A economista Martha Seillier, que esteve à frente do PPI (Programa de Parcerias de Investimento) – o órgão responsável pela operacionalização das privatizações e concessões – no governo Bolsonaro, conhece como poucos os meandros das empresas estatais e o peso que muitas delas representam para os pagadores de impostos.
Segundo Martha, quando o Estado passa a ser o grande motor da economia e as estatais se tornam protagonistas no mundo dos negócios, a iniciativa privada se retrai, com consequências danosas no médio e no longo prazos para o País. “Quanto mais o setor público investe, mais está tirando recursos do setor privado, porque esses recursos vêm de algum lugar”, afirma. “Hoje, para muita gente, parece que ainda não é tão óbvio que o orçamento público vem do setor produtivo, porque são os pagadores de impostos que alimentam o governo.”
Nesta entrevista ao Estadão, ela fala também sobre os casos mais afetados pela paralisação das privatizações, como os Correios e o Porto de Santos, sobre as tentativas do governo Lula de revogar o novo marco do saneamento e a privatização da Eletrobras e sobre a importância da responsabilidade fiscal para alavancar os investimentos na produção e o crescimento sustentável. “O equilíbrio fiscal, a credibilidade do governo, é fundamental para o investidor ter uma perspectiva de redução de juros num prazo mais longo”, diz. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Como a sra., que foi responsável pelo PPI no governo Bolsonaro, analisa a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de paralisar as privatizações logo início do governo?
Durante a campanha eleitoral, o presidente já havia anunciado qual seria o norte do governo em relação às estatais, caso ganhasse as eleições. Ele já tinha dito que iria promover o fortalecimento das estatais, a retomada da contratação de colaboradores. O atual governo acredita que o Estado deve ter um papel relevante e crescente na economia, com uma participação ativa das estatais – que, em muitos casos, concorrem com empresas privadas ou atuam em mercados em que já existem prestadores privados – para que elas tenham ainda mais empregados, mais contratos, mais funções.
Até a posse do governo Lula, o número de profissionais das estatais federais, por exemplo, caiu por oito anos seguidos. Vinha caindo desde 2015. Agora, voltou a subir novamente. Enquanto no governo anterior, entre 2019 e 2022, houve uma redução de 42.147 empregados nas estatais, já ocorreu um aumento de mais de quatro mil funcionários no quadro de pessoal efetivo das empresas e bancos públicos, de 434.017 para 438.407, segundo os dados oficiais, apenas nos 15 primeiros meses da atual gestão.
Como a sra. avalia essa obsessão do presidente Lula de ampliar a presença do Estado na economia, em vez de estimular o setor privado a ter um papel mais ativo nos negócios, como aconteceu nos governos Temer e Bolsonaro?
São visões diferentes de Brasil. Hoje, para muita gente, parece que ainda não é tão óbvio que o orçamento público vem do setor produtivo, porque são os pagadores de impostos que alimentam o governo. Quanto mais o setor público investe, mais está tirando recursos do setor privado, porque esses recursos vêm de algum lugar. Quando o Estado passa a ser o grande motor da economia, o setor privado se retrai em muitas frentes, com consequências danosas no médio e no longo prazo. É isto que as pessoas têm de entender.
A sra. pode dar um exemplo concreto de quando o setor privado se retraiu devido à intervenção do Estado na economia?
No governo Dilma, que levou ao limite essa obsessão com o protagonismo do Estado, o que ocorreu com a taxa de investimento? Num primeiro momento, até houve uma movimentação na economia, porque sempre que o governo, com seu orçamento bilionário, começa a investir em infraestrutura, ferrovias, escolas, há um impacto imediato no PIB (Produto Interno Bruto), já que o cálculo do PIB leva em conta os investimentos públicos, os gastos do governo. Só que não era um resultado sustentável.
Em meados de 2016, no fim do governo Dilma e no início do governo Temer, a gente já podia observar uma queda significativa nos investimentos privados. De 2009 a 2013, a taxa de investimento até cresceu. Mas o que aconteceu depois? Ela começou a cair, ladeira abaixo, para menos de 15% do PIB em 2017, e só voltou a subir a partir de 2018. Foi subindo, subindo, subindo, até chegar perto dos 20% do PIB, num período em que os investimentos públicos caíram, graças ao aumento dos investimentos privados.
Quer dizer que, na sua visão, o aumento dos investimentos públicos no governo Dilma não teve impacto positivo na economia?
