O Fundo Garantidor de Créditos (FGC) desempenha um papel fundamental na estabilidade do sistema financeiro brasileiro, oferecendo proteção aos depósitos bancários e contribuindo para a confiança da população no setor. Em entrevista ao Estadão Blue Studio, Deborah Kirschbaum, diretora jurídica do FGC, explicou o funcionamento do Fundo e a sua importância para a segurança do mercado financeiro.
Começando pelo básico, poderia explicar qual a finalidade e o modo de atuação do Fundo Garantidor de Créditos?
A finalidade do FGC, como a de qualquer outro garantidor de depósitos, é contribuir para a confiança da população no sistema financeiro. O FGC desempenha esta função de duas formas: (i) ao garantir, observados limites definidos em regulamento, determinados tipos de instrumentos financeiros de emissão bancária que são objeto de poupança popular, incluindo o próprio saldo em conta corrente do cidadão, em relação ao risco de quebra da emissora, e (ii) ao prestar assistência financeira a suas associadas, desde que observadas determinadas condições. Após sua atuação sob qualquer dessas modalidades, o FGC deve agir para recuperar o valor desembolsado, já que se trata de um recurso da sociedade, e a recuperação desses recursos é importante para a manutenção da capacidade do FGC de enfrentar novas crises.
Você mencionou outros garantidores de depósitos. Pode comentar quais outros existem e qual é a lógica pela qual o FGC é capaz de contribuir para o aumento da confiança no sistema financeiro?
No Brasil, há dois garantidores de depósitos: o FGC, entidade sem fins lucrativos cuja associação é compulsória a bancos e financeiras, por norma do CMN, e o Fundo Garantidor do Cooperativismo de Crédito – FGCoop, associação também obrigatória, das cooperativas de crédito. Há mais de cem garantidores de depósitos ao redor do mundo, sendo que a maior parte é membro ou associada a um organismo internacional chamado IADI – International Association of Deposit Insurers, que fixa os princípios gerais de regência dessas entidades. A lógica pela qual fundos garantidores contribuem para a confiança no sistema financeiro é a seguinte: suponha que você tem suas economias aplicadas no banco “A”. É possível que, ao tomar conhecimento da quebra de um outro banco – banco “B” – você fique inseguro de manter suas economias no banco “A”, pois assume que a quebra do banco “B” não seja um fato isolado ou que a quebra de um pode levar à quebra do outro (os bancos são interconectados, isto é, pessoas pagam com os depósitos mantidos em um banco suas dívidas com outro banco, o que justificaria seu receio). Contudo, se você souber que há uma entidade capaz de garantir o pagamento de parte dos depósitos mantidos por poupadores em outros bancos, inclusive nos bancos “A” e “B”, você será relativamente indiferente à quebra do banco “B” e terá a tranquilidade de manter os seus recursos no banco “A”. Ou seja, a existência do mecanismo de garantia de depósitos aumenta a confiança no sistema e minimiza a possibilidade de uma “corrida bancária”. Não à toa, a versão moderna do mecanismo de proteção a depositantes foi desenvolvido nos Estados Unidos, a partir da experiência do país com a crise dos anos 1930, que enfrentou avalanche de quebras de bancos. Veja que o FDIC – Federal Deposit Insurance Corporation foi criado em 1933. São mais de 90 anos de experiência bem-sucedida com esse mecanismo somente nos Estados Unidos.
Ao prover assistência financeira a bancos, o FGC faz as vezes de um “banco de desenvolvimento” dos bancos, no sentido oferecer fomento às instituições financeiras no Brasil?
Não é função do FGC fomentar a indústria bancária. O FGC tem autorização para socorrer a instituição de uma crise, seja ela de liquidez (problema na gestão do descasamento de prazos de vencimento entre ativos e passivos do banco) ou de natureza estrutural (insuficiência de capital). O socorro pode até produzir efeito pró-competitivo, a depender dos agentes envolvidos. Mas a preocupação primordial do FGC é com estabilidade do sistema financeiro. Aliás, a experiência internacional mostra que o melhor resultado para a sociedade pode incluir desde a hipótese da saída de mercado de uma instituição (como, por exemplo, a resolução do Silicon Valley Bank – SVB, por meio da qual o FDIC transferiu os depósitos cobertos com sua garantia a outra instituição) até a da aquisição do UBS pelo Credit Suisse, que concentrou a indústria.
Este vídeo foi produzido durante o 2ª edição do Seminário Anual do Sistema Financeiro e Crédito: questões atuais
Poderia desenvolver a afirmação de que o FGC “tem a faculdade de prestar assistência financeira a um banco, se tal assistência puder evitar uma quebra”? Há algum critério que orienta a decisão do FGC no sentido de socorrer um banco em crise ou o FGC deve prestar socorro incondicional, a “fundo perdido”?
