Samuel Klein, o rei do varejo brasileiro, fundador da Casas Bahia, morreu em novembro de 2014 e deixou de herança para seus três filhos um patrimônio bilionário. Mas, agora, oito anos e meio após sua morte, essa divisão de bens passou a ser contestada pelo filho caçula, Saul Klein, que se prepara para brigar por uma nova partilha da fortuna deixada pelo pai.
Há um mês, os advogados de Saul procuraram a polícia e conseguiram a instauração de inquérito para apurar crime de estelionato envolvendo os documentos usados na divisão da herança e na mudança de controle da empresa da família. Eles apresentaram a suspeita de que houve falsificação das assinaturas de Samuel em quatro alterações no contrato social da Casas Bahia, ocorridas nos últimos dois anos de vida do empresário, e também em seu testamento, de agosto de 2013.
Em todos esses documentos, segundo a acusação, o principal beneficiado foi o primogênito Michael Klein e os seus filhos. A herança deixada por Samuel, em toda a metade que, por lei, pode ser disposta livremente de acordo com o desejo do testamentário, foi direcionada a Michael e a seus filhos. Também uma série de alterações societárias da Casas Bahia causou a diluição de capital e o cancelamento de parte das ações de Samuel na empresa, permitindo a Michael se tornar o maior acionista da empresa, além de repassar mais quotas a empresas ligadas à família do primogênito.
“Considerando a gravidade dos fatos noticiados no requerimento, bem como as conclusões periciais alcançadas nos pareceres técnicos apresentados, vislumbro a existência de indícios da prática de crime de estelionato e (...) determino a instauração de Inquérito Policial”, escreve a delegada Ana Lúcia de Souza, do 78.º Distrito Policial, dos Jardins, em São Paulo. A defesa de Michael Klein afirma que o pedido de inquérito é uma “representação improcedente, infundada e espúria”.
Os próximos passos da investigação devem envolver, segundo a delegada, ouvir os acusados, coletar os documentos originais em seus respectivos cartórios e enviá-los para a análise do Instituto de Criminalística, para receberem uma avaliação independente sobre as assinaturas. Todo este processo pode levar cerca de seis meses.
A comprovação das fraudes poderia provocar um rearranjo dos recursos financeiros e do patrimônio deixados por Samuel Klein a seus filhos e netos, e até mesmo do controle da empresa dona dos imóveis em que funcionavam a rede de lojas da família. Essa empresa (que foi rebatizada como Casa Bahia Comercial) permaneceu com os Klein mesmo após a venda do varejo ao Grupo Pão de Açúcar (GPA) em 2009, para a formação da Via Varejo – quando foi combinada com a rede Ponto Frio.
Dez anos depois dessa transação, Michael recomprou parte das ações da operação de varejo, hoje chamada de Via, da qual é o maior acionista individual, mas sem deter o controle. Esta empresa, de capital pulverizado, não é disputada por Saul, apesar de ela estar presente em outras batalhas envolvendo Michael – como um processo arbitral entregue à Comissão de Valores Mobiliários, em que ele pede R$ 170 milhões relacionados a passivos fiscais e trabalhistas.
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A investigação policial sobre fraudes nas assinaturas foi provocada pelos advogados de Saul, do escritório Toron Advogados, a partir de petição que inclui laudos técnicos de dois reconhecidos especialistas grafotécnicos, a ciência da análise forense de grafias. “Existem indícios muito fortes de prática de crime. Pedimos a instauração de inquérito para confirmar os elementos apontados. A ideia é a polícia investigar e confirmar a autoria material e intelectual da possível fraude”, afirma Luiza Oliver, sócia do escritório, que representa criminalmente Saul – ele próprio investigado em ações de outra natureza.
Os mais notórios desses processos resultaram em uma ação movida pelo Ministério do Público do Trabalho em São Paulo contra Saul por crime de “tráfico de pessoas” para trabalhos de natureza sexual, em “condições análogas às de escravo”, depois de denúncias de estupro e de formação de uma rede de prostituição, feitas no fim de 2020.