Quando esses investimentos são só de entrega de infraestrutura, sem a preocupação com a manutenção e a oferta do serviço depois, como foi o caso no governo Dilma, eles acabam afetando de forma negativa a produtividade. Isso sem falar que esse excesso de gasto público alimentou uma crise fiscal aguda, profunda, com um impacto enorme sobre a taxa de juros, sobre a inflação. Será que é isso que o Brasil precisa no médio e no longo prazos?
Para que haja mais investimento privado, o equilíbrio fiscal, a credibilidade do governo, é fundamental para o investidor ter uma perspectiva de redução de juros num prazo mais longo. Quando o País está com juros muito altos, você acaba inibindo o investimento na produção e estimulando a aplicação em renda fixa, no mercado financeiro. A agenda de responsabilidade fiscal é essencial para alimentar a expectativa do setor privado em relação à redução dos juros e à ampliação dos investimentos.
Mas o aumento dos investimentos do governo não é importante para turbinar o crescimento econômico?
É claro que é importante ter uma taxa de investimento mais próxima da média dos países emergentes, de 25%, 30% do PIB. Esta discussão é válida. O investimento público é importante para que a economia cresça. Mas, se o crescimento for ancorado essencialmente no investimento público, que é o que consome imposto, tirando recursos do setor privado, da poupança privada, ele acaba não sendo sustentável, como eu falei. Depois, o setor público não tem a mesma qualidade e a mesma eficiência na entrega dos serviços. A infraestrutura sozinha vira um elefante branco. Quantos elefantes brancos ficaram por aí da Copa do Mundo? Quantos elefantes brancos ficaram das Olimpíadas? Quantas creches e UBS (Unidades Básicas de Saúde) do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) ficaram inacabadas? Isso nem sempre os números mostram. Por isso, o foco não deve ser só ter uma taxa de investimento maior.
Há milhares de obras que começaram no governo Dilma, gerando um aumento na taxa de investimento e no emprego no curto prazo, mas, no fim das contas, aqueles investimentos pararam por falta de recursos, ficaram inacabados. Muitas vezes, as obras até foram entregues, como foi o caso de muitas creches e unidades básicas de saúde. Só que elas foram entregues para quem? Para o município ou para o estado, que não tem recursos para operar os serviços. Então, fica uma creche sem professor, sem merenda, sem aluno, uma Unidade Básica de Saúde sem equipamento, sem médico. Quanto isso afeta de fato o crescimento do país? Isso também tem de ser colocado na conta quando a gente analisa os investimentos governamentais.
Agora, além de o governo deixar mais espaço para o setor privado atuar, que outros fatores, em sua opinião, são importantes para estimular os empresários e as empresas a investir?
O governo precisa dar diretrizes e sinais claros de que o setor privado é realmente importante. É preciso dar segurança jurídica, mostrar que você respeita as leis, respeita os contratos, escuta o setor privado antes de tomar decisões importantes. Você não pode fazer, por exemplo, um leilão de R$ 1 bilhão para comprar arroz importado, como aconteceu no atual governo, quando os próprios produtores do País estão dizendo que isso não é necessário, que eles estão produzindo, que a safra já foi colhida e que as enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul não terão impacto nos preços do produto. Esse diálogo, essa sinalização para o setor privado, é muito importante.
No começo da nossa conversa, a sra. falou que o Lula já havia anunciado na campanha eleitoral que iria paralisar as privatizações. Que projetos foram mais afetados pela decisão do presidente?
A gente tinha, por exemplo, estudos prontos para a privatização do Porto de Santos, que o governo tirou da agenda de concessões, de privatizações. Eu viajava com o ministro Tarcísio (de Freitas, então ministro da Infraestrutura e hoje governador de São Paulo) e acompanhava as missões internacionais para conversar com investidores sobre os projetos mais avançados. Havia um apetite enorme pelo Porto de Santos, o maior porto da América Latina, que tinha um modelo muito interessante de venda.
O Tarcísio, mesmo depois de assumir o governo de São Paulo, insistiu nisso, mais de uma vez, até porque o porto está no Estado que ele assumiu. E o que o governo federal fez? Afastou o investidor privado e disse que o Estado é que vai fazer os investimentos necessários para a modernização do Porto de Santos. Agora, de onde virão os recursos para fazer tudo isso? Esta é a pergunta. Porque eu acredito que a capacidade do brasileiro de pagar imposto já bateu no teto, né? Hoje, há um consenso de que a carga tributária do País já está muito elevada e não há espaço para novos aumentos de impostos.
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Como seria exatamente essa privatização do Porto de Santos?
