As ondas de recuperação judicial de empresas vão ficar mais frequentes, diz especialista


Advogado Eduardo Munhoz, especialista em recuperações, diz que o País vive um momento de alta do número de casos por causa dos juros elevados; ele também afirma que processo vive momento de perda de credibilidade

Por Luciana Dyniewicz e Renée Pereira
Atualização:
Foto: Leo Martins/Estadão
Entrevista comEduardo MunhozAdvogado e professor da USP

Um dos maiores especialistas em recuperação judicial do Brasil, o advogado Eduardo Munhoz diz que a economia tem mostrado uma redução de tempo entre os períodos de crescimento e de crise econômica em todo o mundo. “Hoje, esses ciclos estão mais curtos; as ondas de recuperações judiciais estão menos espaçadas.”

O professor da USP, que já reestruturou mais de R$ 150 bilhões em crédito de empresas, afirma que o Brasil vive hoje um momento de alta do número de casos especialmente devido ao elevado custo do crédito e de receitas estagnadas. “A percepção é que há muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade, e outras menos, mas o número é muito grande.”

Na avalição de Munhoz, há um problema sério no País de falta de eficiência dos instrumentos de recuperação e uma dificuldade de adotar soluções realmente estruturais, o que acaba prolongando a crise nas empresas. “A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.”

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Nos últimos anos, Munhoz participou das maiores recuperações judiciais do País, como Odebrecht, PDG, OAS, EAS, Grupo X, Oi, entre outras. Até mesmo por isso, tem sérias críticas ao processo, que hoje ele acredita estar enfrentando um perigoso risco de perda de credibilidade.

Em entrevista ao Estadão, ele contou suas preocupações sobre a instituição da recuperação judicial e como dar mais eficiência aos instrumentos desse processo. Confira a seguir a entrevista:

Essa onda de crise e recuperação judicial é semelhante à de 2016?

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De fato existe uma nova onda e atribuo isso a dois fatores primordiais: taxa de juros elevada e o momento da economia brasileira. Hoje as empresas não têm o mercado de capitais como uma fonte fácil de financiamento, não temos IPO (oferta pública de ações) nem emissão de debêntures. Teve um momento em que tínhamos empresas em dificuldade, mas a maneira que ela encontrava de sair da situação era fazer um IPO. O que é uma contradição. Agora algo que também ocorre na economia mundial é que, no passado, tínhamos ciclo de crescimento e de crise econômica mais espaçados no tempo. Hoje, esses ciclos são mais curtos. Tem também crise de setores específicos. Empresas que deixam de existir porque a tecnologia mudou o mercado. O mercado financeiro também se sofisticou muito. O nível de alavancagem das empresas aumentou e as ondas de recuperações judiciais ficaram menos espaçadas no tempo.

Qual o reflexo da crise macroeconômica?

Sempre vai ter empresas crescendo, abrindo capital, e empresas em dificuldade. Mas, com crise macroeconômica, é outra história. Faz parte da economia contemporânea que você tenha empresas lidando com momentos de crise financeira mais ou menos graves. Até por isso, na literatura econômica internacional, cada vez mais se dá relevância ao papel de se ter um sistema de solução da crise da empresa eficiente. Isso é um fator de resiliência econômica. Resiliência é fundamental. Quando você não tem um instrumento para solucionar a crise de uma forma estrutural, ela tende a se prolongar. Aí as empresas vão morrendo aos pouquinhos.

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Munhoz diz que há falta de eficiência dos instrumentos de recuperação judicial no Brasil Foto: Leo Martins/Estadão

É o que está acontecendo no Brasil?

O Brasil tem um problema sério de falta de eficiência nos seus instrumentos. Tanto que é muito comum que as mesmas empresas entrem em várias rodadas de reestruturação de dívida ao longo do longo tempo. A gente tem muita dificuldade no Brasil de adotar soluções realmente estruturais. A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.

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Como melhorar esse sistema de solução no País?

É preciso aprimorar a lei em alguns pontos. Faz pouco tempo, teve uma mudança na lei de falência e de recuperação. Houve avanço, mas acho que ficou aquém do desejado. Mas o problema não é só a lei. São as instituições encarregadas de aplicar a lei. A gente está vivendo um momento em que estou com receio de que o instituto da recuperação judicial esteja entrando numa crise de credibilidade no País. Para o instituto ter credibilidade, ele não pode ser o instituto do devedor ou dos sócios do devedor, ele é um instrumento de todos os agentes econômicos, para buscar uma solução que coletivamente seja melhor. Ele não é um instrumento do dono da empresa, ele é um instrumento coletivo. Se ele começa a ser usado como um instrumento judicial, de fazer prevalecer uma tese ou outra, sem transparência, sem informação, começa a ter uma situação de problemas de relação entre instituição encarregada de aplicar a lei, na nomeação da administradora judicial, honorários estratosféricos. Foi o que aconteceu na falência e na concordata.

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Por quê?

Lá atrás nenhum agente econômico confiava na falência/concordata. A lei de 2005 veio para mudar isso, deu mais poder de influência para os credores. Por isso é que tem assembleia de credores e elaboração de plano. Na concordata, o juiz decidia e mandava suspender o pagamento. Agora, não. Tem de ter negociação. Nesse modelo, a solução é encontrada pelo mercado. O poder de tomada de decisão é dos agentes econômicos. A instituição está ali para coordenar, dar transparência, assegurar que a lei seja cumprida. Se o instituto não é usado dessa forma, ele pode entrar em uma crise de credibilidade. Aí você começa a ter uma aversão do mercado ao instrumento.

Já estamos nessa crise?

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Não posso citar casos, mas, ao longo desse ano, tem havido muita crítica à falta de transparência, aos honorários imensos, à dificuldade de os credores terem agentes da sua confiança nomeados para acompanhar os trabalhos, para ter acesso à informação. A lei funciona quando tem previsibilidade e segurança sobre a forma que ela é aplicada. Se a cada caso, muda a interpretação da lei, isso cria insegurança para o mercado. Como um acadêmico que estuda a matéria, eu tenho, sim, forte crítica ao momento atual. Mais do que isso, tenho receio de que o instituto esteja entrando em uma forte crise de credibilidade. Os agentes econômicos ficam pensando que, quando um caso vai para o Judiciário, para a recuperação, já não sabem mais o que vai acontecer. Não pode ser assim.

Qual é o resultado da falta de credibilidade?

O resultado disso é que, se, no sistema brasileiro, o instrumento principal para você resolver a crise é a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial - na qual você também precisa da homologação do juiz -, você fica sem instrumentos. Quem quer usar o instrumento com transparência para resolver uma crise, vai acabar sendo punido pelo mal uso do instrumento. Aí se não tem recuperação judicial, não tem instrumento para resolver a crise. Esse é o problema. A gente vinha avançando. Agora retrocedeu. O empresário brasileiro só pede recuperação quando não há mais saída. Nos últimos dez anos, gradualmente, ainda que lentamente, estava havendo um processo de conscientização e chegando a haver momentos em que o próprio credor apontava que a melhor solução era uma recuperação, porque se não não consegue achar uma solução coletiva para o problema. Estávamos evoluindo para isso. Hoje começo a ouvir no mercado que, quando tem recuperação, não se sabe o que vai acontecer.

Munhoz diz que o País continua num momento de alta do número de recuperação judicial, desencadeado com a crise da Americanas; a combinação de juro elevado e receita estagnada faz aumentar o número de casos Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO CONTEUDO

Essa mudança na percepção ocorreu neste ano?

Acho que, no último ano, temos tido grandes recuperações judiciais com muita repercussão tanto perante bancos como mercado de capitais, eu digo, debêntures e bonds (títulos). Os principais pontos criticados são falta de transparência, falta de informação, falta de possibilidade de participação efetiva dos credores no processo, imprevisibilidade das decisões, isto é, decisões que parecem contrariar a lei, parecem forçar a interpretação para atender a uma demanda do caso. E também situações que têm sido denunciadas pela mídia sobre a questão de como é a relação entre o judiciário e outros atores que atuam na recuperação judicial.

O que e quem causou essa desvirtuação da RJ?

Uma combinação de fatores. Um advogado diz para o empresário: ‘Fique tranquilo que eu entro com a recuperação e vão dar todas as decisões a seu favor’. Se o empresário acreditar e, pior, acontecer de verdade, o instituto entra em crise. Não pode ser assim. Então, acho que é uma combinação de diversos fatores. O que eu diria é que, quando a lei foi aprovada, houve um movimento no judiciário para aplicar bem a lei. São Paulo, por exemplo, criou as varas especializadas. Outros estados seguiram a mesma linha. Essas varas, na verdade, nasceram como Vara de Falência. Foi junto à aprovação da lei de 2005. Tentaram se especializar e criar um ambiente para aplicar bem a lei e para ter coerência nas decisões, pois isso traz previsibilidade para o mercado. Foi caminhando por aí. Não estou dizendo que acabou a recuperação judicial. Mas acho que estamos em um momento de risco.

Qual o risco?

É importante para a economia brasileira que exista um instrumento para lidar com a crise das empresas. Esse instrumento precisa ser usado com transparência, eficiência, de maneira correta, sem outras influências, com equilíbrio nas decisões, com previsibilidade. Mais um exemplo: lembro que por volta de 2012 advoguei para um investidor que comprou ação da rede de distribuição de energia elétrica do Pará, era a Equatorial naquele momento. A Celpa entrou em RJ e houve a aprovação de um plano de recuperação. Nesse plano, houve a aquisição do controle da Celpa pela Equatorial. A Equatorial foi bem, os acionistas ganharam dinheiro, melhorou a distribuidora. É um caso de sucesso de RJ. Agora, naquele contexto, saiu uma medida provisória, ainda no governo da Dilma (Rousseff), proibindo que concessionária de concessão de energia elétrica entrasse em recuperação judicial. Agora estamos vendo a quantidade de discussões, não vou entrar no mérito delas, no caso da Light. Isso é um ambiente complicado. Primeiro tem uma lei proibindo, mas aí tentam achar uma maneira de lidar com a crise apesar de a lei ter mudado. Fica sem uma direção clara do caminho. O mínimo que precisa ter é previsibilidade sobre a regra do jogo. Com esse caso, fica claro que não tem e cria insegurança.

O caso da Light abala a instituição da RJ em si ou mais essa visão do investidor para o País?

A incerteza e a falta de previsibilidade em torno da crise da concessionária de energia elétrica não contribuiu. Para resolver a crise, você deveria discutir como é que organiza a dívida, como protege a empresa enquanto isso. Mas, no fim, o que vamos ver é um monte de discussão de tese jurídica. Cabe ou não cabe a recuperação de concessionária? Pode incluir a concessionária no processo da holding? Uma discussão de tese que não tem nada a ver com a solução do problema. Mas o tempo que se gasta com a discussão dessas teses jurídicas pode inviabilizar uma solução eficiente para o problema - é isso que chamo de ausência de previsibilidade e segurança. Se alguém vai comprar debênture, por exemplo, da Energisa ou da Enel, a primeira pergunta que o investidor vai fazer é: ‘se tiver uma crise na empresa, pode ou não pode recuperação?’ Não sei como responder isso. Isso faz parte do desenvolvimento do ambiente básico para o investimento. A gente está longe de ter previsibilidade e segurança.

