BRASÍLIA - O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, rebate as críticas de que a proposta de mudança na classificação dos precatórios seja contabilidade criativa e possa abrir espaço para novos gastos no Orçamento. Em entrevista ao Estadão, ele afirma que a discussão “não impacta um real” na meta de 2024 - de déficit zero nas contas públicas - e, nos seus cálculos, vai gerar aumento de despesas em 2025 e 2026, e não redução.
“Eu sei que, às vezes, o pessoal fica meio triste que a gente não está fazendo nenhuma picaretagem; mas o pessoal fica procurando esse tipo de coisa. ‘Ah não, mas qual é a pegadinha?’ Não tem pegadinha”, afirma o secretário, que passou a terça-feira respondendo a questionamentos de investidores sobre o tema.
Na segunda-feira, o governo recorreu ao Supremo Tribunal Federal para rever o pagamento de precatórios, alterado pela chamada “PEC do Calote”, aprovada em 2021, que fixou um teto anual para essas despesas, “rolando” o excedente para os próximos. Com isso, a equipe econômica espera quitar cerca de R$ 95 bilhões de fatura acumulada, o que seria feito por meio de crédito extraordinário, fora do limite das despesas do novo arcabouço.
Além disso, o governo planeja alterar definitivamente como esses pagamentos são computados na contabilidade federal - e é aqui que está a principal crítica e ponto de dúvida dos especialistas em contas públicas.
Na nova fórmula, o valor principal da dívida será tratado como despesa primária – ou seja, contabilizado no resultado primário (saldo entre receitas e despesas, sem contar os juros da dívida). Já o que for referente ao pagamento de juros será separado e tratado como despesa financeira, sem ser contabilizado no resultado primário e, consequentemente, no limite de gastos.
“Pode perguntar para qualquer especialista: considerar juros de precatório como despesa financeira, do ponto de vista contábil, é adequado. Pode-se falar que há uma divergência em relação ao manual do FMI (Fundo Monetário Internacional). Mas o manual do FMI não se impõe sobre o ordenamento brasileiro”, afirma o secretário.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
A mudança nos precatórios foi feita para ajudar o ministro Haddad a cumprir a meta de zerar o déficit em 2024?
Não tem nada a ver com isso. A nota técnica (da AGU) é pública: não mexe com o (resultado) primário (saldo entre receitas e despesas, sem contar os juros da dívida). Se alguém falar isso, é porque não sabe nem interpretar texto. Está escrito com todas as letras como vai ser feito. É conta de somar, subtrair e interpretação de texto básica. Não tem nenhum pedido de alteração de meta ou de excepcionalizar (retirar do teto) a conta de precatório. Não tem um real de diferença em termos de espaço fiscal para o ano que vem. O pedido é muito claro: abertura de crédito extraordinário deduzido o montante já previsto na proposta orçamentária de 2024 (R$ 66,4 bilhões com precatórios).
Mas como parte dos gastos - no caso, os juros dos precatórios - será computada como despesa financeira, sem contabilizar no resultado primário, isso não melhora o resultado fiscal do governo?
O governo vai pagar, de precatórios, R$ 66,4 bilhões no que vem; R$ 69 bilhões em 2025 e R$ 72 bilhões em 2026. Isso está dado. O que vai acontecer se o STF aprovar? Em 2024, paga os mesmos R$ 66,4 bilhões. Em 2025, a gente tem de encaixar tudo no arcabouço. Nas nossas previsões, mesmo com a segregação (separação) de juros, classificando como despesa financeira, deve ter uma pressão de gastos de R$ 2 bilhões, R$ 3 bilhões a mais. Então, é o contrário: estou colocando um pouquinho mais de carga no fiscal em 2025 e 2026 em relação a não fazer nada. Estamos criando pressão fiscal com a solução, mas é possível acomodar.
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E por que o governo adotou essa estratégia?
Porque é melhor para o País. Estamos em moratória parcial. Continuar com ela é muito ruim em termos econômicos. Essa despesa está oculta. Vamos colocar na luz do sol e pagar tudo em dia.
E a meta fiscal, fica como?
Não tem excepcionalização para a meta. Vai ser computado normalmente, só que eventual pagamento desse montante não significará descumprimento da meta para fins de punição. Dos R$ 95 bilhões de crédito extraordinário, algo em torno de 35% do estoque são juros. Então, cerca de R$ 60 bilhões vão ficar como (despesa de) primário. Esse valor encaixaria na meta prevista para este ano (a meta autoriza um déficit de até R$ 216,4 bilhões, sendo que a estimativa atual para o rombo é de R$ 141,4 bilhões. Ou seja, há uma ‘folga’ de R$ 75 bilhões). Não sabemos se o STF vai julgar neste ou no próximo ano. Em 2024, a meta está apertada.
Se tiver de pagar R$ 95 bilhões de crédito extraordinário em 2024, a meta fiscal de déficit zero não será cumprida. Por isso é melhor fazer neste ano?
Este ano é mais adequado para fazer isso, porque tem espaço na meta fiscal. E é um primeiro ano (sob o novo arcabouço fiscal), de arrumação mesmo, de algo que foi feito no governo anterior; já arruma tudo isso. Resolve e segue a regra daqui para a frente sem formar estoque e pagando tudo em dia. Não excluímos nada da meta. Se começar a excluir, cria precedentes. Afinal, se tirar precatórios, por que não excluir outras coisas?