A gente não estava privatizando o porto propriamente dito. Estava fazendo uma concessão para o setor privado da infraestrutura portuária, a um prazo longo, de décadas, e a privatização da estatal que é responsável pela gestão do porto. A operação envolveria um contrato com preços regulados, com a obrigação de fazer investimentos, obras de dragagem, que são muito importantes para permitir a navegação de navios que têm um calado mais profundo. Recentemente, a Centronave (Centro Nacional de Navegação Transatlântica) publicou um estudo falando que o Brasil deixa de movimentar um milhão de toneladas por ano por limitação nos calados dos navios que podem acessar os portos.
Outra contraprestação do setor privado seria o atendimento a uma demanda local muito relevante, que é a construção de um túnel ligando Santos a Guarujá. Os dois municípios estão superperto, mas hoje você precisa dar uma volta enorme para chegar de Santos a Guarujá e vice-versa. Só a construção do túnel estava orçada em aproximadamente R$ 1 bilhão e o parceiro privado seria responsável por desenvolver essa infraestrutura e prestar o serviço, fazer sua manutenção. O setor privado também seria responsável pela melhoria dos acessos ao Porto de Santos. Há uma série de complicações ali com as ferrovias e as rodovias que dão acesso ao porto. Isso estava tudo previsto nesse projeto que estava sendo desenvolvido no âmbito do PPI, com o Ministério da Infraestrutura, e foi suspenso pelo atual governo.
Além do Porto de Santos, há dois casos que saíram da carteira do PPI que chamam muito a atenção. Um é a Ceitec, mais conhecida como “a empresa do chip do boi”, que estava em processo de liquidação, por só dar prejuízo, e o governo Lula resolveu “ressuscitar”. E o outro são os Correios, que registraram um prejuízo calculado em R$ 800 milhões só no primeiro trimestre de 2024. Como a sra. avalia os casos dos Correios e da Ceitec?
Os Correios têm uma especificidade, que é a necessidade de aprovar uma lei no Congresso para regulamentar a Constituição, para dar segurança jurídica para o investidor entrar nesse business. Como a Constituição fala que cabe à União manter o serviço postal, havia uma discussão jurídica relevante sobre como se daria a privatização. A gente trabalhou num projeto de lei que já havia sido aprovado na Câmara e faltava só a aprovação do Senado, que garantia a prestação do serviço a toda a população, em todas as regiões do País, com preços módicos e com qualidade.
O contrato de privatização dos Correios iria garantir que quem comprasse a empresa teria de continuar a prestar esses serviços, da forma melhor e com mais eficiência. Até o prazo de entrega, que hoje não tem regulação, seria regulado. Não tem ninguém olhando hoje se os Correios estão entregando com prazo justo. Não tem ninguém verificando se o preço cobrado é justo diante da qualidade de prestação do serviço e de entrega.
Com a privatização, o governo também não precisaria cobrir os prejuízos dos Correios e poderia usar o dinheiro em outras áreas...
No governo passado, esses processos de privatização não tinham o viés arrecadatório que a gente via na época do Fernando Henrique, aquela necessidade incrível de vender estatal para fazer caixa. Não. A nossa preocupação era outra. No caso dos Correios, a gente via que a empresa estava indo para o buraco, demandando cada vez mais recursos públicos, num governo com dificuldade orçamentária, e estava buscando uma saída para estancar essa sangria e garantir que os serviços continuassem a ser prestados à população. E qual é a proposta hoje do governo? É continuar a onerar o orçamento público? De onde virá esse recurso para bancar o prejuízo dos Correios? De onde vai sair o dinheiro? O governo vai criar mais um tributo para bancar isso? Estas coisas têm de ser ditas, têm de ser debatidas.
Agora, é importante que os Correios sigam existindo, para garantir o atendimento à população que mais precisa, que está mais distante dos grandes centros, para o cidadão lá no extremo norte do País poder receber um documento importante, uma vacina, um livro didático. Mas o serviço deve ser prestado pelo setor privado, sem onerar o setor público, com um contrato cheio de obrigações, que garanta a realização de entregas para todo mundo, em qualquer lugar do País. Porque o setor privado não tem essa obrigação. Ele entrega onde quer, aos preços que ele define. Está interessado nos grandes mercados. Não tem setor privado entregando cartas e encomendas em regiões distantes da Amazônia em que você só consegue chegar de barco.
Já andaram até ventilando por aí uma proposta de estender o monopólio dos Correios para a entrega de encomendas, para o Sedex, que hoje enfrenta a concorrência do setor privado.
