Os ex-executivos da Americanas começaram a usar há mais de dez anos o recurso financeiro que ficou famoso por ajudar a esconder a fraude bilionária da empresa, conhecido como “risco sacado”. Mas as investigações para apurar o desfalque na empresa revelam que as discussões entre ex-executivos da Lojas Americanas e da B2W, braço de comércio eletrônico do grupo, sobre como ocultar as operações fraudulentas com o mecanismo se intensificaram entre fevereiro de 2016 e outubro de 2017. Foi logo depois da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) passar a exigir mais clareza na divulgação de operações de risco sacado. A antiga equipe das Americanas ainda tentou envolver os bancos nas manobras para camuflar o uso do recurso.
Essas informações fazem parte do relatório final feito por um comitê de auditoria independente, contratado pela atual diretoria da Americanas, para investigar as fraudes financeiras que aconteceram na empresa e que causaram um rombo de R$ 25,3 bilhões. Procuradas, as defesas do ex-presidente da Americanas, Miguel Gutierrez, e do diretor financeiro da empresa na época, Fabio Abrate, citado nas trocas de mensagens expostas no relatório, não responderam ao Estadão. Os bancos negaram saber de qualquer irregularidade nas Americanas.
O relatório sigiloso, elaborado pelo comitê liderado pelo advogado Otávio Yazbek, foi apresentado em julho para o conselho de administração da Americanas e também foi incluído nos autos do inquérito que corre na Justiça para apurar as responsabilidades pela fraude. O documento foi obtido pelo Estadão.
Mecanismo da fraude
O risco sacado, também chamado por outros nomes como forfait, confirming e reverse factoring, é uma operação comum no varejo. Funciona assim: uma varejista compra produtos de um fornecedor e acerta no contrato pagamento a prazo. Mas, para adiantar o pagamento, a varejista pede para um banco pagar a dívida à vista para o fornecedor, que não precisa esperar meses para receber o dinheiro, mas, em troca, dá um desconto no valor da venda. A empresa de varejo então fica devendo o valor total da mercadoria para o banco, em vez de ter de pagar o fornecedor.
O problema no caso das Americanas é que esse tipo de empréstimo era escondido no balanço financeiro. Era tratado como um pagamento para fornecedores já feito, e não como uma dívida bancária a ser paga. Para compensar essa dívida que não aparecia do balanço, existiam contratos fictícios com receitas adicionais, como os de verba de propaganda cooperada (VPC), uma espécie de pagamento feito por fornecedores para divulgar melhor ou ter mais exposição de seus produtos nas lojas. Esse pagamento geralmente significava um desconto no valor devido pela varejista pela compra dos produtos.
O relatório identificou 36 convênios de risco sacado e 32 aditivos, totalizando 68 contratos firmados entre 2008 e 2022 pelo grupo Americanas e suas duas empresas, Lojas Americanas e B2W, com 15 instituições financeiras e 2 fundos de investimentos.
Por meio de comunicado, a Americanas “reitera que os resultados do trabalho do Comitê Independente, que seguem sob sigilo das autoridades e com acesso restrito às partes, corroboram, por caminhos próprios, o que foi até o momento divulgado pela investigação criminal conduzida pela Polícia Federal e Ministério Público Federal, confirmando a existência da fraude contábil de que foram vítimas a companhia e seus stakeholders. Americanas reafirma que é a maior interessada no esclarecimento dos fatos e na responsabilização judicial de todos os envolvidos.
Exigências de mais transparência
Em fevereiro de 2016, a CVM comunicou ao mercado que as operações de risco sacado deveriam ser tratadas como um financiamento das empresas. Antes disso, não havia um padrão claro. Após esse comunicado, segundo o relatório, ex-diretores da Americanas e outros executivos buscaram a orientação dos bancos sobre como divulgar essas operações sem atrair a atenção do órgão regulador. O objetivo era ocultar a escala dessas operações das auditorias e do mercado.
O relatório indica que, entre março e outubro de 2017, foram realizadas reuniões com instituições financeiras para discutir a aderência de outras companhias e respectivos auditores externos às orientações da CVM sobre operações de risco sacado. O trabalho também abordou maneiras de mitigar características dessas operações que poderiam sugerir uma dívida financeira, incluindo até realizar alterações nos convênios com os bancos.
Além disso, foi criado um comitê na empresa para gerenciar essas operações. Comunicações de 2017 e 2018 mostram que funcionários da Lojas Americanas e B2W debateram o impacto crescente de despesas com operações de risco sacado no resultado financeiro das duas empresas, descreve o relatório.