Por que o governo não optou apenas por pagar o estoque fora do limite de gastos e depois seguir com as regras já vigentes? Se não é para melhorar o resultado primário, qual o objetivo?
Eu acho que é melhor, eu defendo que é melhor. Primeiro, os tribunais já informam os juros separados do (valor) principal (da dívida) corrigido. Isso existe nos tribunais. Na hora que gera precatório que mistura tudo. Por que, então, não é mais transparente manter separado o que eu pago de juros, pelo fato de essas causas ficarem tantos anos no Judiciário, do que é pago referente ao principal? O que que isso gera de consequência? Nenhuma, nada. E o contrafactual disso seria criar exceções: exceções de despesas, exceções à meta.
Então preferiu-se contabilizar os juros como despesa financeira a se criar exceções às regras fiscais, é isso?
A única despesa que tem juro embutido por dentro é precatório. Pode perguntar para qualquer especialista: considerar juros de precatório como despesa financeira, do ponto de vista contábil, é adequado. Pode-se falar que há uma divergência em relação ao manual do FMI. Mas o manual do FMI não se impõe sobre o ordenamento brasileiro.
Com a mudança, como ficaria o registro, por exemplo, dos juros de encargos das receitas tributárias que a União tem a receber? O governo vai reclassificar como financeiras ou a regra só vale para as despesas?
Ótimo, essa é a discussão? Do ponto de vista fiscal, essa é uma discussão boa. Isso não é um precedente ruim. Não vai tirar nada que vá prejudicar o fiscal. Não tem problema esse aperfeiçoamento contábil.
Mas colocar essa discussão no meio de um debate fiscal, com uma meta difícil para 2024 e a necessidade de se arrecadar R$ 168 bilhões extras, não traz ruído?
Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Não impacta. Essa discussão não impacta um real no debate sobre a meta fiscal para o ano que vem. Não tem nada a ver. Para 2025, a tendência é que ela gere alguma pressão de gasto, do primário, que eu vou ter de encaixar dentro do arcabouço, dentro daquele limite de 0,6% a 2,5% (de aumento de despesas acima da inflação).
Há economistas dizendo que o governo adotou essa estratégia, em relação aos precatórios, para servir de pretexto caso não consiga cumprir a meta no ano que vem, de zerar o déficit…
Isso não só não é verdade, como a gente está propondo que isso seja feito em 2023. Eu sei que, às vezes, o pessoal fica meio triste que a gente não está fazendo nenhuma picaretagem; mas o pessoal fica procurando esse tipo de coisa. “Ah não, mas qual é a pegadinha?” Não tem pegadinha. A gente está resolvendo um problema grave: uma moratória, com ocultamento de dívida pública, que é o que está acontecendo hoje. O Brasil não paga as obrigações em dia perante o mundo. Pagar em dia as contas é uma obrigação do governo.
Mas há muita crítica sobre separar parte dos precatórios como despesa financeira.
Eu discordo de que tem muita crítica. O que o pessoal está tentando entender é se isso vai gerar algum tipo de espaço fiscal ou não. O que estou deixando claro é que não vai gerar.
Em relação à dívida pública, ela vai aumentar em relação ao PIB, certo?
Isso já existe, só que hoje a gente está mascarando. Está tudo oculto. Eu insisto: não estamos criando um real de despesa com essa medida. Hoje, o País deve R$ 95 bilhões que não estão registrados na nossa estatística fiscal. (A medida) Não cria mais ou menos despesa; só estamos regularizando uma situação. Com essa solução, eu consigo resolver o problema de estoque e gerar um fluxo que dá para caber no Orçamento, no primário, sem ter de criar exceção.
Então por que não reconhecer tudo como dívida e pagar integralmente como despesa financeira?
Seria possível, tem suporte na LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) para fazer isso. Só que aí eu cairia em duas críticas que são legítimas. Iam dizer: “Ah, você abriu um precedente; então, se você começar a atrasar restos a pagar, você pode considerar como dívida e fazer a mesma coisa”. Outra crítica é que você tiraria o interesse do governo de controlar essa despesa, já que não estaria aparecendo; só o Tesouro iria se preocupar com isso, porque apareceria na dívida. Dessa forma, não.
Por quê?
A maior parte continua sendo gasto primário e ele se reduz no tempo, porque o juro é tão maior quanto mais antiga é a causa. Há um processo de aceleração dos julgamentos no judiciário como um todo. Então, se você pegar ano a ano, essa proporção de juros sobre o principal está caindo. Daqui alguns anos, vai ser de 20% (hoje, o secretário calcula que seja de cerca de 30%). Então, a médio e longo prazo, essa distinção (entre despesa financeira e primária) vai ficando irrelevante, mas permite criar um caminho de saída, sem ter de criar exceção e precedentes ruins.
Economistas como o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega defendem que uma solução seria tirar o pagamento dos precatórios do teto das despesas. Esse caminho foi considerado?
Eu discordo que deveria tirar tudo do teto. Acho que isso cria um precedente ruim. Sem tirar nada do teto, respeitando as regras vigentes, estamos resolvendo o problema de uma forma razoável. É uma aberração esse negócio de precatórios aqui no Brasil, de ter esse estoque de volume tão grande, tão antigo. Eu resolvo um problema tão grande para o País com uma saída que é razoável.