É o que eles vão querer fazer agora. Em vez de dar uma solução de mercado e atender a população com qualidade, deixando o setor privado se desenvolver, você proíbe o setor privado de atuar. Onde é que isso deu certo?
E, no caso da Ceitec, como a sra. vê a decisão do governo de “ressuscitar” a empresa?
A Ceitec, que foi criada para tentar produzir chips, nunca conseguiu atingir uma receita minimamente relevante. Todo ano ela consumia valores enormes do Tesouro Nacional. É um caso de insucesso absoluto do início ao fim, uma empresa que produzia um bem que não era vendido para ninguém e que, por envolver alta tecnologia, ficava a cada dia mais defasado em relação aos produtos fabricados pelas grandes empresas globais do setor. Se você olhar o tamanho do chip da Ceitec, ele deve ser do tamanho de uma moeda. E o tamanho do chip hoje em dia, sem brincadeira, é menor que um grão de arroz.
A solução, então, era liquidar a empresa, até porque a gente não tinha quem quisesse comprá-la, já que ela era deficitária. O que a gente tinha era gente interessada em comprar seus ativos – a infraestrutura, o prédio que eles têm. Era uma proposta para estancar a sangria gerada pela empresa, porque o governo estava botando R$ 80 milhões todo ano num negócio que não vendia nada, não produzia nada. Só que a Ceitec foi retirada do PPI pelo atual governo. Não sei o que ela está produzindo hoje. Provavelmente, continua consumindo valores enormes do orçamento público. Qual o retorno disso para o cidadão? Não sei. Eu me impressiono muito com a falta, muitas vezes, de questionamento dos órgãos de controle, do Tribunal de Contas da União, em relação a certas decisões do governo. Eu acredito que é papel deles checar este tipo de decisão, para ver se o cidadão brasileiro está sendo onerado com isso.
Além de ter paralisado as privatizações, o governo Lula também tentou revogar o novo marco do saneamento, que tornou mais atraentes para o setor privado os investimentos no setor, e está tentando rever a privatização do Eletrobras. Como a sra. vê estas iniciativas do governo?
O que mais me entristece é que o grande prejudicado por isso não é a empresa, não é o investidor privado. O investidor privado hoje em dia é multinacional. Se o Brasil não quer investimento, ele vai para outro país. O cidadão que nunca recebeu água tratada em casa ou que nunca teve acesso a esgotamento sanitário é a última prioridade de quem está defendendo a prestação do serviço estatal no país. A falta de saneamento básico impacta o meio ambiente drasticamente, num governo que está o tempo todo repetindo que defende o meio ambiente, e tem uma série de repercussões sobre a saúde, sobre a mortalidade infantil e até sobre a educação.
Há estudos que mostram que tem escolas públicas no Brasil sem banheiro e que isso afeta as meninas, porque quando elas ficam menstruadas têm de passar uma semana fora da escola. É um negócio tão impactante que deveria ter se tornado prioridade há muito tempo. E qual sempre foi a receita dos governos de esquerda para o saneamento? Obra pública, orçamento público. Isso nos tirou do rumo. Nunca melhoraram efetivamente os números do saneamento no Brasil – e tudo bem, estava todo mundo conformado com isso. Quem escreveu a primeira MP (Medida Provisória) enviada para o Congresso que mudava a lei de saneamento foi o grupo de trabalho interministerial que eu coordenava na Casa Civil, com o ministro (Eliseu) Padilha, no governo Temer.
O que levou vocês a propor o novo marco do saneamento para estimular a atuação do setor privado?
A gente conversou com todo o setor privado, associações de empresas que atuam na área, o que você imaginar, para entender por que o saneamento no mundo tem uma participação privada relevante e no Brasil ela era tão pífia e por que a participação privada era relevante no setor de energia, no setor de transporte, mas no saneamento, não. E a conclusão foi que a legislação fechava as portas para a entrada do setor privado, porque facilitava a assinatura de contratos sem concorrência. Os prefeitos entregavam suas cidades para as empresa estaduais de saneamento com base em contratos que não tinham regulação tarifária, não tinham exigência de comprovação de investimentos. Era uma troca desequilibrada, porque muitas vezes o governador tinha ascendência sobre o prefeito, para dizer “assina aqui esse contrato com a minha estatal de saneamento”.
Qual foi a grande mudança realizada na legislação para atrair mais investimento privado ao setor de saneamento?