O FGC não tem o dever de socorrer bancos, mas sim a faculdade de fazê-lo, segundo critérios estabelecidos. Quando o faz, não pode ser a “fundo perdido”. A chave aqui é entender que o FGC administra um recurso que não pertence nem deve beneficiar particularmente aos bancos, aos credores particulares de bancos, nem aos controladores de bancos, mas sim, à sociedade brasileira. O FGC é financiado por contribuições compulsórias recolhidas de suas associadas com base nos volumes aplicados em investimentos elegíveis à garantia propiciada pelo FGC. Assim, o valor dessas contribuições compõe um custo para as associadas que é repassado à sociedade, principalmente nas operações de crédito. Obviamente, trata-se de um recurso escasso, para ser utilizado somente em situações de emergência. Assim, ao considerar um pedido de assistência financeira, o FGC deve ponderar se o socorro é mais ou menos custoso à sociedade, quando comparado ao resultado que poderia ser obtido via liquidação da instituição (“least cost principle”). Este é talvez o mais importante dos princípios fixados pelo IADI. Isso significa que a decisão sobre socorrer ou não um banco deve passar por uma análise caso a caso, mediante emprego de juízo de viabilidade do modelo de negócios proposto para sanar a crise, a fim de que o FGC não desperdice recursos. Dito isso, operar “a fundo perdido” é uma perigosa ideia, por vários motivos. Devemos nos perguntar quais incentivos esse modelo criaria: administradores de instituições financeiras deixariam de se preocupar com o comprometimento da situação econômico-financeira da instituição e com gestão de risco. Já por aí, o Banco Central deixaria de poder decretar a quebra por motivo de insolvência. A decretação de quebra seria possível apenas nos casos de fraude ou após o esgotamento dos recursos geridos pelo FGC. Estaríamos diante de um modelo autodestrutivo, com um custo social insuportável.
Poderia descrever as condições das linhas de socorro que o FGC oferece a bancos em crise e indicar casos concretos em que a entidade contribuiu para evitar a possível quebra de um banco?
São operações de empréstimo, estruturadas de acordo com as particularidades de cada caso. Como disse, o FGC pode fazer desde operações de liquidez voltadas ao reequilíbrio do banco, até operações para viabilizar o que chamamos de “saída organizada”, vale dizer, casos em que a quebra da instituição já é considerada inevitável, e que o próprio controlador reconhece que o melhor a fazer é encerrar as atividades de forma estruturada. Via de regra, as operações de socorro realizadas pelo FGC são sigilosas. Contudo, como exemplo de caso em que o FGC contribuiu para evitar a possível quebra de um banco, podemos citar o caso do socorro ao Banco BTG. Na ocasião, o fato de o FGC ter oferecido uma linha emergencial ao BTG precisou vir a público justamente para ajudar a estancar uma corrida já em curso, de saques de depósitos mantidos no banco. Naquele momento, a instituição enfrentava crise extrema de confiança por parte do mercado. Em retrospecto, é justo dizer que essa foi uma operação exitosa. Além das operações que mencionei, o FGC também pode realizar operações de empréstimo a controladores de instituições financeiras, com a finalidade de capitalização a partir do recurso emprestado, a fim de reenquadrá-las sob os requisitos de capital exigidos pelo Banco Central. Em qualquer dessas operações, o FGC costuma exigir garantias ao respectivo pagamento. Afinal, como mencionei, nenhum desembolso do FGC é feito “a fundo perdido”. O FGC está sempre preocupado em maximizar a recuperação dos recursos que foram empregados no exercício de sua função de contribuir para a confiança da população no sistema financeiro. Como disse anteriormente, a recuperação desses recursos é importante para a manutenção da capacidade do FGC de enfrentar novos eventos de crise. Em benefício da sociedade, cada Real conta.
Como é estruturada a organização interna do FGC? A Diretoria e o Conselho são compostos por membros das próprias instituições associadas? De que forma ocorre a escolha desses membros?
O FGC é administrado de forma independente, vale dizer, os membros da Diretoria e do Conselho de Administração não são podem ser também administradores ou funcionários das instituições associadas. São recrutados no mercado por empresas especializadas. Após a eleição, os nomes são ainda submetidos a aprovação pelo Banco Central.
Pensando no momento “pré-crise”, uma instituição financeira costuma dar sinais de fragilidade antes de “quebrar”. O FGC possui algum tipo de monitoramento em relação a isso? Se sim, quais são os procedimentos que o fundo adota nesses casos?
O FGC monitora constantemente o mercado composto por suas associadas, procurando identificar potenciais riscos associados aos agentes e seus impactos sobre o sistema financeiro. Temos times de especialistas responsáveis por analisar as informações que nossas associadas divulgam ao mercado, interagir com representantes das associadas, e por desenvolver modelos estatísticos e de simulação, destinados a mensurar riscos e o volume de liquidez necessário para suportar cenários adversos provocados por eventuais crises de mercado. No entanto, é preciso lembrar que o FGC não tem o que chamamos de “poder de polícia”. Isto é, não tem atribuição legal de fiscalizar suas associadas, tampouco de lhes exigir prestação de esclarecimentos. O Banco Central é a autoridade exclusiva de regulação, supervisão bancária e resolução do sistema financeiro. O Estatuto Social do FGC prevê que a entidade pode compartilhar informações com o Banco Central. Mas o FGC só toma conhecimento da quebra de uma associada junto com o público em geral, no dia em que o Banco Central decreta o regime.
