Um projeto realizado por 160 pequenos produtores rurais, pela ONG The Nature Conservancy (TNC) e pelo Mercado Livre pretende regenerar 2.717 hectares de Mata Atlântica na Serra da Mantiqueira, em uma área que se estende pelos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A iniciativa começou em 2021 e também visa à geração de créditos de carbono.
O projeto utiliza o conceito de pagamento por serviços ambientais (PSA). Cada integrante receberá R$ 300 por hectare de floresta restaurado por ano nos primeiros dez anos. Nesse período, duas “colheitas de créditos” devem ser realizadas, nos anos cinco e dez.
Dos créditos que forem gerados nessa década, 80% será do Mercado Livre, para pagar o investimento inicial da companhia em tornar o projeto possível e como forma de compensação pelo impacto ambiental das operações; os 20% restantes poderão ser negociados livremente pelos produtores. Nos 30 anos seguintes, os produtores terão 100% dos créditos à disposição.
A Mata Atlântica é o bioma mais devastado do Brasil, com apenas 24% de sua cobertura original ainda existente. Também é onde se concentram os principais centros urbanos brasileiros como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, cerca de 80% do PIB e a demanda por recursos naturais como água, de acordo com dados da ONG SOS Mata Atlântica. Por essas razões, foi o bioma escolhido pelo Mercado Livre e pela TNC.
Após o Mercado Livre iniciar o projeto para entender como a restauração florestal pode servir para mitigar os impactos de uma empresa, a TNC pensou no formato. “Tivemos liberdade de desenhar o projeto e chegar a um bom modelo”, comenta Adriana Kfouri, diretora do projeto de restauração na Mantiqueira da TNC Brasil.
A fase seguinte foi a atração de proprietários de pequenas propriedades na área determinada, até chegar aos 2.717 hectares. Segundo Kfouri, foram muitas visitas a locais como associações de produtores, sindicatos rurais, igrejas e cooperativas, e o sucesso foi possível devido a contatos de projetos anteriores. “Temos atuação de muitos anos, muito consolidada no território. É necessário confiança entre todos os atores, porque todo mundo tem medo de assinar um projeto de longo prazo”, explica.
Segundo o Mercado Livre, foram investidos R$ 7 milhões desde o início do projeto — R$ 1,3 milhão em pagamentos aos produtores e o restante em equipamentos e outros itens necessários para a restauração florestal, como sementes, e no monitoramento e certificação. “A maioria dos nossos projetos ambientais é voltado para restauração, porque fomenta geração de renda e ativa a economia dos municípios. Sabemos do potencial que a restauração tem de gerar renda e bem estar”, cita Laura Motta, gerente sênior de sustentabilidade do Mercado Livre.
Benefícios compartilhados
Para os participantes do projeto, o dinheiro recebido pelo PSA e os créditos de carbono são importantes, mas também há benefícios para suas propriedades. “Percebemos a paisagem completamente diferente, como tudo mudou. Vemos melhoras no clima, na biodiversidade da propriedade, na produção de alimentos”, cita Thales Guedes Ferreira, da cidade de Cruzeiro (SP).
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Thales trabalha com agroflorestas há alguns anos, e seu sítio produz desde frutas “comuns” como pêra, tangerina e abacate a frutas típicas da Mata Atlântica como cambucá, bacupari, grumixama, uvaia e araçá. Porém, como ele mesmo define, uma agrofloresta é como um filme, em que diferentes cenas vão passando, e nas próximas, ele pretende plantar café e palmito juçara.
A experiência com agroflorestas de Thales o tornou um dos primeiros participantes do projeto, assim como já o levou a fazer palestras para outros agricultores da região, incluindo assentados da reforma agrária. Ele também participa da Rede Agroflorestal do Vale do Paraíba, que organiza mutirões para ensinar o manejo desse tipo de produção na prática. Os mutirões podem ser para o início do plantio, em que cada integrante doa uma muda, sementes ou outras coisas para um colega, ou de manejo — esses já mais perigosos por contarem com instrumentos cortantes e demandarem experiência.
Thales vê que o PSA facilita muito para atrair participantes para o projeto. “Ninguém consegue fazer restauração sozinho. Alguns proprietários não vão querer realizar se não trouxer um lucro ou alguma coisa que possa contribuir”, avalia.
Donos de um sítio em Resende (RJ), o casal Grici e Luiz Ricardo Alves conta ver outras coisas positivas. “Estamos vendo resultado todo dia. Estamos sempre limpando, cuidando, e recebemos uma orientação biológica legal”, relata Luiz Ricardo. “Percebemos a restauração do ambiente, vemos bichos como lobo guará, tatu, arara, virou um corredor ecológico protegido para a bicharada poder chegar ao rio que passa por aqui”.
Para eles, o crédito de carbono vai ser um dos produtos que tem. “Plantamos limão, banana, pocã (tangerina). Também estamos começando um pequeno projeto apiário, porque vai ajudar na produção de frutas. O crédito sobe o valor agregado de tudo”, completa.
Futuro
Os envolvidos no projeto aparentam tranquilidade sobre o período inicial de dez anos e as duas primeiras colheitas. Contudo, há diferentes questionamentos sobre o que virá a seguir — ações do tipo costumam ser pensadas inicialmente para durar 40 anos, e os 30 anos seguintes podem ser diferentes para o Mercado Livre, para os produtores e para a TNC.
O Mercado Livre pretende avaliar os resultados dessa e de outras iniciativas ambientais do programa Regenera América a partir do contexto regulatório da economia verde e do mercado de créditos de carbono. “Recentemente, se encerrou o primeiro ciclo de investimentos do Regenera, estamos implantando as iniciativas e buscando ver quais foram os modelos mais exitosos”, resume Motta. Além do projeto na Serra da Mantiqueira, outros seis projetos estão no Brasil e há dois no México.
Outro ponto é incentivar mais companhias a fazerem um trabalho parecido em suas estratégias ambientais e de mitigação dos impactos financeiros. “Uma empresa precisa destravar novos projetos para outras empresas”, comenta Mateo Saavedra, consultor de carbono e mudanças climáticas do Mercado Livre.
Para a TNC, já existe a busca por outras empresas que possam apoiar uma expansão do projeto, assim como por outras ONGs que possam conduzir trabalhos parecidos em outras partes do País e já contem com a confiança de produtores locais. O auxílio a quem está gerando os créditos de carbono também é necessário. “É um ativo para o proprietário rural, e o preço deve ter tendência alta pela demanda. Se o proprietário entendeu bem essa lógica, pode aproveitar”, diz Kfouri.
Mas pode não ser tão simples assim continuar. Créditos de carbono precisam de certificação com metodologia científica para serem negociados, de forma a garantir a integridade. As maiores empresas de certificação são internacionais, embora brasileiras busquem ocupar esse espaço. Assim, para que os produtores possam vender os créditos gerados, a melhor alternativa seria uma união que permita pagar uma certificadora.
“Hoje, com sete hectares no projeto, é inviável pagar. Pagar uma certificadora não é fácil nem barato. Só funciona se for com todos os produtores do projeto”, reflete Thales. Ele cita também que os projetos costumam capturar mais carbono no começo, enquanto a floresta se regenera.
Se existe essa dúvida sobre o aproveitamento dos créditos, o que não existe é sobre os benefícios para a natureza. “Gerar crédito de carbono é legal, mas o mais importante é regenerar um lugar que é nosso. Para daqui a 30 anos alguém dizer ‘tinha um casal de malucos que regenerou isso aqui’, deixar a propriedade guardadinha”, projeta Luiz Ricardo.