A economista Rafaela Vitoria, que comanda a área de economia e de pesquisa do Banco Inter, não poupa críticas à política fiscal do governo Lula. Segundo ela, mais do que a frustração com as receitas, que ficaram bem abaixo do que esperava o governo em 2023, o que preocupa é o crescimento acelerado dos gastos.
Nesta entrevista ao Estadão, Rafaela diz que “ter gasto na frente para buscar a receita depois é um erro de política fiscal” que o País está voltando a cometer. “O grande problema das contas públicas no Brasil, hoje, é controlar gastos e não receita, mas o governo não vem fazendo qualquer esforço para manter os gastos sob controle”, diz. “Hoje, no debate, não existe essa preocupação com o crescimento dos gastos, mas isso precisa voltar para a pauta.”
Rafaela fala também sobre o risco de o governo não cumprir o novo arcabouço fiscal, que prevê déficit zero nas contas públicas em 2024, analisa o impacto na atividade econômica das medidas arrecadatórias propostas pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que “não tiveram o efeito que ele desejava”, e comenta as iniciativas de “contabilidade criativa” do governo para maquiar o resultado fiscal. Confira a seguir a entrevista completa de Rafaela Vitoria.
Como a sra. está vendo, de forma geral, o quadro fiscal do País?
Eu estou vendo uma deterioração muito grande, até maior do que a gente esperava. A gente já começou 2023 com uma expectativa negativa, por conta da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da Transição e da previsão de desaceleração de PIB (Produto Interno Bruto). E, com os dados de outubro divulgados pelo Tesouro, o que a gente vê é um quadro até um pouco pior do que a gente imaginava em termos de arrecadação e de atividade econômica. As duas pontas estão decepcionando, tanto o lado da receita, no qual há uma frustração maior, quanto o lado do PIB. A queda da inflação é boa para a economia, claro, mas tem um impacto na arrecadação. Ainda mais se a gente levar em conta que, pelo IGPM (Índice Geral de Preços – Mercado), a inflação de custo de produção da indústria, a inflação de bens, foi negativa. Agora, mais do que isso, o que preocupa é o lado dos gastos. O governo apresenta um volume de gastos acima do esperado. As despesas obrigatórias estão crescendo bem acima do Orçamento. Existe, então, uma preocupação com certo descontrole das despesas – e o governo não vem fazendo qualquer esforço para manter os gastos sob controle. Além disso, hoje, no debate, não existe essa preocupação com o crescimento dos gastos nem com a necessidade de se controlar esse crescimento de gastos. Acredito que isso precisa voltar para a pauta.
Agora, o governo, por meio do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, propôs um novo arcabouço fiscal ao longo desse processo e alguns analistas entenderam que isso era uma sinalização positiva nesse campo. Qual a sua avaliação sobre o novo arcabouço fiscal? Qual o impacto que ele pode ter no quadro que a sra. traçou?
O desenho do arcabouço é até positivo. A ideia de você crescer despesas abaixo do crescimento de receita é boa. Você vai buscar um ajuste fiscal, um equilíbrio, ao longo do tempo. O desenho do arcabouço não é ruim. A questão é que a gente já está chegando nesse limite. Em 2023, a gente não teve o arcabouço valendo ainda – ele só vale a partir de 2024 –, mas está vendo que o governo está aumentando as despesas bem acima das receitas e não está seguindo o arcabouço. A gente já vê uma grande dificuldade de o governo cumprir o arcabouço. A contratação de gastos para 2024 é bem maior do que o limite do arcabouço, que estabelece um teto de crescimento real para as despesas de 2,5% no ano, enquanto as receitas devem continuar a frustrar as expectativas.
Como a sra. analisa as medidas de aumento de receita propostas pelo ministro Fernando Haddad?
Elas não tiveram sucesso. Algumas foram aprovadas pelo Congresso, mas até agora não surtiram o efeito que o ministro desejava. Então, a gente começa 2024 com uma preocupação grande de que o arcabouço não vai ser cumprido. Apesar de o arcabouço ter um desenho provavelmente positivo, o não cumprimento dele traz certa insegurança para o rumo da política fiscal nos próximos anos.