Isso pode prejudicar o apetite do investidor estrangeiro?

Claro. Uma emissão de debêntures é um instrumento de financiamento da atividade da empresa. A empresa vai fazer uma grande emissão no mercado internacional para investir em infraestrutura, por exemplo. A primeira pergunta que o investidor faz é quais direitos caso o crédito não seja pago. Como funciona no Brasil o sistema de chapter 11? Eu até saberia dizer, mas a evolução dos casos está aumentando as dúvidas. Se tem uma recuperação, o investidor tem acesso à informação? Sabe exatamente qual é a condição econômica da empresa? Tem direito de voto? Pode votar individualmente? Pode aprovar plano contra a vontade do acionista controlador? São perguntas básicas, mas que temos dúvidas de responder. Uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia (EUA) que diz que o fator que determina a maior eficiência para resolver a crise da empresa é o Estado que vai julgar o caso. Se for Dellaware ou o Distrito Sul de Nova York, é grande a chance de dar certo. Daqui a pouco, no Brasil, talvez comece a acontecer isso. Uma recuperação judicial no interior de um Estado, perante um juiz que é da cidade que a única geradora de empregos é a empresa, aí não vai ter decisão que não seja favorável à empresa. Não vai ter decisão em favor do credor ou do investidor. Não pode ser assim.

Temos visto uma série de empresas grandes em recuperação judicial, e outras, ameaçadas. Com o juro alto podendo reduzir o faturamento delas e diante do grau de alavancagem, a tendência é que surjam novos pedidos?

A gente continua em um momento de aumento do número de casos. O custo do crédito está altíssimo, com o juro elevado. Se a receita não está crescendo, há uma combinação que faz aumentar o número de casos. A percepção é que tem muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade e outras menos, mas o número é muito grande. Muitos casos podem acabar se resolvendo em negociações privadas. Existe uma disposição, um reconhecimento dos agentes financeiros que é melhor uma negociação privada, até por conta do que mencionei, do que entrar num processo judicial. Agora, quando o problema até ultrapassa a questão da dívida puramente financeira, começa a afetar também fluxo de caixa, pagamento de fornecedor, aí é difícil evitar o caminho de uma recuperação judicial. Por isso, a tendência é, sim, aumentar o número de casos.

Essas empresas têm um perfil?

As empresas muito grandes são as que têm uma chance maior de encontrar uma solução que não passe pela recuperação judicial, que siga uma recuperação extrajudicial ou uma negociação. Mas há situações em que não tem jeito evitar uma recuperação. Acredito que há algumas empresas grandes que devem entrar em RJ. Não tenho dúvida disso não. Isso também é algo natural. O ideal é que fossem processos rápidos, bem negociados, eficientes e que permitissem que as empresas saíssem logo da crise. Esse deveria ser o objetivo.

Tem algum setor que está sofrendo mais?

Varejo é um setor em que isso tem ocorrido. Mas tem outros também. Tem empresas de infraestrutura cujos problemas não foram resolvidos até hoje. Há empresas na área de incorporação imobiliária ainda com problemas. Mas não é um problema setorial. Quase todas as empresas estão sujeitas a problemas com o custo de crédito super elevado, a ausência de fontes de crédito e as receitas que não estão subindo.

Há uma crítica recorrente no Brasil de que as empresas ficam em recuperação judicial por um período muito longo. Esse problema também tem se intensificado?

Acho que tem melhorado, mas muito pouco. Menos do que deveria. Brinco que são as empresas zumbis: convivem com os problemas eternamente e nunca voltam à vida normal. Mas a gente perdeu a oportunidade na mudança da lei anterior. Uma das ideias era que, após o plano de recuperação, a empresa voltasse à vida normal. A gente infelizmente manteve a ideia de que uma empresa fica por mais dois anos da recuperação judicial. Outro fator é que você precisa de um amadurecimento institucional para buscar soluções mais estruturadas.

As empresas brasileiras estão muito alavancadas?

Depende muito do setor e da empresa. Nos últimos anos, houve no Brasil um crescimento do mercado de crédito, o que é positivo. Historicamente, o País nunca teve fonte de financiamento privado para as empresas, o que é horrível. Obviamente, muitas empresas aproveitaram bastante esse boom. O problema no Brasil é que, às vezes, o empresário mais otimista faz um investimento acreditando que um monte de coisa vai acontecer, levanta dívida em função disso e o business plan não acontece. A dívida fica desproporcional ao tamanho do que ficou a empresa. Aí você tem ainda uma elevação muito abrupta da taxa de juros. Isso pega um monte de gente na curva. Acho que estamos nesse momento. Mas o mercado de crédito no Brasil ainda é muito menor do que em outros países mais desenvolvidos. A gente tem é um mercado de crédito muito concentrado. Cinco bancos têm 90% das transações financeiras. O fato de ter o desenvolvimento do mercado de capitais ao lado disso é um alento, pois está desconcentrando um pouco esse mercado. Isso é positivo, porque senão você tem muito pouca gente com um poder econômico muito elevado, o que acaba restringindo o crédito. O problema não está no excesso de crédito.

E onde está?

Acho que a gente tem de avançar em aumentar o acesso e diminuir o custo de crédito. Isso é crucial para o desenvolvimento das empresas brasileiras e aprimorar os instrumentos de recuperação do crédito quando você tem a crise. Melhorar a falência, por exemplo, é fundamental. Isso não foi feito. Pior que a recuperação judicial é a falência no Brasil. Ela funciona pessimamente. É quase como um sinônimo de que o credor não recebe nada. Isso é muito ruim, porque afeta a própria recuperação judicial. No Brasil, a falência funciona muito mal. Eu diria que é urgente que houvesse um projeto de reforma do capítulo de falências da lei.

E o que teria de ser feito?

Algo parecido com o que foi feito na lei de recuperação. Hoje a falência é presidida pelo juiz e tem um administrador judicial com poder imenso. Ele que manda em tudo, passa a gerir a massa falida, a tomar todas as decisões, é o encarregado de vender os bens e de pagar o passivo. Acho que tem de ter uma solução de mercado. Talvez os credores devessem escolher quem vai gerir a massa falida ou determinadas decisões teriam de ser tomadas em assembleia de credores. Tem de ter mais informação, transparência e dar mais oportunidade de participação aos agentes privados para encontrar a solução que entendem ser a mais adequada. Então, um ambiente menos burocratizado, menos judicializado.

Um dos maiores especialistas em recuperação judicial do Brasil, o advogado Eduardo Munhoz diz que a economia tem mostrado uma redução de tempo entre os períodos de crescimento e de crise econômica em todo o mundo. “Hoje, esses ciclos estão mais curtos; as ondas de recuperações judiciais estão menos espaçadas.”

O professor da USP, que já reestruturou mais de R$ 150 bilhões em crédito de empresas, afirma que o Brasil vive hoje um momento de alta do número de casos especialmente devido ao elevado custo do crédito e de receitas estagnadas. “A percepção é que há muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade, e outras menos, mas o número é muito grande.”

Na avalição de Munhoz, há um problema sério no País de falta de eficiência dos instrumentos de recuperação e uma dificuldade de adotar soluções realmente estruturais, o que acaba prolongando a crise nas empresas. “A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.”

Nos últimos anos, Munhoz participou das maiores recuperações judiciais do País, como Odebrecht, PDG, OAS, EAS, Grupo X, Oi, entre outras. Até mesmo por isso, tem sérias críticas ao processo, que hoje ele acredita estar enfrentando um perigoso risco de perda de credibilidade.

Em entrevista ao Estadão, ele contou suas preocupações sobre a instituição da recuperação judicial e como dar mais eficiência aos instrumentos desse processo. Confira a seguir a entrevista:

Essa onda de crise e recuperação judicial é semelhante à de 2016?

De fato existe uma nova onda e atribuo isso a dois fatores primordiais: taxa de juros elevada e o momento da economia brasileira. Hoje as empresas não têm o mercado de capitais como uma fonte fácil de financiamento, não temos IPO (oferta pública de ações) nem emissão de debêntures. Teve um momento em que tínhamos empresas em dificuldade, mas a maneira que ela encontrava de sair da situação era fazer um IPO. O que é uma contradição. Agora algo que também ocorre na economia mundial é que, no passado, tínhamos ciclo de crescimento e de crise econômica mais espaçados no tempo. Hoje, esses ciclos são mais curtos. Tem também crise de setores específicos. Empresas que deixam de existir porque a tecnologia mudou o mercado. O mercado financeiro também se sofisticou muito. O nível de alavancagem das empresas aumentou e as ondas de recuperações judiciais ficaram menos espaçadas no tempo.

Qual o reflexo da crise macroeconômica?

Sempre vai ter empresas crescendo, abrindo capital, e empresas em dificuldade. Mas, com crise macroeconômica, é outra história. Faz parte da economia contemporânea que você tenha empresas lidando com momentos de crise financeira mais ou menos graves. Até por isso, na literatura econômica internacional, cada vez mais se dá relevância ao papel de se ter um sistema de solução da crise da empresa eficiente. Isso é um fator de resiliência econômica. Resiliência é fundamental. Quando você não tem um instrumento para solucionar a crise de uma forma estrutural, ela tende a se prolongar. Aí as empresas vão morrendo aos pouquinhos.

Munhoz diz que há falta de eficiência dos instrumentos de recuperação judicial no Brasil Foto: Leo Martins/Estadão

É o que está acontecendo no Brasil?

O Brasil tem um problema sério de falta de eficiência nos seus instrumentos. Tanto que é muito comum que as mesmas empresas entrem em várias rodadas de reestruturação de dívida ao longo do longo tempo. A gente tem muita dificuldade no Brasil de adotar soluções realmente estruturais. A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.

Como melhorar esse sistema de solução no País?

É preciso aprimorar a lei em alguns pontos. Faz pouco tempo, teve uma mudança na lei de falência e de recuperação. Houve avanço, mas acho que ficou aquém do desejado. Mas o problema não é só a lei. São as instituições encarregadas de aplicar a lei. A gente está vivendo um momento em que estou com receio de que o instituto da recuperação judicial esteja entrando numa crise de credibilidade no País. Para o instituto ter credibilidade, ele não pode ser o instituto do devedor ou dos sócios do devedor, ele é um instrumento de todos os agentes econômicos, para buscar uma solução que coletivamente seja melhor. Ele não é um instrumento do dono da empresa, ele é um instrumento coletivo. Se ele começa a ser usado como um instrumento judicial, de fazer prevalecer uma tese ou outra, sem transparência, sem informação, começa a ter uma situação de problemas de relação entre instituição encarregada de aplicar a lei, na nomeação da administradora judicial, honorários estratosféricos. Foi o que aconteceu na falência e na concordata.

