SÃO PAULO E BRASÍLIA - A aviação regional voltou aos holofotes no Brasil recentemente por um motivo trágico: o acidente com a Voepass, que matou 62 pessoas. Com problemas históricos, o modelo, considerado essencial para integrar o País, vive seu pior momento em décadas. Desde o início dos anos 2000, quase 30 companhias desse setor encerram suas atividades, conforme levantamento feito pelo Estadão/Broadcast. O número de passageiros transportados, que representava 7,57% do mercado doméstico no ano 2000, vem caindo década após década, ficando em 4,8% em 2023, a menor participação em 23 anos.
Esse recuo mostra que a oferta das aéreas que encerraram as atividades não foi assumida por outras companhias. Atualmente, o mercado brasileiro conta com basicamente apenas três companhias aéreas exclusivamente regionais: Abaeté, Azul Conecta (subsidiária da Azul) e a própria Voepass.
Os desafios financeiros e operacionais atingem, na verdade, a aviação como um todo, com destaque para o alto custo do combustível, exposição elevada ao câmbio e judicialização excessiva. No entanto, existem especificidades que agravam ainda mais a situação para as regionais, segundo Adalberto Febeliano, engenheiro e mestre em Economia do Transporte Aéreo. “O setor é desafiador por natureza, mas a aviação regional é ainda mais problemática. Vemos um ambiente tóxico e particularmente difícil para elas”, afirma.
Um dos pontos ressaltados pelo especialista é o fato de as empresas regionais terem uma receita exclusivamente em real, enquanto os custos do setor são dolarizados. Febeliano complementa que a aviação regional utiliza aviões menores, o que reduz a capacidade de distribuir os elevados custos fixos entre os passageiros. Além disso, operam, normalmente, rotas de menor densidade.
Entre as despesas fixas, ele ressalta as relacionadas à segurança. “A regulamentação é cada vez mais rigorosa, o que é bom. Só que a segurança não é de graça e aumenta muito a complexidade de administrar uma empresa aérea.”
A falta de concorrência e de infraestrutura, com carência de aeroportos regionais, também entra na lista de desafios para as empresas aéreas regionais, na avaliação de João Marcos Coelho, ex-funcionário da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) e gestor de aeroportos.
Incentivos ao setor na reforma tributária
Para os especialistas, há no País hoje uma falta de políticas públicas que estimulem o setor, até mesmo com subsídios, que foram importantes para esse mercado no passado. Mas o governo fez alguns movimentos nesse sentido recentemente, com incentivos por meio da reforma tributária e também de pressões para a compra de aviões da Embraer.
O texto da reforma tributária não inclui a aviação geral na lista de isenções, mas prevê benefícios para a regional. O desconto proposto é de 40% nas alíquotas da CBS e do IBS — os dois tributos que vão substituir IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS — para a aviação regional, desde que a empresa transporte um número mínimo de passageiros por dia. A medida inclui “amplo creditamento (compensação tributária) sobre os principais itens de custo do setor, como combustíveis, peças, locação de aeronaves e até tarifas de navegação aérea”.
O ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, classifica a iniciativa como uma boa ideia, mas acha que é necessário detalhar melhor as condições. Ele destaca que há a proposta de que o mínimo de passageiros seja de 600 por dia, mas também há a possibilidade de 800. “Acho que em torno de 800 a mil passageiros-dia seria um bom número no primeiro momento. Discutiremos o tema dentro da reforma tributária. Isso incentiva Azul, Gol, Latam e outras para a aviação regional”, afirmou, em entrevista ao Estadão/Broadcast.
A falta de previsão sobre isenção para o setor na reforma é alvo de críticas de executivos das aéreas. Segundo o CEO do Grupo Latam no País, Jerome Cadier, o texto nos moldes atuais pode levar a uma alta de 15% a 20% nos preços das passagens aéreas domésticas e internacionais no Brasil.
O CEO da Azul, John Rodgerson, também prevê uma alta de valores. Contudo, defende os incentivos à operação regional. “Se o País quer voos regionais, precisa ter uma prática diferente para isso”, afirmou, ressaltando que os custos para realizar viagens em cidades de pequeno e médio portes são ainda mais elevados do que nos grandes centros.
Estímulo à compra de aviões da Embraer
O governo tem apostado também no potencial da Embraer para fomentar a aviação regional, pois a empresa produz aviões de menor porte, já utilizados pela Azul no Brasil e ao redor do mundo por outras aéreas. O poder público tem pressionado para que as outras companhias em operação no País comprem da fabricante brasileira com o argumento de impulsionar a indústria nacional e a conectividade entre regiões.
Em julho, o presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Aloizio Mercadante, afirmou que Latam, Azul e Gol estavam em negociações avançadas com a Embraer. Disse ainda que o governo federal pretende criar novas medidas de auxílio às companhias aéreas, que ainda enfrentam os efeitos da pandemia de Covid. Existe a expectativa de que a contrapartida seja de que estas invistam na compra de aviões da fabricante brasileira.
