contábil voltada a minorar ou ocultar o real tamanho do déficit público.

Temos assistido a uma série de medidas similares que, quando avaliadas em conjunto, geram o temor de que estamos caminhando para um campo de ilusão contábil-fiscal perigoso. É temerário que se tente estabelecer em lei, ou até na Constituição, princípios que deveriam estar nos manuais de contabilidade, atendendo às boas práticas internacionais.

Se for dado o passo adicional, de tentar enquadrar o Banco Central, forçando-o a seguir a regra aqui proposta, estaremos em rota preocupante.”

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