Por quê?

Lá atrás nenhum agente econômico confiava na falência/concordata. A lei de 2005 veio para mudar isso, deu mais poder de influência para os credores. Por isso é que tem assembleia de credores e elaboração de plano. Na concordata, o juiz decidia e mandava suspender o pagamento. Agora, não. Tem de ter negociação. Nesse modelo, a solução é encontrada pelo mercado. O poder de tomada de decisão é dos agentes econômicos. A instituição está ali para coordenar, dar transparência, assegurar que a lei seja cumprida. Se o instituto não é usado dessa forma, ele pode entrar em uma crise de credibilidade. Aí você começa a ter uma aversão do mercado ao instrumento.

Já estamos nessa crise?

Não posso citar casos, mas, ao longo desse ano, tem havido muita crítica à falta de transparência, aos honorários imensos, à dificuldade de os credores terem agentes da sua confiança nomeados para acompanhar os trabalhos, para ter acesso à informação. A lei funciona quando tem previsibilidade e segurança sobre a forma que ela é aplicada. Se a cada caso, muda a interpretação da lei, isso cria insegurança para o mercado. Como um acadêmico que estuda a matéria, eu tenho, sim, forte crítica ao momento atual. Mais do que isso, tenho receio de que o instituto esteja entrando em uma forte crise de credibilidade. Os agentes econômicos ficam pensando que, quando um caso vai para o Judiciário, para a recuperação, já não sabem mais o que vai acontecer. Não pode ser assim.

Qual é o resultado da falta de credibilidade?

O resultado disso é que, se, no sistema brasileiro, o instrumento principal para você resolver a crise é a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial - na qual você também precisa da homologação do juiz -, você fica sem instrumentos. Quem quer usar o instrumento com transparência para resolver uma crise, vai acabar sendo punido pelo mal uso do instrumento. Aí se não tem recuperação judicial, não tem instrumento para resolver a crise. Esse é o problema. A gente vinha avançando. Agora retrocedeu. O empresário brasileiro só pede recuperação quando não há mais saída. Nos últimos dez anos, gradualmente, ainda que lentamente, estava havendo um processo de conscientização e chegando a haver momentos em que o próprio credor apontava que a melhor solução era uma recuperação, porque se não não consegue achar uma solução coletiva para o problema. Estávamos evoluindo para isso. Hoje começo a ouvir no mercado que, quando tem recuperação, não se sabe o que vai acontecer.

Munhoz diz que o País continua num momento de alta do número de recuperação judicial, desencadeado com a crise da Americanas; a combinação de juro elevado e receita estagnada faz aumentar o número de casos Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO CONTEUDO

Essa mudança na percepção ocorreu neste ano?

Acho que, no último ano, temos tido grandes recuperações judiciais com muita repercussão tanto perante bancos como mercado de capitais, eu digo, debêntures e bonds (títulos). Os principais pontos criticados são falta de transparência, falta de informação, falta de possibilidade de participação efetiva dos credores no processo, imprevisibilidade das decisões, isto é, decisões que parecem contrariar a lei, parecem forçar a interpretação para atender a uma demanda do caso. E também situações que têm sido denunciadas pela mídia sobre a questão de como é a relação entre o judiciário e outros atores que atuam na recuperação judicial.

O que e quem causou essa desvirtuação da RJ?

Uma combinação de fatores. Um advogado diz para o empresário: ‘Fique tranquilo que eu entro com a recuperação e vão dar todas as decisões a seu favor’. Se o empresário acreditar e, pior, acontecer de verdade, o instituto entra em crise. Não pode ser assim. Então, acho que é uma combinação de diversos fatores. O que eu diria é que, quando a lei foi aprovada, houve um movimento no judiciário para aplicar bem a lei. São Paulo, por exemplo, criou as varas especializadas. Outros estados seguiram a mesma linha. Essas varas, na verdade, nasceram como Vara de Falência. Foi junto à aprovação da lei de 2005. Tentaram se especializar e criar um ambiente para aplicar bem a lei e para ter coerência nas decisões, pois isso traz previsibilidade para o mercado. Foi caminhando por aí. Não estou dizendo que acabou a recuperação judicial. Mas acho que estamos em um momento de risco.

Qual o risco?

É importante para a economia brasileira que exista um instrumento para lidar com a crise das empresas. Esse instrumento precisa ser usado com transparência, eficiência, de maneira correta, sem outras influências, com equilíbrio nas decisões, com previsibilidade. Mais um exemplo: lembro que por volta de 2012 advoguei para um investidor que comprou ação da rede de distribuição de energia elétrica do Pará, era a Equatorial naquele momento. A Celpa entrou em RJ e houve a aprovação de um plano de recuperação. Nesse plano, houve a aquisição do controle da Celpa pela Equatorial. A Equatorial foi bem, os acionistas ganharam dinheiro, melhorou a distribuidora. É um caso de sucesso de RJ. Agora, naquele contexto, saiu uma medida provisória, ainda no governo da Dilma (Rousseff), proibindo que concessionária de concessão de energia elétrica entrasse em recuperação judicial. Agora estamos vendo a quantidade de discussões, não vou entrar no mérito delas, no caso da Light. Isso é um ambiente complicado. Primeiro tem uma lei proibindo, mas aí tentam achar uma maneira de lidar com a crise apesar de a lei ter mudado. Fica sem uma direção clara do caminho. O mínimo que precisa ter é previsibilidade sobre a regra do jogo. Com esse caso, fica claro que não tem e cria insegurança.

O caso da Light abala a instituição da RJ em si ou mais essa visão do investidor para o País?

A incerteza e a falta de previsibilidade em torno da crise da concessionária de energia elétrica não contribuiu. Para resolver a crise, você deveria discutir como é que organiza a dívida, como protege a empresa enquanto isso. Mas, no fim, o que vamos ver é um monte de discussão de tese jurídica. Cabe ou não cabe a recuperação de concessionária? Pode incluir a concessionária no processo da holding? Uma discussão de tese que não tem nada a ver com a solução do problema. Mas o tempo que se gasta com a discussão dessas teses jurídicas pode inviabilizar uma solução eficiente para o problema - é isso que chamo de ausência de previsibilidade e segurança. Se alguém vai comprar debênture, por exemplo, da Energisa ou da Enel, a primeira pergunta que o investidor vai fazer é: ‘se tiver uma crise na empresa, pode ou não pode recuperação?’ Não sei como responder isso. Isso faz parte do desenvolvimento do ambiente básico para o investimento. A gente está longe de ter previsibilidade e segurança.

Isso pode prejudicar o apetite do investidor estrangeiro?

Claro. Uma emissão de debêntures é um instrumento de financiamento da atividade da empresa. A empresa vai fazer uma grande emissão no mercado internacional para investir em infraestrutura, por exemplo. A primeira pergunta que o investidor faz é quais direitos caso o crédito não seja pago. Como funciona no Brasil o sistema de chapter 11? Eu até saberia dizer, mas a evolução dos casos está aumentando as dúvidas. Se tem uma recuperação, o investidor tem acesso à informação? Sabe exatamente qual é a condição econômica da empresa? Tem direito de voto? Pode votar individualmente? Pode aprovar plano contra a vontade do acionista controlador? São perguntas básicas, mas que temos dúvidas de responder. Uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia (EUA) que diz que o fator que determina a maior eficiência para resolver a crise da empresa é o Estado que vai julgar o caso. Se for Dellaware ou o Distrito Sul de Nova York, é grande a chance de dar certo. Daqui a pouco, no Brasil, talvez comece a acontecer isso. Uma recuperação judicial no interior de um Estado, perante um juiz que é da cidade que a única geradora de empregos é a empresa, aí não vai ter decisão que não seja favorável à empresa. Não vai ter decisão em favor do credor ou do investidor. Não pode ser assim.

Temos visto uma série de empresas grandes em recuperação judicial, e outras, ameaçadas. Com o juro alto podendo reduzir o faturamento delas e diante do grau de alavancagem, a tendência é que surjam novos pedidos?

A gente continua em um momento de aumento do número de casos. O custo do crédito está altíssimo, com o juro elevado. Se a receita não está crescendo, há uma combinação que faz aumentar o número de casos. A percepção é que tem muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade e outras menos, mas o número é muito grande. Muitos casos podem acabar se resolvendo em negociações privadas. Existe uma disposição, um reconhecimento dos agentes financeiros que é melhor uma negociação privada, até por conta do que mencionei, do que entrar num processo judicial. Agora, quando o problema até ultrapassa a questão da dívida puramente financeira, começa a afetar também fluxo de caixa, pagamento de fornecedor, aí é difícil evitar o caminho de uma recuperação judicial. Por isso, a tendência é, sim, aumentar o número de casos.

Essas empresas têm um perfil?

As empresas muito grandes são as que têm uma chance maior de encontrar uma solução que não passe pela recuperação judicial, que siga uma recuperação extrajudicial ou uma negociação. Mas há situações em que não tem jeito evitar uma recuperação. Acredito que há algumas empresas grandes que devem entrar em RJ. Não tenho dúvida disso não. Isso também é algo natural. O ideal é que fossem processos rápidos, bem negociados, eficientes e que permitissem que as empresas saíssem logo da crise. Esse deveria ser o objetivo.

Tem algum setor que está sofrendo mais?

Varejo é um setor em que isso tem ocorrido. Mas tem outros também. Tem empresas de infraestrutura cujos problemas não foram resolvidos até hoje. Há empresas na área de incorporação imobiliária ainda com problemas. Mas não é um problema setorial. Quase todas as empresas estão sujeitas a problemas com o custo de crédito super elevado, a ausência de fontes de crédito e as receitas que não estão subindo.

Há uma crítica recorrente no Brasil de que as empresas ficam em recuperação judicial por um período muito longo. Esse problema também tem se intensificado?

Acho que tem melhorado, mas muito pouco. Menos do que deveria. Brinco que são as empresas zumbis: convivem com os problemas eternamente e nunca voltam à vida normal. Mas a gente perdeu a oportunidade na mudança da lei anterior. Uma das ideias era que, após o plano de recuperação, a empresa voltasse à vida normal. A gente infelizmente manteve a ideia de que uma empresa fica por mais dois anos da recuperação judicial. Outro fator é que você precisa de um amadurecimento institucional para buscar soluções mais estruturadas.

As empresas brasileiras estão muito alavancadas?