Você comentou que o FGC só toma conhecimento da quebra de uma associada junto com o público em geral. Como então o FGC se prepara para agir, quando é necessário pagar as garantias a seus beneficiários?
O FGC tem seus próprios recursos aplicados em instrumentos financeiros com liquidez diária. Assim, num evento de intervenção ou decretação de quebra de uma associada, os recursos estão imediatamente disponíveis. Um ponto que o FGC não controla, no entanto, é o grau de prontidão dos sistemas e dos controles nas instalações das associadas, necessários para que as instituições financeiras, sob intervenção ou liquidação, produzam e forneçam ao FGC arquivos eletrônicos com os dados necessários a que o FGC processe o pagamento das garantias. Há norma editada pelo Banco Central, a Resolução BCB 102/2021, que, entre outros pontos, determina que as instituições associadas ao FGC devam dispor dos mencionados sistemas e controles e que encaminhem informações tempestivamente ao FGC. A rapidez com que o FGC é capaz de pagar aos beneficiários da garantia depende de as associadas observarem as normas presentes na Resolução BCB 102/2021. Já na ponta do atendimento ao beneficiário da garantia, o FGC conta com um aplicativo que pode ser instalado em aparelho celular (disponível para sistemas Android e IOS), para realizar os pagamentos de forma online e segura, e que está em constante aprimoramento.
Após a intervenção ou a decretação da liquidação de uma instituição financeira, o investidor precisa tomar alguma providência ou basta aguardar o pagamento da garantia de forma automática?
Após o BCB decretar a intervenção ou liquidação extrajudicial de instituição associada, o interventor ou liquidante designado pelo BCB para administrar a instituição financeira deve realizar a consolidação das informações, por CPF ou CNPJ, dos depositantes e investidores, informando ao FGC o valor que cada um tem a receber. Como mencionei anteriormente, o grau de prontidão das associadas quanto a seus sistemas e controles referidos na Resolução BCB 102/2021 impacta o prazo dentro do qual o FGC pode realizar os pagamentos das garantias. O procedimento não é automático. O investidor precisa solicitar ao FGC o pagamento da garantia, procedimento que hoje já está disponível às pessoas físicas via aplicativo para celulares. Ao optar por receber a garantia do FGC, o investidor deve concordar em ceder ao FGC o seu crédito contra a instituição financeira, até o valor efetivamente recebido, pois o pagamento da garantia se dá em contrapartida pela cessão do crédito.
Você falou sobre a importância de que o FGC seja capaz de recuperar os recursos desembolsados quer com o pagamento de garantias. Como isso se dá?
Como expliquei, ao pagar as garantias a seus beneficiários, o FGC recebe, em contrapartida, os créditos cobertos pela garantia. O FGC se sub-roga nos direitos de crédito constituídos por tais instrumentos. Ou seja, torna-se titular de tais créditos para, em nome próprio, passar a figurar como credor de bancos sob liquidação ou falência. Não por acaso, frequentemente resulta que o FGC é o maior credor de tais instituições. Nessa qualidade, o FGC deve exercer seu direito de cobrar pela máxima recuperação possível do valor de tais créditos, contra massas liquidandas ou falidas. Vale lembrar que o FGC é uma associação sem fins lucrativos. Isto é, não há resultado ou lucro distribuível. Não há acionistas que se beneficiam da gestão do FGC. Todo o recurso deve ser usado para a finalidade do FGC, via pagamento de garantias ou assistência a bancos em crise, em prol dos interesses da sociedade. Por isso, cada Real que o FGC consiga recuperar em liquidações ou falências é importante.
Quais são atualmente os temas de agenda regulatória de maior interesse por parte do FGC?
Pela própria finalidade do FGC, é claro que nos interessam discussões sobre regulação de práticas e condutas na gestão de instituições financeiras, que possam representar risco indesejável, e aumentar o risco moral dos agentes. Além disso, obviamente acompanhamos de perto os desenvolvimentos do projeto de lei de resolução bancária. Por fim, dada a preocupação que mencionei em nossa conversa, quanto à importância de que o FGC seja capaz de recuperar, para futuros usos, os recursos despendidos em pagamentos de garantias e operações de assistência inadimplidas, também entendemos de suma importância os aprimoramentos normativos necessários ao ganho de eficiência nas recuperações de créditos contra devedores solventes e também na gestão de processos falimentares, que, como se sabe, são morosos e extremamente custosos à sociedade brasileira.
O FGC patrocina uma iniciativa do Banco Central que estimula a educação financeira a crianças e adolescentes. Qual a relevância deste tipo de iniciativa?
O FGC apoia, desde o projeto-piloto, em 2021, o programa “Aprender Valor”, do Banco Central, que oferece ferramentas para que professores, escolas e redes de ensino levem educação financeira a estudantes do ensino fundamental de todo o País. O FGC acredita na importância da educação financeira, e, quanto mais cedo passar a integrar a vida das pessoas, melhor. Nós vemos a educação financeira como ferramenta que pode capacitar a população a tomar melhores decisões financeiras, o que é fundamental para a criação de poupança, e, portanto, contribuir para o crescimento sustentável da economia do país.