Suspeita de falsificação
A suspeita de assinaturas forjadas surgiu a partir de análise de outro escritório, o Luc Advogados, responsável pelos processos civis de Saul, que pediu análises grafotécnicas dos documentos para os laboratórios dos peritos Celso Mauro Ribeiro del Picchia e Sebastião Edison Cinelli. Ambos concordaram que as assinaturas das alterações contratuais da Casas Bahia de números 134, que alterou o controle da empresa, 135, 136 e 138, elaboradas entre novembro de 2012 e 2014, teriam assinaturas falsas, quando comparadas com peças datadas até 2011.
O laboratório de Cinelli também coloca em dúvida a assinatura no testamento de Samuel, de 2013, que define a distribuição da herança. “Todos os eventuais atos irregulares de disposição de patrimônio serão impugnados por nós”, diz Ricardo Zamariola Júnior, sócio da Luc Advogados.
Este testamento dividia R$ 499 milhões em duas partes. A primeira delas repartia metade do patrimônio, conforme a obrigação legal, em fatias iguais, de R$ 82,7 milhões, para os três herdeiros diretos, Michael, Saul e Eva. A outra metade, segundo a alegada vontade de Samuel, repassava R$ 124 milhões a Michael, nomeado inventariante do patrimônio, e outros R$ 124 milhões para duas empresas baseadas na Nova Zelândia de responsabilidade de Natalie Klein, filha mais velha de Michael.
As empresas são chamadas de Altara NK Investments Limited e Altara RK Investments Limited, com siglas que remetem às iniciais de Natalie Klein e de seu irmão Raphael Klein, atualmente integrante do conselho de administração da Via. Além dos dois filhos, Michael teve dois pares de gêmeos com sua atual esposa, Maria Alice Klein.
Além da contestação da assinatura da herança, dos quatro documentos questionados pelos advogados de Saul, o mais relevante trata da alteração social 134, do dia 23 de novembro de 2012. Até então, segundo o escritório Toron Advogados em sua petição, o controle da Casas Bahia era dividido entre Samuel, com 53,48% das ações, e Michael, com 46,52%. Por meio da alteração social, Samuel teria requisitado a diminuição do capital da empresa, cancelando parte de suas ações, permitindo a Michael assumir o controle. O filho mais velho passaria a ter 55,5% da empresa, frente aos 44,5% do pai. Em contrapartida, Samuel receberia R$ 377,5 milhões pelo cancelamento de suas ações.
Quando Samuel faleceu, apenas dois anos após a assinatura desse documento, este valor não teria sido encontrado em suas contas, segundo outro processo, uma ação de exibição de documentos, pedida pelo escritório Luc Advogados em 4 de abril de 2023. Haveria, segundo a ação, R$ 51,5 milhões restantes em aplicações financeiras.
“Considerando-se esse quadro, o que se tem é que o pai do requerente, então já com mais de 90 anos de idade, doente e com estado geral de saúde extremamente frágil, teria consumido nos últimos dois anos de sua vida cerca de R$ 320 milhões em dinheiro”, escreve o escritório no processo. A partir disso, o pedido, feito para a Vara Cível da Comarca de São Caetano do Sul (SP), é para que Michael apresente comprovante de transferência bancária demonstrando o pagamento a Samuel, explica Zamariola Júnior, sócio do escritório de advocacia.
Diluição de capital
Outro documento contestado pelos advogados de Saul é a alteração social 135 da Casas Bahia, datada de 14 de agosto de 2013, mesmo dia da assinatura do testamento de Samuel. Por meio desse documento, a empresa, já controlada por Michael, concedia 271 milhões de quotas para a Altara NK e Altara RK. Alguns meses depois, em 31 de janeiro de 2014, na alteração 138, outras 434,6 milhões de quotas eram cedidas para outra empresa baseada na Nova Zelândia, a Twins-CD (“gêmeos”, em inglês), representada por Michael. Com essas diluições, na ocasião da morte de Samuel, o patriarca possuía apenas 22,25% do capital social da Casas Bahia.