Depende muito do setor e da empresa. Nos últimos anos, houve no Brasil um crescimento do mercado de crédito, o que é positivo. Historicamente, o País nunca teve fonte de financiamento privado para as empresas, o que é horrível. Obviamente, muitas empresas aproveitaram bastante esse boom. O problema no Brasil é que, às vezes, o empresário mais otimista faz um investimento acreditando que um monte de coisa vai acontecer, levanta dívida em função disso e o business plan não acontece. A dívida fica desproporcional ao tamanho do que ficou a empresa. Aí você tem ainda uma elevação muito abrupta da taxa de juros. Isso pega um monte de gente na curva. Acho que estamos nesse momento. Mas o mercado de crédito no Brasil ainda é muito menor do que em outros países mais desenvolvidos. A gente tem é um mercado de crédito muito concentrado. Cinco bancos têm 90% das transações financeiras. O fato de ter o desenvolvimento do mercado de capitais ao lado disso é um alento, pois está desconcentrando um pouco esse mercado. Isso é positivo, porque senão você tem muito pouca gente com um poder econômico muito elevado, o que acaba restringindo o crédito. O problema não está no excesso de crédito.

E onde está?

Acho que a gente tem de avançar em aumentar o acesso e diminuir o custo de crédito. Isso é crucial para o desenvolvimento das empresas brasileiras e aprimorar os instrumentos de recuperação do crédito quando você tem a crise. Melhorar a falência, por exemplo, é fundamental. Isso não foi feito. Pior que a recuperação judicial é a falência no Brasil. Ela funciona pessimamente. É quase como um sinônimo de que o credor não recebe nada. Isso é muito ruim, porque afeta a própria recuperação judicial. No Brasil, a falência funciona muito mal. Eu diria que é urgente que houvesse um projeto de reforma do capítulo de falências da lei.

E o que teria de ser feito?

Algo parecido com o que foi feito na lei de recuperação. Hoje a falência é presidida pelo juiz e tem um administrador judicial com poder imenso. Ele que manda em tudo, passa a gerir a massa falida, a tomar todas as decisões, é o encarregado de vender os bens e de pagar o passivo. Acho que tem de ter uma solução de mercado. Talvez os credores devessem escolher quem vai gerir a massa falida ou determinadas decisões teriam de ser tomadas em assembleia de credores. Tem de ter mais informação, transparência e dar mais oportunidade de participação aos agentes privados para encontrar a solução que entendem ser a mais adequada. Então, um ambiente menos burocratizado, menos judicializado.

Um dos maiores especialistas em recuperação judicial do Brasil, o advogado Eduardo Munhoz diz que a economia tem mostrado uma redução de tempo entre os períodos de crescimento e de crise econômica em todo o mundo. “Hoje, esses ciclos estão mais curtos; as ondas de recuperações judiciais estão menos espaçadas.”

O professor da USP, que já reestruturou mais de R$ 150 bilhões em crédito de empresas, afirma que o Brasil vive hoje um momento de alta do número de casos especialmente devido ao elevado custo do crédito e de receitas estagnadas. “A percepção é que há muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade, e outras menos, mas o número é muito grande.”

Na avalição de Munhoz, há um problema sério no País de falta de eficiência dos instrumentos de recuperação e uma dificuldade de adotar soluções realmente estruturais, o que acaba prolongando a crise nas empresas. “A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.”

Nos últimos anos, Munhoz participou das maiores recuperações judiciais do País, como Odebrecht, PDG, OAS, EAS, Grupo X, Oi, entre outras. Até mesmo por isso, tem sérias críticas ao processo, que hoje ele acredita estar enfrentando um perigoso risco de perda de credibilidade.

Em entrevista ao Estadão, ele contou suas preocupações sobre a instituição da recuperação judicial e como dar mais eficiência aos instrumentos desse processo. Confira a seguir a entrevista:

Essa onda de crise e recuperação judicial é semelhante à de 2016?

De fato existe uma nova onda e atribuo isso a dois fatores primordiais: taxa de juros elevada e o momento da economia brasileira. Hoje as empresas não têm o mercado de capitais como uma fonte fácil de financiamento, não temos IPO (oferta pública de ações) nem emissão de debêntures. Teve um momento em que tínhamos empresas em dificuldade, mas a maneira que ela encontrava de sair da situação era fazer um IPO. O que é uma contradição. Agora algo que também ocorre na economia mundial é que, no passado, tínhamos ciclo de crescimento e de crise econômica mais espaçados no tempo. Hoje, esses ciclos são mais curtos. Tem também crise de setores específicos. Empresas que deixam de existir porque a tecnologia mudou o mercado. O mercado financeiro também se sofisticou muito. O nível de alavancagem das empresas aumentou e as ondas de recuperações judiciais ficaram menos espaçadas no tempo.

Qual o reflexo da crise macroeconômica?

Sempre vai ter empresas crescendo, abrindo capital, e empresas em dificuldade. Mas, com crise macroeconômica, é outra história. Faz parte da economia contemporânea que você tenha empresas lidando com momentos de crise financeira mais ou menos graves. Até por isso, na literatura econômica internacional, cada vez mais se dá relevância ao papel de se ter um sistema de solução da crise da empresa eficiente. Isso é um fator de resiliência econômica. Resiliência é fundamental. Quando você não tem um instrumento para solucionar a crise de uma forma estrutural, ela tende a se prolongar. Aí as empresas vão morrendo aos pouquinhos.

Munhoz diz que há falta de eficiência dos instrumentos de recuperação judicial no Brasil Foto: Leo Martins/Estadão

É o que está acontecendo no Brasil?

O Brasil tem um problema sério de falta de eficiência nos seus instrumentos. Tanto que é muito comum que as mesmas empresas entrem em várias rodadas de reestruturação de dívida ao longo do longo tempo. A gente tem muita dificuldade no Brasil de adotar soluções realmente estruturais. A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.

Como melhorar esse sistema de solução no País?

É preciso aprimorar a lei em alguns pontos. Faz pouco tempo, teve uma mudança na lei de falência e de recuperação. Houve avanço, mas acho que ficou aquém do desejado. Mas o problema não é só a lei. São as instituições encarregadas de aplicar a lei. A gente está vivendo um momento em que estou com receio de que o instituto da recuperação judicial esteja entrando numa crise de credibilidade no País. Para o instituto ter credibilidade, ele não pode ser o instituto do devedor ou dos sócios do devedor, ele é um instrumento de todos os agentes econômicos, para buscar uma solução que coletivamente seja melhor. Ele não é um instrumento do dono da empresa, ele é um instrumento coletivo. Se ele começa a ser usado como um instrumento judicial, de fazer prevalecer uma tese ou outra, sem transparência, sem informação, começa a ter uma situação de problemas de relação entre instituição encarregada de aplicar a lei, na nomeação da administradora judicial, honorários estratosféricos. Foi o que aconteceu na falência e na concordata.

Por quê?

Lá atrás nenhum agente econômico confiava na falência/concordata. A lei de 2005 veio para mudar isso, deu mais poder de influência para os credores. Por isso é que tem assembleia de credores e elaboração de plano. Na concordata, o juiz decidia e mandava suspender o pagamento. Agora, não. Tem de ter negociação. Nesse modelo, a solução é encontrada pelo mercado. O poder de tomada de decisão é dos agentes econômicos. A instituição está ali para coordenar, dar transparência, assegurar que a lei seja cumprida. Se o instituto não é usado dessa forma, ele pode entrar em uma crise de credibilidade. Aí você começa a ter uma aversão do mercado ao instrumento.

Já estamos nessa crise?

Não posso citar casos, mas, ao longo desse ano, tem havido muita crítica à falta de transparência, aos honorários imensos, à dificuldade de os credores terem agentes da sua confiança nomeados para acompanhar os trabalhos, para ter acesso à informação. A lei funciona quando tem previsibilidade e segurança sobre a forma que ela é aplicada. Se a cada caso, muda a interpretação da lei, isso cria insegurança para o mercado. Como um acadêmico que estuda a matéria, eu tenho, sim, forte crítica ao momento atual. Mais do que isso, tenho receio de que o instituto esteja entrando em uma forte crise de credibilidade. Os agentes econômicos ficam pensando que, quando um caso vai para o Judiciário, para a recuperação, já não sabem mais o que vai acontecer. Não pode ser assim.

Qual é o resultado da falta de credibilidade?

O resultado disso é que, se, no sistema brasileiro, o instrumento principal para você resolver a crise é a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial - na qual você também precisa da homologação do juiz -, você fica sem instrumentos. Quem quer usar o instrumento com transparência para resolver uma crise, vai acabar sendo punido pelo mal uso do instrumento. Aí se não tem recuperação judicial, não tem instrumento para resolver a crise. Esse é o problema. A gente vinha avançando. Agora retrocedeu. O empresário brasileiro só pede recuperação quando não há mais saída. Nos últimos dez anos, gradualmente, ainda que lentamente, estava havendo um processo de conscientização e chegando a haver momentos em que o próprio credor apontava que a melhor solução era uma recuperação, porque se não não consegue achar uma solução coletiva para o problema. Estávamos evoluindo para isso. Hoje começo a ouvir no mercado que, quando tem recuperação, não se sabe o que vai acontecer.

Munhoz diz que o País continua num momento de alta do número de recuperação judicial, desencadeado com a crise da Americanas; a combinação de juro elevado e receita estagnada faz aumentar o número de casos Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO CONTEUDO

Essa mudança na percepção ocorreu neste ano?

Acho que, no último ano, temos tido grandes recuperações judiciais com muita repercussão tanto perante bancos como mercado de capitais, eu digo, debêntures e bonds (títulos). Os principais pontos criticados são falta de transparência, falta de informação, falta de possibilidade de participação efetiva dos credores no processo, imprevisibilidade das decisões, isto é, decisões que parecem contrariar a lei, parecem forçar a interpretação para atender a uma demanda do caso. E também situações que têm sido denunciadas pela mídia sobre a questão de como é a relação entre o judiciário e outros atores que atuam na recuperação judicial.

O que e quem causou essa desvirtuação da RJ?

Uma combinação de fatores. Um advogado diz para o empresário: ‘Fique tranquilo que eu entro com a recuperação e vão dar todas as decisões a seu favor’. Se o empresário acreditar e, pior, acontecer de verdade, o instituto entra em crise. Não pode ser assim. Então, acho que é uma combinação de diversos fatores. O que eu diria é que, quando a lei foi aprovada, houve um movimento no judiciário para aplicar bem a lei. São Paulo, por exemplo, criou as varas especializadas. Outros estados seguiram a mesma linha. Essas varas, na verdade, nasceram como Vara de Falência. Foi junto à aprovação da lei de 2005. Tentaram se especializar e criar um ambiente para aplicar bem a lei e para ter coerência nas decisões, pois isso traz previsibilidade para o mercado. Foi caminhando por aí. Não estou dizendo que acabou a recuperação judicial. Mas acho que estamos em um momento de risco.

Qual o risco?