A nova lei traz diretrizes importantes, mas a chave dela, seu ponto nevrálgico, é que acabou esse negócio de assinar contrato sem concorrência. Tem de haver concorrência. Agora, toda vez que um prefeito for assinar um novo contrato de saneamento, ele tem de abrir a disputa para o mercado. Se a estatal quiser participar, ela pode, mas também vão participar outros prestadores de serviço. E o que a gente viu acontecer depois da mudança? Contratos bilionários sendo fechados, todos vencidos por investidores privados. Nenhuma estatal venceu um leilão na área de saneamento, porque elas não têm capacidade de entrega quando o contrato é claro em relação aos investimentos que têm de ser feitos e ao tipo da tarifa que pode ser cobrada.
O caso da privatização da Eletrobras, que o governo está tentando reverter, é parecido com o do saneamento, não?
Sim, e essa iniciativa do governo dá um susto tremendo no investidor. Os valores da capitalização da Eletrobras foram enormes. Se não me engano, foi a segunda maior transação em Bolsa da história do País, perto de R$ 35 bilhões. Houve uma busca enorme de ações da Eletrobras por parte dos investidores, não só daqui, mas do mundo todo. Só que aí mudou o governo e agora ele diz “não, isso aqui é meu, vou retomar, não gostei. Vou ao Supremo, vou à Justiça e vou tentar retomar, quero ter uma participação maior aqui”. Imagine como é que fica.
A capitalização da Eletrobras foi feita de tal maneira que houve uma pulverização do capital. Hoje, você não tem um investidor que seja responsável por decidir tudo. A Eletrobras se tornou uma corporation, que é o modelo mais indicado para a empresa. Agora, o governo não tem mais um poder relevante. Tem uma participação menor e não consegue mais indicar nomes para a diretoria, para o conselho de administração. A gente vê o esforço que o governo fez para tentar indicar pessoas relevantes do PT, que foram ministros de governos do partido no passado, para ocupar lugares em empresas que não são mais estatais, mas que eles julgam que ainda são, como no caso da Vale.
Qual a sua percepção sobre a tentativa do governo de indicar o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega para a presidência da Vale, que foi privatizada em 1997? Que sinal que isso passa para os investidores?
Eu vi uma entrevista do presidente Lula em que ele disse: “O que nós queremos é que as empresas brasileiras estejam de acordo com o pensamento do governo brasileiro”. Essa é a mentalidade do governo hoje. Não precisa ser estatal. Se está no Brasil, tem de fazer o que o governo quer. Isso foi uma fala do presidente da República. Olha que forte. Ela resume tudo. Então, se as empresas do Brasil têm de estar alinhadas com o governo, é natural que elas devam ter em seus quadros pessoas que contribuem para o governo neste momento ou que contribuíram no passado, por entender o modus operandi do governo e estar alinhadas com o governo. Eu trabalhei com investidores muitos anos e fico pensando o que quem está investindo milhões, bilhões no Brasil pensa ao ouvir um presidente dizer isso publicamente, em voz alta, se ele vai colocar mais ou menos dinheiro aqui. Não é por acaso que a gente vê hoje uma fuga de recursos do País, o câmbio se desvalorizando, a taxa de investimento caindo.
Uma última pergunta: considerando esse quadro “idílico” que a sra. traçou, onde tudo isso vai nos levar?
O Brasil vive ciclos de aprendizados. Eu acredito que a população tem ocupado um espaço cada vez maior de participação, de reclamação. E isso impacta a decisão de políticas públicas. Então, eu acredito que as pessoas têm de se envolver cada vez mais, entender melhor essa discussão orçamentária. Outro dia li uma analogia que eu achei perfeita para ilustrar este assunto. Ela fala sobre o tratamento dado às questões fiscais nas democracias jovens – e o Brasil é uma democracia jovem.
Nas democracias jovens, as pessoas são tratadas como crianças com cáries que precisam decidir se elas querem ir na loja de balinha ou se elas querem ir ao dentista. Este é o brasileiro hoje. Ele está ali com uma cárie no dente, vendo o governo falar “vou lhe dar mais balinha” e ele pede mais balinha. Do outro lado, há propostas que falam “eu vou consertar o seu dente”, “eu vou reduzir o seu açúcar”. Mas o cidadão brasileiro ainda está naquela fase da infância democrática em que prefere receber mais balinha. Essa infância democrática pode ser superada com o tempo, eu espero que seja, mas isso passa por um processo educacional. Enquanto o cidadão não entender que ele paga tudo o que o governo dá pra ele, direta ou indiretamente, é difícil acontecer esse amadurecimento. Hoje, o que a gente vê é muita criança querendo mais balinha.