Embora a PEC da Transição tenha aberto um espaço de despesa grande, fora dos limites do Orçamento, o ministro tinha prometido um déficit em 2023 de, no máximo, 1% do PIB. Mas, pelas informações já disponíveis, o déficit deve ser quase o dobro disso. Como a sra. avalia esse resultado?
A estimativa do Tesouro era de um déficit de pelo menos 1,40% do PIB em 2023, já considerando o “empoçamento” de despesas (gastos previstos, mas não realizados). Com o pagamento das parcelas pendentes dos precatórios de 2022, o déficit pode ultrapassar os 2% do PIB. Então, de fato, a gente vai terminar o ano com uma expansão de gasto bem significativa. Há também uma preocupação com a qualidade dos gastos, porque os aumentos vieram principalmente de transferências de renda, para a Previdência e os programas sociais, como o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e o Bolsa Família. E, quando a gente olha o estado da economia, o mercado de trabalho hoje, que está muito robusto, com uma taxa de desemprego chegando perto de 7%, isso não é muito condizente com o cenário atual. Não faz muito sentido haver uma expansão de gasto social no momento em que o mercado de trabalho melhora. O governo poderia ter feito um trabalho de revisão do Cadastro Único muito mais eficiente. A gente sabe que ainda há muitas irregularidades, que vieram do fim de 2022, da época da eleição, e se multiplicaram ao longo do ano. A gente tem de fazer um controle efetivo do cadastro para que os programas sejam eficientes.
Qual o impacto desse aumento dos gastos sociais nas contas públicas?
O resultado é que tem ocorrido um crescimento real do gasto social em relação ao PIB sem necessidade, principalmente se a gente considerar que esse gasto social já estava muito grande em 2022, em função do auxílio de R$ 600. O atual governo aumentou ainda mais os valores dos benefícios. O valor de R$ 600 agora é o mínimo, que pode crescer com o adicional por filho e outros acréscimos. Além disso, o volume de famílias cadastradas continua próximo de 20 milhões. Antes da pandemia, esse volume era de 13/14 milhões. Isso ainda inclui aquelas famílias unipessoais, que foi uma irregularidade que surgiu com a pandemia, quando a necessidade era outra. Hoje, pensando no programa original, o Bolsa Família poderia ser mais focado, para a gente ter um gasto mais eficiente.
Levando esses pontos em conta, qual sua estimativa de déficit primário para 2024?
A gente está trabalhando com um déficit de 1% do PIB, o que já é uma boa notícia. Considerando que, no fim, o déficit de 2023 deve ficar acima de de 2% do PIB, teoricamente a gente está melhorando. O sinal é positivo. Mas há o risco de esse déficit crescer e de o governo não falar do descontrole de gastos.
Agora é incrível que, mesmo nessa situação, ainda tem gente por aí dizendo que o problema para o País zerar o déficit em 2024 são as emendas parlamentares. É brincadeira, né?
Não, não, não é esse o problema. Isso até pode ajudar, obviamente, mas, quando a gente olha o crescimento de despesas de 2023, o que se constata é um aumento generalizado de gastos, que alcança todas as linhas. Então, não é só a questão das emendas. Eu acho que a gente está tendo uma disputa do Executivo com o Congresso, para ver quem gasta mais. O Legislativo quer ter mais verba para gastar e o Executivo, também. Ninguém quer fazer o dever de casa. Falta um pouco de bom senso, porque não dá para fazer esse tipo de competição, para ver quem gasta mais.
De qualquer forma, as contas públicas devem ter um resultado melhor em 2024 do que em 2023. É isso?
Do ponto de vista do déficit, sim, mas o risco continua. A preocupação com a questão fiscal ainda existe. Quando a gente compara o Orçamento de 2024 com o último relatório bimestral do Tesouro, que saiu no começo de dezembro, há um crescimento estimado das despesas obrigatórias da Previdência, que é a principal conta, de 5,3%. Isso significa que o crescimento das despesas está subestimado. Só de aumento do salário mínimo, que indexa os benefícios da Previdência, são quase 7%. Então, a gente vai continuar vendo surpresa de gastos além do que foi orçado pelo governo e aprovado pelo Congresso. Esse é um ponto de atenção. Haverá necessidade de se fazer um contingenciamento (limitação) maior de gastos para compensar isso, mas eu acredito que o risco de não haver esse contingenciamento e de o arcabouço fiscal não funcionar é grande, o que deve elevar o déficit em 2024.