É importante para a economia brasileira que exista um instrumento para lidar com a crise das empresas. Esse instrumento precisa ser usado com transparência, eficiência, de maneira correta, sem outras influências, com equilíbrio nas decisões, com previsibilidade. Mais um exemplo: lembro que por volta de 2012 advoguei para um investidor que comprou ação da rede de distribuição de energia elétrica do Pará, era a Equatorial naquele momento. A Celpa entrou em RJ e houve a aprovação de um plano de recuperação. Nesse plano, houve a aquisição do controle da Celpa pela Equatorial. A Equatorial foi bem, os acionistas ganharam dinheiro, melhorou a distribuidora. É um caso de sucesso de RJ. Agora, naquele contexto, saiu uma medida provisória, ainda no governo da Dilma (Rousseff), proibindo que concessionária de concessão de energia elétrica entrasse em recuperação judicial. Agora estamos vendo a quantidade de discussões, não vou entrar no mérito delas, no caso da Light. Isso é um ambiente complicado. Primeiro tem uma lei proibindo, mas aí tentam achar uma maneira de lidar com a crise apesar de a lei ter mudado. Fica sem uma direção clara do caminho. O mínimo que precisa ter é previsibilidade sobre a regra do jogo. Com esse caso, fica claro que não tem e cria insegurança.

O caso da Light abala a instituição da RJ em si ou mais essa visão do investidor para o País?

A incerteza e a falta de previsibilidade em torno da crise da concessionária de energia elétrica não contribuiu. Para resolver a crise, você deveria discutir como é que organiza a dívida, como protege a empresa enquanto isso. Mas, no fim, o que vamos ver é um monte de discussão de tese jurídica. Cabe ou não cabe a recuperação de concessionária? Pode incluir a concessionária no processo da holding? Uma discussão de tese que não tem nada a ver com a solução do problema. Mas o tempo que se gasta com a discussão dessas teses jurídicas pode inviabilizar uma solução eficiente para o problema - é isso que chamo de ausência de previsibilidade e segurança. Se alguém vai comprar debênture, por exemplo, da Energisa ou da Enel, a primeira pergunta que o investidor vai fazer é: ‘se tiver uma crise na empresa, pode ou não pode recuperação?’ Não sei como responder isso. Isso faz parte do desenvolvimento do ambiente básico para o investimento. A gente está longe de ter previsibilidade e segurança.

Isso pode prejudicar o apetite do investidor estrangeiro?

Claro. Uma emissão de debêntures é um instrumento de financiamento da atividade da empresa. A empresa vai fazer uma grande emissão no mercado internacional para investir em infraestrutura, por exemplo. A primeira pergunta que o investidor faz é quais direitos caso o crédito não seja pago. Como funciona no Brasil o sistema de chapter 11? Eu até saberia dizer, mas a evolução dos casos está aumentando as dúvidas. Se tem uma recuperação, o investidor tem acesso à informação? Sabe exatamente qual é a condição econômica da empresa? Tem direito de voto? Pode votar individualmente? Pode aprovar plano contra a vontade do acionista controlador? São perguntas básicas, mas que temos dúvidas de responder. Uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia (EUA) que diz que o fator que determina a maior eficiência para resolver a crise da empresa é o Estado que vai julgar o caso. Se for Dellaware ou o Distrito Sul de Nova York, é grande a chance de dar certo. Daqui a pouco, no Brasil, talvez comece a acontecer isso. Uma recuperação judicial no interior de um Estado, perante um juiz que é da cidade que a única geradora de empregos é a empresa, aí não vai ter decisão que não seja favorável à empresa. Não vai ter decisão em favor do credor ou do investidor. Não pode ser assim.

Temos visto uma série de empresas grandes em recuperação judicial, e outras, ameaçadas. Com o juro alto podendo reduzir o faturamento delas e diante do grau de alavancagem, a tendência é que surjam novos pedidos?

A gente continua em um momento de aumento do número de casos. O custo do crédito está altíssimo, com o juro elevado. Se a receita não está crescendo, há uma combinação que faz aumentar o número de casos. A percepção é que tem muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade e outras menos, mas o número é muito grande. Muitos casos podem acabar se resolvendo em negociações privadas. Existe uma disposição, um reconhecimento dos agentes financeiros que é melhor uma negociação privada, até por conta do que mencionei, do que entrar num processo judicial. Agora, quando o problema até ultrapassa a questão da dívida puramente financeira, começa a afetar também fluxo de caixa, pagamento de fornecedor, aí é difícil evitar o caminho de uma recuperação judicial. Por isso, a tendência é, sim, aumentar o número de casos.

Essas empresas têm um perfil?

As empresas muito grandes são as que têm uma chance maior de encontrar uma solução que não passe pela recuperação judicial, que siga uma recuperação extrajudicial ou uma negociação. Mas há situações em que não tem jeito evitar uma recuperação. Acredito que há algumas empresas grandes que devem entrar em RJ. Não tenho dúvida disso não. Isso também é algo natural. O ideal é que fossem processos rápidos, bem negociados, eficientes e que permitissem que as empresas saíssem logo da crise. Esse deveria ser o objetivo.

Tem algum setor que está sofrendo mais?

Varejo é um setor em que isso tem ocorrido. Mas tem outros também. Tem empresas de infraestrutura cujos problemas não foram resolvidos até hoje. Há empresas na área de incorporação imobiliária ainda com problemas. Mas não é um problema setorial. Quase todas as empresas estão sujeitas a problemas com o custo de crédito super elevado, a ausência de fontes de crédito e as receitas que não estão subindo.

Há uma crítica recorrente no Brasil de que as empresas ficam em recuperação judicial por um período muito longo. Esse problema também tem se intensificado?

Acho que tem melhorado, mas muito pouco. Menos do que deveria. Brinco que são as empresas zumbis: convivem com os problemas eternamente e nunca voltam à vida normal. Mas a gente perdeu a oportunidade na mudança da lei anterior. Uma das ideias era que, após o plano de recuperação, a empresa voltasse à vida normal. A gente infelizmente manteve a ideia de que uma empresa fica por mais dois anos da recuperação judicial. Outro fator é que você precisa de um amadurecimento institucional para buscar soluções mais estruturadas.

As empresas brasileiras estão muito alavancadas?

Depende muito do setor e da empresa. Nos últimos anos, houve no Brasil um crescimento do mercado de crédito, o que é positivo. Historicamente, o País nunca teve fonte de financiamento privado para as empresas, o que é horrível. Obviamente, muitas empresas aproveitaram bastante esse boom. O problema no Brasil é que, às vezes, o empresário mais otimista faz um investimento acreditando que um monte de coisa vai acontecer, levanta dívida em função disso e o business plan não acontece. A dívida fica desproporcional ao tamanho do que ficou a empresa. Aí você tem ainda uma elevação muito abrupta da taxa de juros. Isso pega um monte de gente na curva. Acho que estamos nesse momento. Mas o mercado de crédito no Brasil ainda é muito menor do que em outros países mais desenvolvidos. A gente tem é um mercado de crédito muito concentrado. Cinco bancos têm 90% das transações financeiras. O fato de ter o desenvolvimento do mercado de capitais ao lado disso é um alento, pois está desconcentrando um pouco esse mercado. Isso é positivo, porque senão você tem muito pouca gente com um poder econômico muito elevado, o que acaba restringindo o crédito. O problema não está no excesso de crédito.

E onde está?

Acho que a gente tem de avançar em aumentar o acesso e diminuir o custo de crédito. Isso é crucial para o desenvolvimento das empresas brasileiras e aprimorar os instrumentos de recuperação do crédito quando você tem a crise. Melhorar a falência, por exemplo, é fundamental. Isso não foi feito. Pior que a recuperação judicial é a falência no Brasil. Ela funciona pessimamente. É quase como um sinônimo de que o credor não recebe nada. Isso é muito ruim, porque afeta a própria recuperação judicial. No Brasil, a falência funciona muito mal. Eu diria que é urgente que houvesse um projeto de reforma do capítulo de falências da lei.

E o que teria de ser feito?

Algo parecido com o que foi feito na lei de recuperação. Hoje a falência é presidida pelo juiz e tem um administrador judicial com poder imenso. Ele que manda em tudo, passa a gerir a massa falida, a tomar todas as decisões, é o encarregado de vender os bens e de pagar o passivo. Acho que tem de ter uma solução de mercado. Talvez os credores devessem escolher quem vai gerir a massa falida ou determinadas decisões teriam de ser tomadas em assembleia de credores. Tem de ter mais informação, transparência e dar mais oportunidade de participação aos agentes privados para encontrar a solução que entendem ser a mais adequada. Então, um ambiente menos burocratizado, menos judicializado.

Um dos maiores especialistas em recuperação judicial do Brasil, o advogado Eduardo Munhoz diz que a economia tem mostrado uma redução de tempo entre os períodos de crescimento e de crise econômica em todo o mundo. “Hoje, esses ciclos estão mais curtos; as ondas de recuperações judiciais estão menos espaçadas.”

O professor da USP, que já reestruturou mais de R$ 150 bilhões em crédito de empresas, afirma que o Brasil vive hoje um momento de alta do número de casos especialmente devido ao elevado custo do crédito e de receitas estagnadas. “A percepção é que há muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade, e outras menos, mas o número é muito grande.”

Na avalição de Munhoz, há um problema sério no País de falta de eficiência dos instrumentos de recuperação e uma dificuldade de adotar soluções realmente estruturais, o que acaba prolongando a crise nas empresas. “A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.”

Nos últimos anos, Munhoz participou das maiores recuperações judiciais do País, como Odebrecht, PDG, OAS, EAS, Grupo X, Oi, entre outras. Até mesmo por isso, tem sérias críticas ao processo, que hoje ele acredita estar enfrentando um perigoso risco de perda de credibilidade.

Em entrevista ao Estadão, ele contou suas preocupações sobre a instituição da recuperação judicial e como dar mais eficiência aos instrumentos desse processo. Confira a seguir a entrevista:

Essa onda de crise e recuperação judicial é semelhante à de 2016?

De fato existe uma nova onda e atribuo isso a dois fatores primordiais: taxa de juros elevada e o momento da economia brasileira. Hoje as empresas não têm o mercado de capitais como uma fonte fácil de financiamento, não temos IPO (oferta pública de ações) nem emissão de debêntures. Teve um momento em que tínhamos empresas em dificuldade, mas a maneira que ela encontrava de sair da situação era fazer um IPO. O que é uma contradição. Agora algo que também ocorre na economia mundial é que, no passado, tínhamos ciclo de crescimento e de crise econômica mais espaçados no tempo. Hoje, esses ciclos são mais curtos. Tem também crise de setores específicos. Empresas que deixam de existir porque a tecnologia mudou o mercado. O mercado financeiro também se sofisticou muito. O nível de alavancagem das empresas aumentou e as ondas de recuperações judiciais ficaram menos espaçadas no tempo.

Qual o reflexo da crise macroeconômica?