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O relatório de Otávio Yazbek apresenta e-mails em que o então diretor financeiro da Americanas, Fabio Abrate, fala sobre reuniões com funcionários do Santander para discutir o assunto. Em nota, o Santander respondeu que “o estudo sobre operações de confirming (o risco sacado) a que se refere o relatório tratava, na verdade, de material de orientação aos clientes sobre o tratamento fiscal e contábil deste produto, em obediência às regras da autoridade reguladora”. “Sendo assim, o Santander repudia qualquer insinuação contrária à lisura e correção em sua relação com a empresa, reiterando ter sido também vítima das fraudes.” Procurado, Abrate não respondeu.
O banco destacou ainda “que não possui ingerência, supervisão ou responsabilidade sobre as demonstrações financeiras da Americanas”. “A própria Companhia informou, em fato relevante de 13/06/2023, que as demonstrações foram fraudadas pela diretoria anterior. O banco sempre informou os saldos das operações da empresa nas cartas de circularização e ao Sistema Central de Risco do Banco Central, que é uma entre as possíveis fontes de auditagem. As fraudes estavam pautadas no uso de contratos comerciais fictícios com fornecedores, conhecidos como Verba de Propaganda Cooperada (VPC), por meio dos quais a Companhia reduzia seus custos artificialmente e ampliava os seus lucros”.
Pedidos de esclarecimentos
Depois da mudança de regras emitida pela CVM em 2016, começaram a aparecer mais pedidos por parte dos ex-executivos da Americanas para os bancos realizarem correções nas respostas que enviavam para questionamentos feitos pela auditoria externa, que na época era feita pela KPMG. Em linhas gerais, os investigados buscavam convencer os funcionários dos bancos a consolidar, em suas respostas às auditorias, diversas operações numa mesma conta, sem especificar as suas modalidades, e evitando ao máximo que as expressões “risco sacado” e confirming aparecessem.
Foram identificadas 22 respostas de instituições financeiras às cartas de pedidos de esclarecimentos de auditorias que tratavam da existência de saldo em aberto de operações de risco sacado, relata o comitê independente. Após os questionamentos, nove instituições financeiras enviaram novas respostas, para a KPMG, entre dezembro de 2016 e dezembro de 2018, e para a PwC em dezembro de 2015 e de 2020.
O relatório também apresenta uma troca de mensagens, de fevereiro de 2017, entre os ex-executivos indicando que eles estavam com mais dificuldades para conseguir um acordo com o Itaú sobe as alterações que queriam nas cartas que seriam apresentadas à KPMG. Isso teria “azedado” as conversas com o banco, segundo já revelado pelo Estadão/Broadcast.
O presidente da Americanas na época, Miguel Gutierrez, chegou a fazer uma reunião para tratar o assunto e definir estratégias de como explicar para a auditoria as respostas passadas pelo Itaú. “Vamos ter de olhar para todo esse português e palavras e montar o melhor discurso. Agora é a hora! Vamos com tudo. Itaú não é Santander. Assunto azedou muito. Podemos ter efeitos colaterais”, escreve Abrate.
Ao Estadão, o Itaú afirma que sempre prestou todas as informações aos pedidos de esclarecimentos feitos pelas auditorias. Até setembro de 2017, a Americanas mantinha convênio para realização de operações de risco sacado com o banco e, por meio desse convênio, as operações eram cotadas pela empresa e formalizadas, naquelas condições, pelos fornecedores dela. “Nesse contexto, todos os saldos eram reportados nas cartas, inclusive as enviadas em 2016 e 2017″, informa.
Em 2017, o convênio foi rescindido, segundo o Itaú, e foi previsto nas “contas a pagar” a possibilidade de os fornecedores da Americanas anteciparem seus créditos junto ao banco. “Nesse momento, os saldos deixaram de ser reportados nas cartas de circularização, por não se referirem a operações contratadas diretamente pela empresa. Ainda assim, o Itaú manteve alertas aos auditores de que essas operações existiam. Essa era a prática adotada para todas as empresas que operavam nessa modalidade, ou seja, que não mantinham convênio de risco sacado com o banco”, responde.
O Itaú foi uma das instituições que, em janeiro de 2023, alertaram a CVM sobre operações suspeitas de vendas de ações da Americanas por ex-diretores da varejista ocorridas antes da divulgação do rombo bilionário nas contas da empresa, segundo relatórios de investigação revelados pelo Estadão.