Ao deter a maioria das ações da empresa em seu nome ou no de empresas ligadas aos filhos na ocasião da morte do patriarca, Michael tinha o direito de barrar a entrada dos irmãos no negócio. “Segundo o contrato social, em caso de morte de um dos sócios, os remanescentes poderiam recusar a entrada de herdeiros, se tivessem a maioria das ações, e foi o que Michael fez”, afirma Zamariola Junior.
Os laudos grafotécnicos apresentados na petição mostram diversos detalhes que indicariam falsificação das assinaturas, segundo a petição apresentada pelos advogados. O Instituto Del Picchia aponta “fracionamentos, interrupções anormais (levantamentos em trechos contínuos das verdadeiras), como índices primários de falsificações”. Também avalia que, a partir de 2010, os documentos assinados por Samuel costumam conter inscrições a lápis com as iniciais maiúsculas SK, como forma de indicar onde ele deveria colocar a sua assinatura. Mas, nos documentos contestados, essas marcas não aparecem.
Já o Gabinete de Perícias de Sebastião Cinelli constata que as assinaturas questionadas apresentam “traçado eivado de vícios”, com “desenvolvimento moroso, indeciso e com paradas e retomadas anormais do instrumento escrevente”, que seriam “próprios de lançamentos grafados com falta de espontaneidade”. E lista diferenças, em relação às assinaturas consideradas verdadeiras, como “a inclinação de eixos gráficos”, “os espaçamentos interliterais e intervocabulares”, “o comportamento em relação à linha de pauta” e a “relação de proporcionalidade gráfica”.
Segundo o parecer enviado por Toron à Polícia Federal, Michael Klein “era o responsável pela administração da empresa à época, tendo realizado pessoalmente o protocolo físico dos documentos falsos perante a Junta Comercial”, então, ao ter levado os documentos em papel para serem registrados oficialmente, deve ser ouvido pela Polícia Federal.
Representação infundada
Procurada, a defesa de Michael Klein afirma que o pedido de inquérito “trata-se de representação improcedente, infundada e espúria”. “Retrata a peça, a execrável postura do representante, que não se peja em requerer a instauração de um inquérito policial, contra um de seus irmãos e colocando em dúvida as assinaturas de seu próprio pai, renomado empresário, em documentos datados de 2013 e 2014, ou seja, há nove e dez anos atrás”, escreveu à reportagem João Da Costa Faria, do escritório Faria Advogados e Consultores de Empresas, representante de Michael.
“Para se afastar, de plano, qualquer foro de veracidade, na fantasiosa peça, basta se alegar que o representado tinha, por desfrutar da absoluta confiança de seu genitor, procuração pública, com todos os poderes. Como sempre tratou seu pai com o devido respeito, haurindo todos os ensinamentos dele recebidos, principalmente o da honestidade, jamais iria desonrá-lo, adulterando qualquer documento relativo à empresa Casa Bahia.”
O advogado também alega que Saul deixou de comparecer à empresa a partir de 2008 e desconhece, “a partir de então, toda a trajetória traçada até o passamento do patriarca, Samuel Klein”. Por fim, alega que o testamento foi lavrado no 4.º Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos de São Caetano do Sul, junto à tabeliã, e teve como testemunhas dois advogados então integrantes do escritório Pinheiro Neto.
“Talvez a explicação para o incogitável procedimento do representante se deva ao fato de ter recebido uma Ação de Interdição de seu próprio filho; de ter sido alvo de noticiário da mídia televisiva, escrita e radiofônica, a respeito de seu envolvimento com mulheres; de figurar no polo passivo de Ações Civis Públicas, intentadas pelo Ministério Público do Trabalho (R$ 80 milhões); Serviço de Orientação à Família e Centro Santo Dias de Direitos Humanos (R$ 100 milhões – 14ª Vara Cível da Capital); Ação Criminal na Comarca de Barueri (em razão dos propalados encontros com mulheres); Ações Trabalhistas alusivas a aliciamento dessas mulheres; derrota em sua candidatura a vice-prefeito do município de São Caetano do Sul, em 2020, e questionada doação de R$ 80 milhões a uma agremiação esportiva – Associação Desportiva São Caetano”, escreve Faria.