Sempre vai ter empresas crescendo, abrindo capital, e empresas em dificuldade. Mas, com crise macroeconômica, é outra história. Faz parte da economia contemporânea que você tenha empresas lidando com momentos de crise financeira mais ou menos graves. Até por isso, na literatura econômica internacional, cada vez mais se dá relevância ao papel de se ter um sistema de solução da crise da empresa eficiente. Isso é um fator de resiliência econômica. Resiliência é fundamental. Quando você não tem um instrumento para solucionar a crise de uma forma estrutural, ela tende a se prolongar. Aí as empresas vão morrendo aos pouquinhos.

Munhoz diz que há falta de eficiência dos instrumentos de recuperação judicial no Brasil Foto: Leo Martins/Estadão

É o que está acontecendo no Brasil?

O Brasil tem um problema sério de falta de eficiência nos seus instrumentos. Tanto que é muito comum que as mesmas empresas entrem em várias rodadas de reestruturação de dívida ao longo do longo tempo. A gente tem muita dificuldade no Brasil de adotar soluções realmente estruturais. A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.

Como melhorar esse sistema de solução no País?

É preciso aprimorar a lei em alguns pontos. Faz pouco tempo, teve uma mudança na lei de falência e de recuperação. Houve avanço, mas acho que ficou aquém do desejado. Mas o problema não é só a lei. São as instituições encarregadas de aplicar a lei. A gente está vivendo um momento em que estou com receio de que o instituto da recuperação judicial esteja entrando numa crise de credibilidade no País. Para o instituto ter credibilidade, ele não pode ser o instituto do devedor ou dos sócios do devedor, ele é um instrumento de todos os agentes econômicos, para buscar uma solução que coletivamente seja melhor. Ele não é um instrumento do dono da empresa, ele é um instrumento coletivo. Se ele começa a ser usado como um instrumento judicial, de fazer prevalecer uma tese ou outra, sem transparência, sem informação, começa a ter uma situação de problemas de relação entre instituição encarregada de aplicar a lei, na nomeação da administradora judicial, honorários estratosféricos. Foi o que aconteceu na falência e na concordata.

Por quê?

Lá atrás nenhum agente econômico confiava na falência/concordata. A lei de 2005 veio para mudar isso, deu mais poder de influência para os credores. Por isso é que tem assembleia de credores e elaboração de plano. Na concordata, o juiz decidia e mandava suspender o pagamento. Agora, não. Tem de ter negociação. Nesse modelo, a solução é encontrada pelo mercado. O poder de tomada de decisão é dos agentes econômicos. A instituição está ali para coordenar, dar transparência, assegurar que a lei seja cumprida. Se o instituto não é usado dessa forma, ele pode entrar em uma crise de credibilidade. Aí você começa a ter uma aversão do mercado ao instrumento.

Já estamos nessa crise?

Não posso citar casos, mas, ao longo desse ano, tem havido muita crítica à falta de transparência, aos honorários imensos, à dificuldade de os credores terem agentes da sua confiança nomeados para acompanhar os trabalhos, para ter acesso à informação. A lei funciona quando tem previsibilidade e segurança sobre a forma que ela é aplicada. Se a cada caso, muda a interpretação da lei, isso cria insegurança para o mercado. Como um acadêmico que estuda a matéria, eu tenho, sim, forte crítica ao momento atual. Mais do que isso, tenho receio de que o instituto esteja entrando em uma forte crise de credibilidade. Os agentes econômicos ficam pensando que, quando um caso vai para o Judiciário, para a recuperação, já não sabem mais o que vai acontecer. Não pode ser assim.

Qual é o resultado da falta de credibilidade?

O resultado disso é que, se, no sistema brasileiro, o instrumento principal para você resolver a crise é a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial - na qual você também precisa da homologação do juiz -, você fica sem instrumentos. Quem quer usar o instrumento com transparência para resolver uma crise, vai acabar sendo punido pelo mal uso do instrumento. Aí se não tem recuperação judicial, não tem instrumento para resolver a crise. Esse é o problema. A gente vinha avançando. Agora retrocedeu. O empresário brasileiro só pede recuperação quando não há mais saída. Nos últimos dez anos, gradualmente, ainda que lentamente, estava havendo um processo de conscientização e chegando a haver momentos em que o próprio credor apontava que a melhor solução era uma recuperação, porque se não não consegue achar uma solução coletiva para o problema. Estávamos evoluindo para isso. Hoje começo a ouvir no mercado que, quando tem recuperação, não se sabe o que vai acontecer.

Munhoz diz que o País continua num momento de alta do número de recuperação judicial, desencadeado com a crise da Americanas; a combinação de juro elevado e receita estagnada faz aumentar o número de casos Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO CONTEUDO

Essa mudança na percepção ocorreu neste ano?

Acho que, no último ano, temos tido grandes recuperações judiciais com muita repercussão tanto perante bancos como mercado de capitais, eu digo, debêntures e bonds (títulos). Os principais pontos criticados são falta de transparência, falta de informação, falta de possibilidade de participação efetiva dos credores no processo, imprevisibilidade das decisões, isto é, decisões que parecem contrariar a lei, parecem forçar a interpretação para atender a uma demanda do caso. E também situações que têm sido denunciadas pela mídia sobre a questão de como é a relação entre o judiciário e outros atores que atuam na recuperação judicial.

O que e quem causou essa desvirtuação da RJ?

Uma combinação de fatores. Um advogado diz para o empresário: ‘Fique tranquilo que eu entro com a recuperação e vão dar todas as decisões a seu favor’. Se o empresário acreditar e, pior, acontecer de verdade, o instituto entra em crise. Não pode ser assim. Então, acho que é uma combinação de diversos fatores. O que eu diria é que, quando a lei foi aprovada, houve um movimento no judiciário para aplicar bem a lei. São Paulo, por exemplo, criou as varas especializadas. Outros estados seguiram a mesma linha. Essas varas, na verdade, nasceram como Vara de Falência. Foi junto à aprovação da lei de 2005. Tentaram se especializar e criar um ambiente para aplicar bem a lei e para ter coerência nas decisões, pois isso traz previsibilidade para o mercado. Foi caminhando por aí. Não estou dizendo que acabou a recuperação judicial. Mas acho que estamos em um momento de risco.

Qual o risco?

É importante para a economia brasileira que exista um instrumento para lidar com a crise das empresas. Esse instrumento precisa ser usado com transparência, eficiência, de maneira correta, sem outras influências, com equilíbrio nas decisões, com previsibilidade. Mais um exemplo: lembro que por volta de 2012 advoguei para um investidor que comprou ação da rede de distribuição de energia elétrica do Pará, era a Equatorial naquele momento. A Celpa entrou em RJ e houve a aprovação de um plano de recuperação. Nesse plano, houve a aquisição do controle da Celpa pela Equatorial. A Equatorial foi bem, os acionistas ganharam dinheiro, melhorou a distribuidora. É um caso de sucesso de RJ. Agora, naquele contexto, saiu uma medida provisória, ainda no governo da Dilma (Rousseff), proibindo que concessionária de concessão de energia elétrica entrasse em recuperação judicial. Agora estamos vendo a quantidade de discussões, não vou entrar no mérito delas, no caso da Light. Isso é um ambiente complicado. Primeiro tem uma lei proibindo, mas aí tentam achar uma maneira de lidar com a crise apesar de a lei ter mudado. Fica sem uma direção clara do caminho. O mínimo que precisa ter é previsibilidade sobre a regra do jogo. Com esse caso, fica claro que não tem e cria insegurança.

O caso da Light abala a instituição da RJ em si ou mais essa visão do investidor para o País?

A incerteza e a falta de previsibilidade em torno da crise da concessionária de energia elétrica não contribuiu. Para resolver a crise, você deveria discutir como é que organiza a dívida, como protege a empresa enquanto isso. Mas, no fim, o que vamos ver é um monte de discussão de tese jurídica. Cabe ou não cabe a recuperação de concessionária? Pode incluir a concessionária no processo da holding? Uma discussão de tese que não tem nada a ver com a solução do problema. Mas o tempo que se gasta com a discussão dessas teses jurídicas pode inviabilizar uma solução eficiente para o problema - é isso que chamo de ausência de previsibilidade e segurança. Se alguém vai comprar debênture, por exemplo, da Energisa ou da Enel, a primeira pergunta que o investidor vai fazer é: ‘se tiver uma crise na empresa, pode ou não pode recuperação?’ Não sei como responder isso. Isso faz parte do desenvolvimento do ambiente básico para o investimento. A gente está longe de ter previsibilidade e segurança.

Isso pode prejudicar o apetite do investidor estrangeiro?

Claro. Uma emissão de debêntures é um instrumento de financiamento da atividade da empresa. A empresa vai fazer uma grande emissão no mercado internacional para investir em infraestrutura, por exemplo. A primeira pergunta que o investidor faz é quais direitos caso o crédito não seja pago. Como funciona no Brasil o sistema de chapter 11? Eu até saberia dizer, mas a evolução dos casos está aumentando as dúvidas. Se tem uma recuperação, o investidor tem acesso à informação? Sabe exatamente qual é a condição econômica da empresa? Tem direito de voto? Pode votar individualmente? Pode aprovar plano contra a vontade do acionista controlador? São perguntas básicas, mas que temos dúvidas de responder. Uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia (EUA) que diz que o fator que determina a maior eficiência para resolver a crise da empresa é o Estado que vai julgar o caso. Se for Dellaware ou o Distrito Sul de Nova York, é grande a chance de dar certo. Daqui a pouco, no Brasil, talvez comece a acontecer isso. Uma recuperação judicial no interior de um Estado, perante um juiz que é da cidade que a única geradora de empregos é a empresa, aí não vai ter decisão que não seja favorável à empresa. Não vai ter decisão em favor do credor ou do investidor. Não pode ser assim.

Temos visto uma série de empresas grandes em recuperação judicial, e outras, ameaçadas. Com o juro alto podendo reduzir o faturamento delas e diante do grau de alavancagem, a tendência é que surjam novos pedidos?

A gente continua em um momento de aumento do número de casos. O custo do crédito está altíssimo, com o juro elevado. Se a receita não está crescendo, há uma combinação que faz aumentar o número de casos. A percepção é que tem muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade e outras menos, mas o número é muito grande. Muitos casos podem acabar se resolvendo em negociações privadas. Existe uma disposição, um reconhecimento dos agentes financeiros que é melhor uma negociação privada, até por conta do que mencionei, do que entrar num processo judicial. Agora, quando o problema até ultrapassa a questão da dívida puramente financeira, começa a afetar também fluxo de caixa, pagamento de fornecedor, aí é difícil evitar o caminho de uma recuperação judicial. Por isso, a tendência é, sim, aumentar o número de casos.

Essas empresas têm um perfil?

As empresas muito grandes são as que têm uma chance maior de encontrar uma solução que não passe pela recuperação judicial, que siga uma recuperação extrajudicial ou uma negociação. Mas há situações em que não tem jeito evitar uma recuperação. Acredito que há algumas empresas grandes que devem entrar em RJ. Não tenho dúvida disso não. Isso também é algo natural. O ideal é que fossem processos rápidos, bem negociados, eficientes e que permitissem que as empresas saíssem logo da crise. Esse deveria ser o objetivo.