Aéreas regionais já atenderam 400 cidades
No pós-Segunda Guerra, a alta disponibilidade de aviões menores com preços atrativos levou a uma explosão da aviação regional, que chegou a atender 400 cidades brasileiras no final da década de 1950, segundo Cláudia Musa Fay, professora de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). No entanto, o número, que nunca mais foi superado, despencou para entre 50 e 70 municípios duas décadas depois. A queda refletiu principalmente a chegada dos aviões a jato, que eram mais caros e exigiam uma infraestrutura melhor nos aeroportos. A expansão das rodovias e o estímulo ao uso de automóveis também pesaram.
Diante deste cenário, o governo militar lançou, nos anos 60, a Rede de Integração Nacional (RIN). A primeira tentativa de estimular a aviação regional consistia na concessão de subsídios especiais para empresas que utilizassem as aeronaves DC-3, Catalina ou C-46 nas rotas de médio e baixo potencial de tráfego, não viáveis economicamente.
Em 1975, a União ampliou os esforços com a criação do Sistema Integrado de Transporte Aéreo Regional (Sitar). A iniciativa dividiu o País em cinco regiões, lançando uma companhia aérea para cada: Nordeste, Rio-Sul, Transportes Aéreos da Bacia Amazônica (Taba), TAM e Votec. Outra estratégia utilizada na mesma época foi a suplementação tarifária. Com ela, parte da tarifa das passagens das empresas nacionais de maior porte era utilizada para estimular o crescimento das aéreas regionais.
“As políticas públicas de incentivo ajudavam a garantir pelo menos a manutenção mínima das companhias menores para resistirem economicamente, já que operavam com margens apertadas”, afirma Cláudia. Após o fim do Sitar e a desregulamentação da aviação no Brasil, durante os anos 90, houve um vácuo de incentivos, pressionando o setor. “É uma atividade de alta tecnologia e muitos investimentos. Ter esse monte de custos sem apoio do Estado é muito difícil”, diz a pesquisadora da PUCRS.
Adalberto Febeliano destaca que os desafios, ainda que em menor proporção, também atingem outros países, até mesmo economias desenvolvidas. “A aviação regional enfrenta dificuldades no mundo inteiro, mas lá fora isso se resolve com subsídio.”
Na história recente, em 2012 a presidente Dilma Rousseff apresentou um projeto de R$ 7,3 bilhões para estruturar 270 aeroportos regionais, mas encerrou sua passagem pelo Palácio do Planalto sem entregas no setor. O sucessor de Dilma, Michel Temer, reduziu a lista para 53 aeroportos a serem estruturados, mas terminou o mandato com o mesmo volume de terminais de quando assumiu. Na gestão do presidente Jair Bolsonaro, o plano previa 72 novos aeroportos regionais em operação até 2025, mas também não realizou entregas.
Com a promessa de contornar este quadro e “democratizar a aviação”, o atual governo do presidente Lula lançou, em dezembro do ano passado, o Programa de Universalização do Transporte Aéreo, tendo entre os pilares a previsão de investimentos nos aeroportos regionais. A meta, de acordo com o ministro Costa Filho, é estruturar 120 aeroportos regionais até 2026, entre instalações novas e adaptações.
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O que é aviação regional?
Não há uma descrição oficial detalhada para o termo “aviação regional”, com especificações sobre distância, tamanho da aeronave ou número de assentos para se enquadrar na categoria. O mais próximo dessa definição, por parte da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), se limita aos seguintes termos: “Serviço Aéreo Regional é aquele que estabelece a integração, pelo transporte aéreo, dos polos de interesse regional aos grandes centros”.
Contudo, o setor convenciona chamar de regionais principalmente as operações que ligam terminais de um mesmo Estado. Mas a nomenclatura também é usada para se referir a viagens entre uma cidade de menor porte com grandes centros de Estados distintos. Um exemplo é o voo 2283 da Voepass, que conectava Cascavel (PR) a Guarulhos (SP) e acabou caindo no município de Vinhedo.
Diante da falta de distinções na base de dados da Anac para abranger também esse segundo tipo de viagem, o levantamento realizado pelo Estadão/Broadcast considera regional um voo entre terminais de uma mesma unidade federativa.
Costa Filho avalia que houve um grande crescimento do setor nos grandes centros urbanos do Brasil, o que acabou reduzindo a participação da aviação regional em termos porcentuais. “Mas, em valores globais, temos mais passageiros viajando. Agora, naturalmente, queremos ampliar cada vez mais a aviação regional”, afirmou ao Estadão/Broadcast.
A queda da participação dos voos regionais no mercado doméstico só não foi mais expressiva porque, em posição de exceção, Estados como São Paulo e Santa Catarina mais que dobraram seus voos regionais entre 2000 e 2023. Por outro lado, unidades federativas das regiões Norte e Nordeste tiveram baixas abruptas de oferta. Na liderança das baixas estão a Bahia e o Acre.