A sra. acredita também que as receitas de 2024 estão superestimadas de novo, como aconteceu em 2023?
Não, não muito. Acredito que, pelo lado da receita, existe uma expectativa de um aumento de arrecadação, por conta de medidas que foram aprovadas pelo Congresso. Inclusive o governo colocava isso como uma condicionante para cumprir a meta fiscal. O governo gostaria que outras medidas fossem aprovadas, como o aumento da tributação do JCP (juros sobre capital próprio), mas isso não aconteceu. Algumas propostas aprovadas pelo Congresso também ficaram um pouco diferentes do que pretendia o governo. Então, do ponto de vista de arrecadação extra em 2024, aí, sim, deve haver alguma frustação.
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Ainda assim, considerando que o arcabouço prevê déficit zero em 2024, esse déficit de 1% que a sra, está prevendo já vai jogar, se confirmado, esse arcabouço no lixo.
Sim, e é por isso que o governo precisaria fazer o contingenciamento dos gastos discricionários e respeitar os gatilhos do arcabouço, principalmente em 2025. Tem outro ponto importante: em 2025, o crescimento das despesas estará limitado em 50% do crescimento das receitas. Não vai dar para fazer concurso público, aumentar o salário do funcionalismo. A questão é se o governo vai aceitar esses gatilhos ou se vai simplesmente deixar de cumprir o arcabouço e mudar a lei. Fica essa dúvida.
Muitos analistas estão dizendo que essa questão de alteração da meta só foi adiada e que ela será alterada em algum momento de 2024. A sra. tem a mesma percepção?
Sim, porque o governo pode alterar a meta e aí não tem problema. Não aciona os gatilhos nem o contingenciamento. O Congresso aprova a nova meta, e pronto, o governo fecha o ano cumprindo o Orçamento. Era isso que acontecia no governo Dilma. Não sei se você lembra, mas houve um ano da Dilma, em 2013 ou 2014, em que a meta de resultado primário foi alterada em dezembro, já no fim do ano, porque o governo não iria cumpri-la.
Tudo bem, o governo cumpre a nova meta, a meta alterada, mas, de qualquer forma, o resultado fica no vermelho e vai turbinando a dívida pública.
Exatamente. O grande problema de o governo não controlar o déficit em2024 é que isso pode atrapalhar o processo de queda de juros. Na medida em que o mercado entende que o risco fiscal está maior, a gente também pode ter impacto na expectativa de inflação e no câmbio. Isso pode atrapalhar o trabalho do Copom (Comitê de Política Monetária do Banco Central), de redução da taxa de juros. Acredito que, hoje, o mercado não está precificando o risco fiscal como a gente está vendo. O mercado está aceitando um déficit maior nos próximos anos, acreditando que esse problema, em algum momento, vai ser resolvido.
Considerando esse cenário, onde nós vamos chegar? Há uma luz no fim do túnel ou estamos caminhando para o abismo de novo?
Há uma luz. Eu acho que até o fato do dólar estar comportado é porque a gente tem hoje um déficit que é possível resolver. Existe espaço para controlar despesa, mas há pouca vontade para fazer isso. É diferente de 2014, quando você tinha um crescimento do déficit da Previdência, que era muito grave, e a gente precisava de uma reforma, que foi aprovada. A reforma da Previdência trouxe uma correção de rumo. O próprio teto de gastos também contribuiu bastante para estimular o debate de que, se o governo aumentar o gasto aqui, precisa tirar o gasto dali.
Acho que isso melhorou muito ao longo dos últimos seis anos, de 2017 a 2022. Houve a paralisação dos concursos, o congelamento dos salários dos servidores. A despesa com o funcionalismo caiu de 4,5% do PIB para 3,5% do PIB. Foi uma queda importante que ocorreu nesse período. Houve também as reformas realizadas nos últimos anos, que contribuíram muito também para que a gente tenha tivesse um quadro hoje que não é de déficit sistêmico. A questão é que existe uma necessidade de algum controle de gasto, que não está em pauta hoje. Se o governo tiver disposição, é possível cumprir a meta de déficit zero em 2024. Só que precisa de um esforço maior, que a gente não acredita que vá acontecer. É possível zerar o déficit em três ou quatro anos. Na medida em que o Brasil volte a crescer e que os juros caiam, você pode ter um aumento natural de arrecadação. Então, o problema fiscal hoje não é sistêmico, como em 2014.