Tem algum setor que está sofrendo mais?

Varejo é um setor em que isso tem ocorrido. Mas tem outros também. Tem empresas de infraestrutura cujos problemas não foram resolvidos até hoje. Há empresas na área de incorporação imobiliária ainda com problemas. Mas não é um problema setorial. Quase todas as empresas estão sujeitas a problemas com o custo de crédito super elevado, a ausência de fontes de crédito e as receitas que não estão subindo.

Há uma crítica recorrente no Brasil de que as empresas ficam em recuperação judicial por um período muito longo. Esse problema também tem se intensificado?

Acho que tem melhorado, mas muito pouco. Menos do que deveria. Brinco que são as empresas zumbis: convivem com os problemas eternamente e nunca voltam à vida normal. Mas a gente perdeu a oportunidade na mudança da lei anterior. Uma das ideias era que, após o plano de recuperação, a empresa voltasse à vida normal. A gente infelizmente manteve a ideia de que uma empresa fica por mais dois anos da recuperação judicial. Outro fator é que você precisa de um amadurecimento institucional para buscar soluções mais estruturadas.

As empresas brasileiras estão muito alavancadas?

Depende muito do setor e da empresa. Nos últimos anos, houve no Brasil um crescimento do mercado de crédito, o que é positivo. Historicamente, o País nunca teve fonte de financiamento privado para as empresas, o que é horrível. Obviamente, muitas empresas aproveitaram bastante esse boom. O problema no Brasil é que, às vezes, o empresário mais otimista faz um investimento acreditando que um monte de coisa vai acontecer, levanta dívida em função disso e o business plan não acontece. A dívida fica desproporcional ao tamanho do que ficou a empresa. Aí você tem ainda uma elevação muito abrupta da taxa de juros. Isso pega um monte de gente na curva. Acho que estamos nesse momento. Mas o mercado de crédito no Brasil ainda é muito menor do que em outros países mais desenvolvidos. A gente tem é um mercado de crédito muito concentrado. Cinco bancos têm 90% das transações financeiras. O fato de ter o desenvolvimento do mercado de capitais ao lado disso é um alento, pois está desconcentrando um pouco esse mercado. Isso é positivo, porque senão você tem muito pouca gente com um poder econômico muito elevado, o que acaba restringindo o crédito. O problema não está no excesso de crédito.

E onde está?

Acho que a gente tem de avançar em aumentar o acesso e diminuir o custo de crédito. Isso é crucial para o desenvolvimento das empresas brasileiras e aprimorar os instrumentos de recuperação do crédito quando você tem a crise. Melhorar a falência, por exemplo, é fundamental. Isso não foi feito. Pior que a recuperação judicial é a falência no Brasil. Ela funciona pessimamente. É quase como um sinônimo de que o credor não recebe nada. Isso é muito ruim, porque afeta a própria recuperação judicial. No Brasil, a falência funciona muito mal. Eu diria que é urgente que houvesse um projeto de reforma do capítulo de falências da lei.

E o que teria de ser feito?

Algo parecido com o que foi feito na lei de recuperação. Hoje a falência é presidida pelo juiz e tem um administrador judicial com poder imenso. Ele que manda em tudo, passa a gerir a massa falida, a tomar todas as decisões, é o encarregado de vender os bens e de pagar o passivo. Acho que tem de ter uma solução de mercado. Talvez os credores devessem escolher quem vai gerir a massa falida ou determinadas decisões teriam de ser tomadas em assembleia de credores. Tem de ter mais informação, transparência e dar mais oportunidade de participação aos agentes privados para encontrar a solução que entendem ser a mais adequada. Então, um ambiente menos burocratizado, menos judicializado.

Um dos maiores especialistas em recuperação judicial do Brasil, o advogado Eduardo Munhoz diz que a economia tem mostrado uma redução de tempo entre os períodos de crescimento e de crise econômica em todo o mundo. “Hoje, esses ciclos estão mais curtos; as ondas de recuperações judiciais estão menos espaçadas.”

O professor da USP, que já reestruturou mais de R$ 150 bilhões em crédito de empresas, afirma que o Brasil vive hoje um momento de alta do número de casos especialmente devido ao elevado custo do crédito e de receitas estagnadas. “A percepção é que há muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade, e outras menos, mas o número é muito grande.”

Na avalição de Munhoz, há um problema sério no País de falta de eficiência dos instrumentos de recuperação e uma dificuldade de adotar soluções realmente estruturais, o que acaba prolongando a crise nas empresas. “A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.”

Nos últimos anos, Munhoz participou das maiores recuperações judiciais do País, como Odebrecht, PDG, OAS, EAS, Grupo X, Oi, entre outras. Até mesmo por isso, tem sérias críticas ao processo, que hoje ele acredita estar enfrentando um perigoso risco de perda de credibilidade.

Em entrevista ao Estadão, ele contou suas preocupações sobre a instituição da recuperação judicial e como dar mais eficiência aos instrumentos desse processo. Confira a seguir a entrevista:

Essa onda de crise e recuperação judicial é semelhante à de 2016?

De fato existe uma nova onda e atribuo isso a dois fatores primordiais: taxa de juros elevada e o momento da economia brasileira. Hoje as empresas não têm o mercado de capitais como uma fonte fácil de financiamento, não temos IPO (oferta pública de ações) nem emissão de debêntures. Teve um momento em que tínhamos empresas em dificuldade, mas a maneira que ela encontrava de sair da situação era fazer um IPO. O que é uma contradição. Agora algo que também ocorre na economia mundial é que, no passado, tínhamos ciclo de crescimento e de crise econômica mais espaçados no tempo. Hoje, esses ciclos são mais curtos. Tem também crise de setores específicos. Empresas que deixam de existir porque a tecnologia mudou o mercado. O mercado financeiro também se sofisticou muito. O nível de alavancagem das empresas aumentou e as ondas de recuperações judiciais ficaram menos espaçadas no tempo.

Qual o reflexo da crise macroeconômica?

Sempre vai ter empresas crescendo, abrindo capital, e empresas em dificuldade. Mas, com crise macroeconômica, é outra história. Faz parte da economia contemporânea que você tenha empresas lidando com momentos de crise financeira mais ou menos graves. Até por isso, na literatura econômica internacional, cada vez mais se dá relevância ao papel de se ter um sistema de solução da crise da empresa eficiente. Isso é um fator de resiliência econômica. Resiliência é fundamental. Quando você não tem um instrumento para solucionar a crise de uma forma estrutural, ela tende a se prolongar. Aí as empresas vão morrendo aos pouquinhos.

Munhoz diz que há falta de eficiência dos instrumentos de recuperação judicial no Brasil Foto: Leo Martins/Estadão

É o que está acontecendo no Brasil?

O Brasil tem um problema sério de falta de eficiência nos seus instrumentos. Tanto que é muito comum que as mesmas empresas entrem em várias rodadas de reestruturação de dívida ao longo do longo tempo. A gente tem muita dificuldade no Brasil de adotar soluções realmente estruturais. A tendência no Brasil é ir jogando o problema para frente. A empresa sabe que vai precisar de uma nova rodada lá na frente. O credor que já deu um alongamento também sabe. Todo mundo sabe. Mas todo mundo prefere isso a adotar uma solução estruturada.

Como melhorar esse sistema de solução no País?

É preciso aprimorar a lei em alguns pontos. Faz pouco tempo, teve uma mudança na lei de falência e de recuperação. Houve avanço, mas acho que ficou aquém do desejado. Mas o problema não é só a lei. São as instituições encarregadas de aplicar a lei. A gente está vivendo um momento em que estou com receio de que o instituto da recuperação judicial esteja entrando numa crise de credibilidade no País. Para o instituto ter credibilidade, ele não pode ser o instituto do devedor ou dos sócios do devedor, ele é um instrumento de todos os agentes econômicos, para buscar uma solução que coletivamente seja melhor. Ele não é um instrumento do dono da empresa, ele é um instrumento coletivo. Se ele começa a ser usado como um instrumento judicial, de fazer prevalecer uma tese ou outra, sem transparência, sem informação, começa a ter uma situação de problemas de relação entre instituição encarregada de aplicar a lei, na nomeação da administradora judicial, honorários estratosféricos. Foi o que aconteceu na falência e na concordata.

Por quê?

Lá atrás nenhum agente econômico confiava na falência/concordata. A lei de 2005 veio para mudar isso, deu mais poder de influência para os credores. Por isso é que tem assembleia de credores e elaboração de plano. Na concordata, o juiz decidia e mandava suspender o pagamento. Agora, não. Tem de ter negociação. Nesse modelo, a solução é encontrada pelo mercado. O poder de tomada de decisão é dos agentes econômicos. A instituição está ali para coordenar, dar transparência, assegurar que a lei seja cumprida. Se o instituto não é usado dessa forma, ele pode entrar em uma crise de credibilidade. Aí você começa a ter uma aversão do mercado ao instrumento.

Já estamos nessa crise?

Não posso citar casos, mas, ao longo desse ano, tem havido muita crítica à falta de transparência, aos honorários imensos, à dificuldade de os credores terem agentes da sua confiança nomeados para acompanhar os trabalhos, para ter acesso à informação. A lei funciona quando tem previsibilidade e segurança sobre a forma que ela é aplicada. Se a cada caso, muda a interpretação da lei, isso cria insegurança para o mercado. Como um acadêmico que estuda a matéria, eu tenho, sim, forte crítica ao momento atual. Mais do que isso, tenho receio de que o instituto esteja entrando em uma forte crise de credibilidade. Os agentes econômicos ficam pensando que, quando um caso vai para o Judiciário, para a recuperação, já não sabem mais o que vai acontecer. Não pode ser assim.

Qual é o resultado da falta de credibilidade?

O resultado disso é que, se, no sistema brasileiro, o instrumento principal para você resolver a crise é a recuperação judicial e a recuperação extrajudicial - na qual você também precisa da homologação do juiz -, você fica sem instrumentos. Quem quer usar o instrumento com transparência para resolver uma crise, vai acabar sendo punido pelo mal uso do instrumento. Aí se não tem recuperação judicial, não tem instrumento para resolver a crise. Esse é o problema. A gente vinha avançando. Agora retrocedeu. O empresário brasileiro só pede recuperação quando não há mais saída. Nos últimos dez anos, gradualmente, ainda que lentamente, estava havendo um processo de conscientização e chegando a haver momentos em que o próprio credor apontava que a melhor solução era uma recuperação, porque se não não consegue achar uma solução coletiva para o problema. Estávamos evoluindo para isso. Hoje começo a ouvir no mercado que, quando tem recuperação, não se sabe o que vai acontecer.

