O retorno ao mercado brasileiro do chamado carro popular entrou na agenda do governo e, nas últimas semanas, tem sido citado pelo presidente Lula. Para algumas montadoras e para os concessionários, o tema é visto com certa urgência em um momento de queda de vendas, fábricas suspendendo a produção e sindicatos de trabalhadores temendo demissões.
O tema de um novo carro popular foi levado ao Ministério do Desenvolvimento (Mdic) no mês passado pela Fenabrave, a associação dos revendedores de veículos. Nesse momento, a pasta não quer comentar o assunto.
Fontes do mercado falam que o governo trabalha com preços na casa dos R$ 45 mil a R$ 50 mil para um carro pequeno, simples e sem alguns itens tecnológicos. Hoje, os dois modelos mais baratos à venda no País são o Fiat Mobi e o Renault Kwid, ambos por R$ 69 mil.
Na semana passada, em discurso em Brasília, Lula criticou o preço dos automóveis no País. “Qual pobre pode comprar carro popular por R$ 90 mil?”, questionou, ressaltando tratar-se de modelos voltados apenas à classe média. Citou ainda que seu governo vai “fazer carros a preços mais compatíveis e aumentar as prestações”.
No seu segundo mandado, de 2007 a 2010, Lula reduziu impostos para carros e, com inflação e juros favoráveis, muitos brasileiros tiveram acesso ao primeiro carro zero pagando prestações ao longo de seis anos.
Leia mais
A volta do tema ganhou corpo no início de abril, quando a Fenabrave, a associação de concessionários de veículos, e algumas montadoras passaram a defender a necessidade de oferta de carros mais baratos para tentar recuperar o mercado.
O debate ocorre em um período em que as vendas estão pouco acima daquelas registradas nos primeiros quatro meses de 2022, quando o setor passava por uma das suas piores crises por falta de semicondutores. Pátios de fábricas e revendas têm estoques para quase 40 dias de vendas e, só no em abril, nove fábricas pararam a produção e dispensaram trabalhadores, algumas por até um mês.
O consultor da S&P Global Brasil, Fernando Trujillo, avalia que o valor até R$ 50 mil “só seria viável se o governo cortasse imposto”, o que, na atual situação fiscal do País, dificilmente deve ocorrer. Entre propostas em discussão está a retirada de alguns itens de segurança ou tecnológicos, medida que ele também acredita ser de difícil aceitação por causa das normas de segurança e emissão em vigor.
Na avaliação de Cássio Pagliarini, da Bright Consulting, nenhuma mudança de conteúdo fará o preço “despencar R$ 20 mil”. Ele cita, por exemplo, ser possível simplificar acabamentos, frisos, pintura de para-choque, calotas e usar pneus mais finos, “mesmo assim não chegaria lá”.
Carro verde
Juntou-se à demanda a possibilidade de ser um “carro verde”, movido apenas a etanol, que também ajudaria a diminuir emissões de gases no meio ambiente. Nesse caso, poderia ser avaliado um incentivo tributário como fomento ao etanol, “para que o consumidor se sentisse mais motivado a adquirir um veículo desse tipo”, afirma Flávia Spadafora, líder do Setor Automotivo da KPMG Brasil.
Flávia Spadafora, líder do Setor Automotivo da KPMG Brasil
Trujillo tem visão diferente. “Não sei se faz sentido um carro só a etanol porque (as empresas) já têm a tecnologia flex e voltar ao etanol puro geraria um custo talvez desnecessário.”
A proposta levada ao Mdic tem apoio de algumas montadoras, como a Stellantis, dona das marca Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën – grupo que detém 32,5% das vendas totais de automóveis e comerciais leves no País. O presidente da companhia, Antonio Filosa, ressaltou recentemente ser necessário, primeiro, definir o conceito de carro popular pois, com as atuais exigências de segurança e emissões não é possível ter um produto na faixa de preço em análise.
