Uma das coisas que mais identificam São Paulo são suas padarias. A cidade, segundo informações do governo do Estado, tem 12,7 mil panificadoras. E, desse total, 13 têm algo bem especial: mais de 100 anos de existência.
Na realidade, elas são o grupo mais representativo dentro do conjunto de empresas centenárias da cidade, que compreende 111 companhias, segundo um levantamento feito pela Associação Comercial de São Paulo (ACSP).
Além disso, o comércio mais antigo de São Paulo é uma padaria: a Santa Tereza Padaria e Confeitaria, na Praça João Mendes, no Centro. “Originalmente, ela foi fundada, em 1872, na Rua Santa Tereza, que foi desativada na década de 40 para um reforma na região da Catedral da Sé”, conta Natalia Maturana, uma das sócias-proprietárias da padaria.
A Santa Tereza só não é mais velha que a faculdade de direito da Universidade de São Paulo, no Largo São Francisco, que é de 1827, e que a Beneficência Portuguesa, de 1859. Mas como nem a universidade nem o hospital são comércios, o título ficou com a padaria.
Hoje, a Santa Tereza é muito frequentada por turistas. “O nosso movimento se sustentava com o pessoal do quadrilátero jurídico aqui na região”, conta Natalia, se referindo ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), ao Fórum João Mendes, à faculdade do Largo São Francisco e à Secretaria da Justiça e Cidadania - todos ali perto.
“Desde a pandemia, porém, o movimento caiu bastante, quase 60%. Muita gente agora faz ‘home office’. Aí começaram a vir os turistas. Mas, mesmo assim, a gente atende uma média de 700 pessoas por dia.” Só de filés à parmegiana - um dos carros-chefes da casa - são servidos 120 diariamente.
Para a Santa Tereza e também para outras padarias centenárias, nenhum momento nessas décadas todas de existência foi mais difícil que a pandemia. Mesmo funcionando na quarentena (mas sem servir no espaço), a panificadora da praça João Mendes ficou com apenas 9% do faturamento que tinha em 2020. A missão agora é recuperar o tombo.
O que faz uma padaria durar tanto?
Para Natalia, o segredo da longevidade é um conjunto de fatores: um deles é que a padaria é o local onde podem se alimentar desde a pessoa que só tem um real para comprar um pãozinho até quem pode bancar um filé à parmegiana, que sai por R$ 55,90 por pessoa. E, muitas vezes, eles se sentam lado a lado no balcão.
Na Confeitaria Vera Cruz, no Tatuapé, isso acontece todo dia. A panificadora, que na verdade é uma quase centenária (fará 100 anos em 22 de setembro), tem um enorme balcão onde podem se sentar 60 pessoas uma ao lado da outra. Ali, são servidos até 1,6 mil fatias de pizza por dia, principalmente às sextas-feiras.
Um dos segredos da resiliência das padarias está na paixão que as famílias padeiras têm pelo negócio, de acordo com Antônio Bruno, gerente da empresa. Tanto a Vera Cruz quanto a Santa Tereza são tocadas por famílias - embora já não sejam a família fundadora.
A Santa Tereza, por exemplo, foi comprada pelos Maturana em 1995. “A gente é uma família de padeiros, daquelas que a casa ficava em cima da padaria. Nas férias da escola, meu pai dava folga para as caixas e eu trabalhava no caixa da padaria. Assim, fomos tomando gosto”, diz Natália.
A família de Antônio Gonçalves, português da Ilha da Madeira, também comprou a Vera Cruz dos fundadores, nos anos 40. Ele faleceu aos 93 anos em abril passado. Mas seus irmãos e descendentes, além de executivos que não são da família, como Bruno, tomam conta do negócio, que além da padaria, inclui uma área de restaurante com mesas para 60 pessoas. No segundo andar do prédio fica a produção e no terceiro, o estoque.