Munhoz diz que o País continua num momento de alta do número de recuperação judicial, desencadeado com a crise da Americanas; a combinação de juro elevado e receita estagnada faz aumentar o número de casos Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO CONTEUDO

Essa mudança na percepção ocorreu neste ano?

Acho que, no último ano, temos tido grandes recuperações judiciais com muita repercussão tanto perante bancos como mercado de capitais, eu digo, debêntures e bonds (títulos). Os principais pontos criticados são falta de transparência, falta de informação, falta de possibilidade de participação efetiva dos credores no processo, imprevisibilidade das decisões, isto é, decisões que parecem contrariar a lei, parecem forçar a interpretação para atender a uma demanda do caso. E também situações que têm sido denunciadas pela mídia sobre a questão de como é a relação entre o judiciário e outros atores que atuam na recuperação judicial.

O que e quem causou essa desvirtuação da RJ?

Uma combinação de fatores. Um advogado diz para o empresário: ‘Fique tranquilo que eu entro com a recuperação e vão dar todas as decisões a seu favor’. Se o empresário acreditar e, pior, acontecer de verdade, o instituto entra em crise. Não pode ser assim. Então, acho que é uma combinação de diversos fatores. O que eu diria é que, quando a lei foi aprovada, houve um movimento no judiciário para aplicar bem a lei. São Paulo, por exemplo, criou as varas especializadas. Outros estados seguiram a mesma linha. Essas varas, na verdade, nasceram como Vara de Falência. Foi junto à aprovação da lei de 2005. Tentaram se especializar e criar um ambiente para aplicar bem a lei e para ter coerência nas decisões, pois isso traz previsibilidade para o mercado. Foi caminhando por aí. Não estou dizendo que acabou a recuperação judicial. Mas acho que estamos em um momento de risco.

Qual o risco?

É importante para a economia brasileira que exista um instrumento para lidar com a crise das empresas. Esse instrumento precisa ser usado com transparência, eficiência, de maneira correta, sem outras influências, com equilíbrio nas decisões, com previsibilidade. Mais um exemplo: lembro que por volta de 2012 advoguei para um investidor que comprou ação da rede de distribuição de energia elétrica do Pará, era a Equatorial naquele momento. A Celpa entrou em RJ e houve a aprovação de um plano de recuperação. Nesse plano, houve a aquisição do controle da Celpa pela Equatorial. A Equatorial foi bem, os acionistas ganharam dinheiro, melhorou a distribuidora. É um caso de sucesso de RJ. Agora, naquele contexto, saiu uma medida provisória, ainda no governo da Dilma (Rousseff), proibindo que concessionária de concessão de energia elétrica entrasse em recuperação judicial. Agora estamos vendo a quantidade de discussões, não vou entrar no mérito delas, no caso da Light. Isso é um ambiente complicado. Primeiro tem uma lei proibindo, mas aí tentam achar uma maneira de lidar com a crise apesar de a lei ter mudado. Fica sem uma direção clara do caminho. O mínimo que precisa ter é previsibilidade sobre a regra do jogo. Com esse caso, fica claro que não tem e cria insegurança.

O caso da Light abala a instituição da RJ em si ou mais essa visão do investidor para o País?

A incerteza e a falta de previsibilidade em torno da crise da concessionária de energia elétrica não contribuiu. Para resolver a crise, você deveria discutir como é que organiza a dívida, como protege a empresa enquanto isso. Mas, no fim, o que vamos ver é um monte de discussão de tese jurídica. Cabe ou não cabe a recuperação de concessionária? Pode incluir a concessionária no processo da holding? Uma discussão de tese que não tem nada a ver com a solução do problema. Mas o tempo que se gasta com a discussão dessas teses jurídicas pode inviabilizar uma solução eficiente para o problema - é isso que chamo de ausência de previsibilidade e segurança. Se alguém vai comprar debênture, por exemplo, da Energisa ou da Enel, a primeira pergunta que o investidor vai fazer é: ‘se tiver uma crise na empresa, pode ou não pode recuperação?’ Não sei como responder isso. Isso faz parte do desenvolvimento do ambiente básico para o investimento. A gente está longe de ter previsibilidade e segurança.

Isso pode prejudicar o apetite do investidor estrangeiro?

Claro. Uma emissão de debêntures é um instrumento de financiamento da atividade da empresa. A empresa vai fazer uma grande emissão no mercado internacional para investir em infraestrutura, por exemplo. A primeira pergunta que o investidor faz é quais direitos caso o crédito não seja pago. Como funciona no Brasil o sistema de chapter 11? Eu até saberia dizer, mas a evolução dos casos está aumentando as dúvidas. Se tem uma recuperação, o investidor tem acesso à informação? Sabe exatamente qual é a condição econômica da empresa? Tem direito de voto? Pode votar individualmente? Pode aprovar plano contra a vontade do acionista controlador? São perguntas básicas, mas que temos dúvidas de responder. Uma pesquisa da Universidade do Sul da Califórnia (EUA) que diz que o fator que determina a maior eficiência para resolver a crise da empresa é o Estado que vai julgar o caso. Se for Dellaware ou o Distrito Sul de Nova York, é grande a chance de dar certo. Daqui a pouco, no Brasil, talvez comece a acontecer isso. Uma recuperação judicial no interior de um Estado, perante um juiz que é da cidade que a única geradora de empregos é a empresa, aí não vai ter decisão que não seja favorável à empresa. Não vai ter decisão em favor do credor ou do investidor. Não pode ser assim.

Temos visto uma série de empresas grandes em recuperação judicial, e outras, ameaçadas. Com o juro alto podendo reduzir o faturamento delas e diante do grau de alavancagem, a tendência é que surjam novos pedidos?

A gente continua em um momento de aumento do número de casos. O custo do crédito está altíssimo, com o juro elevado. Se a receita não está crescendo, há uma combinação que faz aumentar o número de casos. A percepção é que tem muitas empresas médias e grandes que precisam ajustar a sua estrutura de capital. Algumas precisam com mais profundidade e outras menos, mas o número é muito grande. Muitos casos podem acabar se resolvendo em negociações privadas. Existe uma disposição, um reconhecimento dos agentes financeiros que é melhor uma negociação privada, até por conta do que mencionei, do que entrar num processo judicial. Agora, quando o problema até ultrapassa a questão da dívida puramente financeira, começa a afetar também fluxo de caixa, pagamento de fornecedor, aí é difícil evitar o caminho de uma recuperação judicial. Por isso, a tendência é, sim, aumentar o número de casos.

Essas empresas têm um perfil?

As empresas muito grandes são as que têm uma chance maior de encontrar uma solução que não passe pela recuperação judicial, que siga uma recuperação extrajudicial ou uma negociação. Mas há situações em que não tem jeito evitar uma recuperação. Acredito que há algumas empresas grandes que devem entrar em RJ. Não tenho dúvida disso não. Isso também é algo natural. O ideal é que fossem processos rápidos, bem negociados, eficientes e que permitissem que as empresas saíssem logo da crise. Esse deveria ser o objetivo.

Tem algum setor que está sofrendo mais?

Varejo é um setor em que isso tem ocorrido. Mas tem outros também. Tem empresas de infraestrutura cujos problemas não foram resolvidos até hoje. Há empresas na área de incorporação imobiliária ainda com problemas. Mas não é um problema setorial. Quase todas as empresas estão sujeitas a problemas com o custo de crédito super elevado, a ausência de fontes de crédito e as receitas que não estão subindo.

Há uma crítica recorrente no Brasil de que as empresas ficam em recuperação judicial por um período muito longo. Esse problema também tem se intensificado?

Acho que tem melhorado, mas muito pouco. Menos do que deveria. Brinco que são as empresas zumbis: convivem com os problemas eternamente e nunca voltam à vida normal. Mas a gente perdeu a oportunidade na mudança da lei anterior. Uma das ideias era que, após o plano de recuperação, a empresa voltasse à vida normal. A gente infelizmente manteve a ideia de que uma empresa fica por mais dois anos da recuperação judicial. Outro fator é que você precisa de um amadurecimento institucional para buscar soluções mais estruturadas.

As empresas brasileiras estão muito alavancadas?

Depende muito do setor e da empresa. Nos últimos anos, houve no Brasil um crescimento do mercado de crédito, o que é positivo. Historicamente, o País nunca teve fonte de financiamento privado para as empresas, o que é horrível. Obviamente, muitas empresas aproveitaram bastante esse boom. O problema no Brasil é que, às vezes, o empresário mais otimista faz um investimento acreditando que um monte de coisa vai acontecer, levanta dívida em função disso e o business plan não acontece. A dívida fica desproporcional ao tamanho do que ficou a empresa. Aí você tem ainda uma elevação muito abrupta da taxa de juros. Isso pega um monte de gente na curva. Acho que estamos nesse momento. Mas o mercado de crédito no Brasil ainda é muito menor do que em outros países mais desenvolvidos. A gente tem é um mercado de crédito muito concentrado. Cinco bancos têm 90% das transações financeiras. O fato de ter o desenvolvimento do mercado de capitais ao lado disso é um alento, pois está desconcentrando um pouco esse mercado. Isso é positivo, porque senão você tem muito pouca gente com um poder econômico muito elevado, o que acaba restringindo o crédito. O problema não está no excesso de crédito.

E onde está?

Acho que a gente tem de avançar em aumentar o acesso e diminuir o custo de crédito. Isso é crucial para o desenvolvimento das empresas brasileiras e aprimorar os instrumentos de recuperação do crédito quando você tem a crise. Melhorar a falência, por exemplo, é fundamental. Isso não foi feito. Pior que a recuperação judicial é a falência no Brasil. Ela funciona pessimamente. É quase como um sinônimo de que o credor não recebe nada. Isso é muito ruim, porque afeta a própria recuperação judicial. No Brasil, a falência funciona muito mal. Eu diria que é urgente que houvesse um projeto de reforma do capítulo de falências da lei.

E o que teria de ser feito?

Algo parecido com o que foi feito na lei de recuperação. Hoje a falência é presidida pelo juiz e tem um administrador judicial com poder imenso. Ele que manda em tudo, passa a gerir a massa falida, a tomar todas as decisões, é o encarregado de vender os bens e de pagar o passivo. Acho que tem de ter uma solução de mercado. Talvez os credores devessem escolher quem vai gerir a massa falida ou determinadas decisões teriam de ser tomadas em assembleia de credores. Tem de ter mais informação, transparência e dar mais oportunidade de participação aos agentes privados para encontrar a solução que entendem ser a mais adequada. Então, um ambiente menos burocratizado, menos judicializado.

Entrevista por Luciana Dyniewicz

Repórter de Economia & Negócios. Formada em jornalismo pela UFSC e em ciências econômicas pela PUC-SP. Vencedora dos prêmios Citi Journalistic Excellence, Boeing Abear de Jornalismo e CNT de Jornalismo na categoria meio ambiente. Bolsista do World Press Institute (WPI) em 2024.

Renée Pereira

São Paulo

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