Denúncias sexuais
Há quase três anos, Saul se tornou alvo de uma série de denúncias relativas a exploração sexual de mulheres, e que podem caracterizar o comando de uma rede de aliciamento e prostituição, para benefício próprio. Pelo menos 14 mulheres fizeram acusações ao herdeiro de Samuel. Os relatos incluem episódios de estupro, prostituição e tráfico de mulheres. As jovens seriam convidadas a participarem de festas organizadas em imóveis do empresário, e muitas vezes surpreendidas ao serem abordadas sexualmente.
As investigações correm desde setembro de 2020, a partir de denúncias feitas na Delegacia de Defesa da Mulher de Barueri, e, nos meses seguintes, relatos das acusadoras começaram a surgir na imprensa. A partir disso, outros processos foram iniciados. O Ministério Público do Trabalho pede R$ 80 milhões, em ação civil pública, que seriam pagos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), por conta das acusações de escravidão sexual. A defesa do empresário alega que ele mantinha relações consensuais com as mulheres e que não havia violência.
Saul também se tornou figura conhecida no meio futebolístico. Foi ele o grande responsável pelo sucesso do time de São Caetano, cidade-sede das Casas Bahia. Na virada para os anos 2000, a equipe se tornou uma potência do futebol brasileiro, recebendo apoio financeiro e patrocínio de fornecedores da rede de varejo, como a Consul, e da própria Casas Bahia. Antes da negociação da rede de varejo ao GPA em 2009, Saul era responsável pela diretoria comercial da empresa e pelo relacionamento com os fornecedores.
O São Caetano chegou a disputar a final da Copa Libertadores da América de 2002 e foi duas vezes vice-campeão brasileiro, em 2000 e 2001, além de ter se sagrado campeão paulista de 2004. Em 2019, ele buscou replicar esse sucesso comprando a Ferroviária, de Araraquara, tradicional time do interior de São Paulo. Mas, depois das denúncias de exploração de mulheres, deixou a gestão da equipe.
Reconhecimento de paternidade
No entanto, mesmo que Saul tenha acatada a sua alegação de ter sido prejudicado, a herança não deve ser rapidamente distribuída. Afinal, a partilha não foi homologada até hoje, por conta da contestação de um pretenso quarto herdeiro de Samuel. Moacyr Ramos de Paiva Agustinho Junior, falecido em 2021, iniciou em 2011 a requisição do reconhecimento de paternidade por parte de Samuel e pedia a sua parte na herança. Agora, a família de Moacyr demonstra interesse em dar prosseguimento ao caso. A Justiça extinguiu o caso depois da sua morte, mas a família apresentou recurso que aguarda decisão.
Segundo o advogado do requerente, Anderson Hamermüler, Samuel não quis fazer exame de DNA em vida, e agora há o pedido para que os herdeiros do dono da Casas Bahia e de Moacyr deem continuidade aos exames. Pelo lado dos filhos de Samuel, a alegação é que Moacyr deveria ter realizado exame de DNA com o irmão, filho do homem que o registrou. Os representantes do pretenso herdeiro contestam isso como uma manobra para arrastar o processo.
Outra alegação da parte de Moacyr é que parte relevante da herança de Samuel já havia sido antecipada em 2009, no época da negociação da venda do controle das operações de varejo da Casas Bahia para o GPA. Por uma série de atos societários, R$ 2,65 bilhões foram divididos em três partes de R$ 883,8 milhões para Michael, Saul e Eva.
Em 2022, em uma outra briga envolvendo os irmãos, Saul questionou ter deixado de receber os recursos de um acordo firmado com Michael, pelo qual teria direito a um empréstimo de R$ 30 milhões, depositado por meio de diversas parcelas. Mas Michael teria decidido interromper os pagamentos quando faltavam R$ 13,5 milhões a serem repassados, com a alegação de que o irmão estaria queimando os recursos. Com a divulgação das denúncias pela imprensa do caso de exploração sexual contra Saul, a família reforçou o interesse de não repassar mais o dinheiro ao irmão.