A Nivea, marca da gigante alemã Beiersdorf, está no Brasil há 110 anos. Apesar de 56% da população do País se autodeclarar preta ou parda, a empresa acabou de lançar por aqui, pela primeira vez, uma linha de produtos especialmente pensada para a pele negra. Os produtos, que começaram a chegar ao mercado em julho, ganharão uma campanha publicitária a partir da segunda quinzena deste mês.
O movimento vem cinco anos depois de um dos grandes tropeços da empresa no que se refere à questão racial: a oferta e a promoção, em quatro países da África – Senegal, Gana, Camarões e Nigéria –, de um produto cuja “função” era clarear a pele negra. A campanha, na época, incluía um vídeo publicitário em que uma mulher usava um hidratante e via sua pele ficar mais clara – dando a entender que, assim, ela ficava mais bonita.
A linha atual, batizada de Beleza Radiante, vai atender a necessidades específicas da pele negra, a partir de uma formulação pensada para ela. Em entrevista ao Estadão, a diretora de marketing da Nivea no Brasil, Andréa Bó, admitiu que o movimento demorou bastante para chegar. “Há um atraso de toda a indústria e da própria Nivea nesse sentido”, afirmou. Ela lembrou também que se trata de um desenvolvimento global. Os produtos serão vendidos inicialmente no Brasil, mas também serão distribuídos em países da África, como África do Sul, Nigéria, Gana e Quênia.
Andréa Bó, diretora de marketing de Nivea no Brasil
Além das críticas que enfrentou em 2017, a executiva da Nivea conta que o desenvolvimento da Beleza Radiante também teve impacto das discussões envolvendo o assassinato de George Floyd por um policial branco na cidade americana de Minneapolis. No entanto, antes de entrar na questão racial e de falar para o público negro, a empresa desta vez decidiu se cercar de gente que entende do assunto.
“A resposta foi justamente nos cercar de agências especializadas de comunicação com esse foco na questão racial, como a Black Influence, para não cometermos erros”, afirma a executiva, mencionando que, além da linha de produtos, a companhia lançou em fevereiro do ano passado um manifesto de propósitos da Nivea, chamado de “O toque que transforma e inspira conexões”.
Letramento racial
Com atuação voltada principalmente ao marketing de influência, a Black Influence, fundada em 2019, foi escolhida para desenvolver a campanha da nova linha da Nivea com outras três agências, entre elas a Leo Burnett, que atende globalmente a marca.
O projeto teve início no fim de 2021, com encontros virtuais e presenciais, em que foram reunidos todos os 320 funcionários da Nivea no Brasil. Houve diversas ações educacionais, com palestras de personalidades, influenciadores e intelectuais negros – entre os quais estão o próprio Ricardo Silvestre, fundador da Black Influence – sobre práticas que estão enraizadas no dia a dia de trabalho e dão força ao racismo estrutural.
A ação institucional inaugurou uma frente de trabalho dentro da Black Influence, que já estava idealizada por Silvestre desde o início de seu negócio. Antes de abrir sua própria empresa, o publicitário trabalhou por quase uma década em agências de grande porte do mercado nacional, nas quais com frequência era o único negro.
“Muito do que a gente tem construído tem como base essa minha referência do mercado, que nunca foi positiva, por eu sempre ter sido uma das únicas pessoas pretas nos lugares em que trabalhei”, conta o publicitário. Para ele, esse trabalho de letramento racial dentro das empresas pode ser uma forma de trazer pessoas brancas para a luta em favor da pauta antirracista.
Ricardo Silvestre, fundador da Black Influence
Andréa Bó, da Nivea, diz que, após a linha ser apresentada internamente, parte dos 22% de funcionários negros da companhia decidiu fazer um manifesto em vídeo tanto sobre a linha a ser lançada quanto a respeito do letramento racial. “Isso nos deu muita satisfação. Pessoas que estavam direta ou indiretamente envolvidas com esse lançamento gravaram esse manifesto para o público interno. Essa reação é o que traz toda a nossa veracidade, ter essas pessoas completamente engajadas”, afirma.
Foco nos avanços
AD Junior, publicitário e diretor de marketing da Trace Brasil, primeiro canal de cultura afrourbana do País, acredita que é importante ser crítico sobre as ações de empresas. Ele afirma que os negócios não devem ser “parabenizados”, mas é importante dar apoio às mudanças. Não seria produtivo, segundo ele, apenas destacar e trazer para este momento o problema ocorrido há cinco anos.
“Se a gente sempre for brigar com as marcas que se esforçam para mudar, por causa de coisas ruins que aconteceram, a gente não dá força para que esse movimento de letramento racial continue, que outras agências como a Black Influence sejam chamadas a participar de campanhas”, afirma AD, que também é influenciador digital e aborda o letramento racial em redes sociais como Instagram e no YouTube.
AD Junior, publicitário e diretor de marketing da Trace Brasil
Para AD, o foco precisa estar “no fato que, após 353 anos de escravidão e 134 anos sendo ignorados, algumas empresas, ainda poucas, se movimentam na direção da pauta antirracista”. Ele diz ter “muita certeza de que qualquer executivo que decida chamar uma agência como a Black Influence ainda enfrenta resistência interna”.
O publicitário destaca que a mudança que permitiu a discussão sobre a beleza negra em campanhas tem origem nas redes sociais, no trabalho de mulheres como Ana Paula Xongani e Gabi das Pretas. “Foi um momento de falar de empoderamento, da transição capilar, de trocar a nomenclatura ‘cabelo duro’ por ‘cabelo crespo’”, lembra AD. “Esse movimento de chamar influenciadores negros para falar de beleza no Brasil não é um favor das empresas, é reconhecimento, é resultado de um trabalho que ganhou força.”