A questão é que tudo isso vai gerando desconfiança sobre os rumos do País nos investidores e nos empresários, afetando o crescimento da economia.
Sem dúvida, principalmente pelos juros altos. Hoje, você vê a taxa de juros real da economia em 170/180 pontos, mais inflação. Isso impede o investimento privado de voltar a crescer.
Essa situação toda também acabou atrasando a redução dos juros pelo Banco Central, gerando uma despesa adicional pesada para o Tesouro com a rolagem da dívida pública. Como a sra. vê essa questão?
A gente está com uma despesa de juro crescente, não só porque a dívida está maior, mas porque o juro real ficou mais alto. O custo de emissão do Tesouro hoje é maior do que era três anos atrás. Então, a despesa de juros continua muito elevada.
A sra. calcula que a despesa com juros para rolagem da dívida pública fique em quanto, no total, em 2023?
Até setembro, a despesa com juros chegou a R$ 550 bilhões. Deve fechar o ano mais ou menos com R$ 700 bi.
Agora, independentemente de o impacto das medidas de aumento de receita não ter sido o que o governo esperava, houve a elevação de uma série de tributos que vai drenar recursos da iniciativa privada. Qual o impacto que esse aumento de tributos deve ter na economia?
Tem esse ponto também. Aumentar a arrecadação, na magnitude em que o governo está aumentando, é negativo para economia. Quando você aumenta a receita, com foco principalmente nas empresas, isso reduz o investimento, reduz o crescimento e tem impacto na inflação de curto prazo, afetando também o consumidor. Então, existe uma preocupação de que um aumento de arrecadação dessa magnitude também possa desacelerar a economia no curto prazo.
Em razão dessas questões que a sra. está colocando, o governo já começa a falar na exclusão de algumas despesas do resultado fiscal. Como a sra. analisa isso?
Na verdade, quem faz essa apuração é Banco Central. Em 2023, o déficit previsto na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) deve ficar acima de 2% do PIB. Então há espaço ali para acomodar isso sem fazer muita diferença no resultado final. Agora, eu acredito que, em 2024, a gente vai se preocupar com essa questão. Mas, como quem faz essa apuração é o Banco Central, ele não deve acatar esse tipo de contabilidade. Em setembro, quando o Tesouro contabilizou o saldo remanescente do PIS/Pasep no resultado primário, o Banco Central não considerou isso no cálculo. Por isso, o déficit calculado pelo Banco Central é maior que o do Tesouro. É algo, de maneira geral, ruim. Acho que a minha avaliação é negativa, porque a gente está voltando ao passado, com esse tipo de discussão, sobre o que está abaixo da linha, o que está acima da linha, com pouca transparência.
Parece que a gente está voltando na era da contabilidade criativa.
Exatamente. Como o governo não quer ver o déficit, ele muda a contabilidade aqui e ali, mas, na verdade, o déficit existe. No fim, a dívida pública será sempre impactada. Tudo isso acaba batendo na dívida. Não tem jeito.
Uma última pergunta: embora a sra. tenha diferenciado a situação atual da que ocorreu no governo Dilma, em 2014/2015, em função das reformas e dos ajustes que foram feitos desde o impeachment, esse receituário que está na mesa hoje dá impressão de que o Lula “dilmou”. Dá para a gente dizer isso?
O que mais incomoda é que a gente voltou a ter um governo que gasta antes e vai buscar a receita depois. Esse é um pecado mortal na nossa economia. A gente luta contra isso desde a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), no governo FHC. É importante que o governo volte a ter disciplina fiscal. Pelo que a gente viu no teto de gastos, apesar de toda a discussão de que ele era muito restritivo, o grande problema das contas públicas no Brasil, hoje, é controlar gastos. Não é controlar receita. A receita está fora de controle e a gente está vendo de novo esse cenário. Não tem como você conseguir arrecadar mais. A carga tributária já é muito elevada no País. Então, o governo precisa controlar gastos. Ter gasto na frente para buscar a receita depois eu acho que é mais um erro de política fiscal que, infelizmente, a gente está voltando a cometer.