Para ele, seria um carro pequeno, mais simples, com menos equipamentos, mas sem prejudicar os níveis de segurança. É possível, disse ele, definir quais seriam os itens essenciais, além de baratear o crédito e impostos. Ele cita, por exemplo, que todos os carros 1.0 pagam Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) reduzido, inclusive modelos com motor turbo.
Uso do FGTS
Mário de Lima Leite, presidente da Anfavea, a associação das montadoras, disse ontem que o tema não está sendo conduzido pela entidade, pois a discussão está muito voltada ao preço desse carro – tema que cabe a cada uma das associadas e à Fenabrave. Afirmou, porém, “que tudo que for para aquecer o mercado e que tenha como foco a questão ambiental e de segurança é bem vindo”.
Segundo ele, a discussão está em fase de coleta de dados e o governo solicitou à Anfavea no fim de semana, mais dados que foram entregues. Leite disse também que há outras medidas em debate que poderiam afetar o mercado como um todo, e não apenas o de veículos de entrada, como o uso de parte do FGTS para a compra do carro novo. Ponderou ainda que “o crescimento do mercado não vai acontecer se não houver uma redução da taxa de juros”.
Sem consenso entre montadoras
O retorno do popular não é consenso entre as associadas da Anfavea. Em entrevista no mês passado, o presidente da General Motors, Santiago Chamorro, afirmou que seria melhor criar condições mais favoráveis de crédito para o consumidor ter condições de comprar carros de entrada já disponíveis. “Se perguntarmos para o brasileiro se ele quer um carro menor, menos tecnológico, certamente a resposta será não”.
Já o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC defende, em documento entregue ao presidente Lula na semana passada, estímulo ao lançamento imediato de modelos populares, com patamares reduzidos de preços e linhas de crédito de 60 a 72 meses desenhadas com esse foco.
O presidente da Fenabrave, José Andreta Júnior, afirmou recentemente que a oferta de carros mais baratos ajudaria o setor a ter escala para produzir mais, sem reduzir a rentabilidade, o que evitaria demissões. A entidade também está abastecendo o governo com informações de seu banco de dados.
Veja por que o carro brasileiro é caro
Impostos
Os automóveis vendidos no mercado brasileiro recolhem, só em IPI, ICMS e PIS/Cofins, de 24,7% (modelo flex 1.0) a 32,3% (modelo 2.0 a gasolina). Em uma média comparativa com outros países, tomando como exemplo um carro 1.0 a gasolina, a participação dos tributos totais sobre automóveis no preço ao consumidor é de 27,3% no Brasil, enquanto na Espanha é de 17,3% e nos EUA, de 6,8%.
Novas tecnologias
Para atender regras de emissões, de eficiência energética e a própria demanda de parte da classe consumidora, os automóveis passaram a incorporar novas tecnologias que agregam mais conteúdo eletrônico, especialmente chips, o que encarece os preços dos veículos. Por exemplo, desde 2014 todos os carros têm de sair de fábrica com airbag e freio ABS.
Custo Brasil
Empresa de todos os setores, além do automotivo, reclamam do chamado ‘custo Brasil’, que encarece a produção nacional e envolve, entre outros itens, falta de infraestrutura de estradas (encarece frete e transporte de peças e produtos) e portos (encarece exportações e importações) e as burocracias tributária e jurídica.
Margem de lucro
Analistas dizem que a margem de lucro de multinacionais no Brasil é superior a de outros países, mas, como a maioria não é obrigada a divulgar balanços no País, é uma afirmação difícil de ser comprovada. Porém, é fato que nenhuma empresa opera por muito tempo sem ganhar dinheiro, do contrário, ela fecha as portas.
Renda média
O Brasil é um país de baixa renda média, o que dificulta ainda mais a aquisição de bens de alto valor. Estudo feito pelo economista Matheus Peçanha, da FGV/Ibre, mostra que, para comprar um Renault Kwid ou um Fiat Mobi em janeiro de 2019 eram necessários, respectivamente, 32,4 e 32,6 salários mínimos. Hoje, para adquirir os mesmos modelos, os mais baratos do País, são necessários 52,2 salários mínimos (valor de maio).