O ambiente na Vera Cruz é todo modernos, e só faz referência ao século passado num grande painel, no interior da área de vendas, ao lado do balcão. Segundo Bruno, uma vez, há 18 anos, veio um menino do bairro à padaria. “Ele se apresentou assim: ‘dizem que eu sou pichador, mas na verdade sou artista’”, conta. O menino se ofereceu para pintar o painel, com cenas da São Paulo dos anos 20, e o gerente topou. Hoje, o painel, pintado pelo então iniciante Eduardo Kobra, é o ponto alto da decoração do lugar.
Clima de passado
Ar de século 19, mesmo, tem a Mercearia Godinho, no mesmo imóvel desde 1905. A data de fundação da casa é contraditória: muitos dizem que é de 1888. Mas o registro na ACSP é de 1905.
Com prateleiras de madeira antigas, o piso preservado e um grande relógio centenário, a mercearia é muito charmosa. No entanto, não foi criada como padaria. Era uma loja para vender “os sabores das terras de onde vinham os imigrantes de São Paulo”, como costumava dizer o fundador José Maria Godinho. O atual dono, Miguel Romano, comprou o negócio em 1995.
Para não depender só da sazonalidade - vender bacalhau na Páscoa e panetones e bebidas no Natal -, Romano começou a deixar a mercearia com cara de padaria, com uma vitrine sofisticada de doces e pães.
O segredo para o negócio durar tanto, segundo ele, é ter de tudo que o cliente quer - além de um “atendimento excepcional”. Bruno, da Vera Cruz, concorda. “A gente faz qualquer coisa que o cliente peça. Até pão na chapa com manteiga enxugado no guardanapo. E como a gente conversa com todos eles - chamamos pelo nome muitos dos clientes - ficamos sabendo o que eles querem e vamos mudando conforme essa demanda”, diz o executivo. Por isso a padoca vai se transformando com o tempo
Ritmo intenso
É bom saber que tocar uma padaria não é nada fácil. Elas funcionam 24 horas ou abrem às 5h e só fecham às 22h, lembra Cristina Souza, presidente da Gouvêa Foodservice, empresa da consultoria Gouvêa Ecosystem. “As padarias funcionam praticamente como uma fábrica: área de panificação, fatiação de frios, encomendas, refeições, cafés, sucos, confeitaria, etc. Essa complexidade envolve equipes numerosas, necessidade de capital de giro, capacidade de manutenção dos padrões de qualidade e constante conexão com indústrias fornecedoras e com os desejos do consumidor”, explica a especialista.
Por isso - na maioria das vezes -, é algo de família. “Todo mundo se envolve, os pais, os filhos e os netos muitas vezes trabalham todos juntos ao mesmo tempo”, diz Natalia. Até os empregados, muitas vezes, passam o cargo de pai para filho. Na Vera Cruz, por exemplo, alguns dos 160 funcionários têm mais de 30 anos de casa.
O problema é quando a geração seguinte não se interessa pelo negócio. Na Godinho, isso pode ser um problema. Os dois filhos de Romano, por exemplo, vivem em Barcelona. “Vou tocar a casa até quando eu puder. Eu adoro. Mas quando não conseguir mais, talvez eu venda”, diz o proprietário. Na Santa Tereza, o problema é outro. “Espero que meus filhos e os filhos dos meus irmãos também tomem esse gosto por pães e padaria. Mas temo que isso não aconteça: eles só pensam em celular”, diz Natalia.
Outra coisa que ameaça a longevidade dessas centenárias é a degradação do centro de São Paulo. Muitas dependem da visita de turistas, como a Godinho e a Santa Tereza. E a violência na área atrapalha.
Mesmo assim, a brasileira Rosa Rodrigues, que mora em Londres, quando foi ao centro de São Paulo com o marido britânico Danny O’Sulivann, não pensou duas vezes quando indicaram a Santa Tereza para uma refeição. “Se é tão antiga, deve ser muito boa”, disse ela. O casal não se impressionou com o ambiente, mas disseram que não estavam ali atrás de decoração. “A gente veio aqui para comer e gostamos muito”, diz Rosa.