Próximo presidente da Argentina percorrerá um caminho espinhoso e herdará economia distópica


Vencedor herdará economia minada por inflação galopante, recessão cada vez mais profunda, políticas fiscais e monetárias malogradas, entre outros problemas

Por Arturo C. Porzecanski
Atualização:

AMERICAS QUARTERLY - Dois candidatos, Sergio Massa e Javier Milei, disputam a presidência da Argentina. Enquanto o contencioso segundo turno deste domingo, 19, captura a atenção da maioria dos cidadãos, uma questão crucial paira sobre a votação: algum deles seria capaz de resolver a pior crise do país em mais de duas décadas? Ainda que não haja uma resposta fácil, um ajuste doloroso será inevitável.

O vencedor herdará uma economia distópica minada por uma inflação galopante, uma recessão cada vez mais profunda e políticas fiscais e monetárias malogradas. Para piorar, o banco central está quase sem reservas internacionais, enquanto investidores locais e no exterior estão fartos da história de um país sobrevalorizado demais no passado recente.

A fábula da esperança já não convence, e em um ambiente de negócios desafiador, o momento pede ação. E a Argentina deve agir rapidamente uma vez que a eleição for decidida.

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Para começar, o vencedor não terá maioria na legislatura — especialmente Milei. A coalizão peronista de Massa, União pela Pátria, deterá 34 dos 72 assentos do Senado; o partido libertário de Milei controlará 8. Os peronistas deterão 108 dos 257 assentos da Câmara dos Deputados; os libertários de Milei, 37. A história mostra que presidentes latino-americanos que não contam com forte apoio no Congresso tendem a ser malsucedidos — alguns nem conseguem terminar o mandato.

Complicando as coisas ainda mais, os legisladores mais influentes do partido de Massa pertencem ao grupo esquerdista La Cámpora, liderado por Cristina Fernández de Kirchner e seu filho, Máximo, um congressista. Isso provavelmente dificultará para o centrista Massa obter apoio do partido, quem dirá construir coalizões mais amplas, para aprovar as reformas econômicas significativas que as terríveis circunstâncias exigem.

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Se Milei for eleito presidente, terá de conquistar o apoio dos legisladores dos partidos que não passaram para o segundo turno.  Foto: Luis Robayo/AFP

Se Milei for eleito presidente, ele terá de conquistar o apoio dos legisladores dos partidos que não passaram para o segundo turno, principalmente o Juntos pela Mudança, de Patricia Bullrich. Isso dificultaria, impossibilitaria até, que ele aprovasse qualquer uma de suas reformas radicais, como fechar o Banco Central ou dolarizar a economia.

Dor macroeconômica

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A inflação provavelmente continuará num ritmo anual de três dígitos, como ocorre desde fevereiro. Em agosto e setembro, a inflação mensal anualizada acelerou para mais de 300%, de longe o aumento mais veloz em mais de três décadas. Em termos simples, a Argentina poderia descambar para a hiperinflação a qualquer momento — o que representa uma ameaça existencial para o próximo governo.

Por piores que sejam, as estatísticas da inflação não capturam as pressões econômicas subjacentes e potencialmente explosivas. Intervenções pesadas do governo têm segurado os preços dos alimentos e da energia, índices de benchmark e a taxa de câmbio oficial substancialmente abaixo de níveis de liquidação no mercado.

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A economia é distorcida por subsídios massivos para os consumidores em combustíveis, eletricidade, água e transporte público; impostos pesados e tetos periódicos sobre exportações de alimentos como soja e carne bovina; controles antigos sobre os preços nos supermercados; e acesso racionado a moedas estrangeiras sob uma miríade de taxas de câmbio.

Pode ser que logo seja preciso medidas corretivas impopulares, mas necessárias, que provavelmente farão a inflação aumentar ainda mais no curto prazo. Estima-se que os preços da energia teriam de ser dobrados da noite para o dia e ajustados segundo a inflação depois disso, para recuperarem os níveis pré-pandêmico.

Javier Milei e Sergio Massa.  Foto: Luis Robayo/POOL/AFP
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A atividade econômica medida pelo produto interno bruto real diminuirá estimados 3% este ano, e a renda per capita deverá cair até cerca de 15% abaixo do nível em 2011, no recorde anterior. O resultado: mais de 40% da população vivendo abaixo da linha da pobreza. Esse índice era menos de 7% mais de uma década atrás. Pelo menos metade da população depende de benefícios de suplementos de renda financiados pelo governo e programas de empregos, e hoje estima-se que 6 em cada 10 crianças argentinas com menos de 18 anos vivam em lares classificados como pobres. Sem esses programas de bem-estar social, a condição de pobreza seria ainda pior.

Ainda que o índice de desemprego tenha permanecido relativamente baixo e estável, em cerca de 7%, o mercado de trabalho tem sofrido ao longo da década recente. Vagas de trabalho ocorrem principalmente em empresas pequenas e improdutivas, que operam “paralelamente”; portanto, não oferecem benefícios trabalhistas nem fazem contribuições laborais para pensões.

Estima-se que, desde o fim de 2016, três entre quatro vagas de emprego ocupadas colocaram candidatos em posições principalmente de mal remuneradas na economia amplamente clandestina da Argentina. Sem o crescimento de arranjos empregatícios informais, o desemprego e a pobreza seriam muito maiores.

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Um banco central enfraquecido

A crescente e cada vez mais disruptiva inflação argentina foi alimentada por déficits fiscais financiados principalmente por empréstimos do Banco Central da República Argentina (BCRA), dada a ausência de alternativas melhores.

As raízes fiscais da inflação alta foram fincadas no início de 2020, quando o então recém-empossado governo do presidente Alberto Fernández aumentou o gasto público e administrou um déficit orçamentário substancial — equivalente a quase 9% do PIB — para proteger lares vulneráveis e empresas dos efeitos da pandemia de covid-19.

Infelizmente, essa grandeza fiscal ocorreu enquanto o governo dava calotes em suas obrigações para investidores domésticos e internacionais, o que significou que as autoridades tiveram pouca escolha a não ser financiar o déficit desproporcional principalmente com empréstimos do BCRA.

Ainda que os déficits fiscais desde então tenham circulado em torno de mais modestos 4% do PIB anualmente, de 2021 a 2023 o fracasso do governo em reparar relações com investidores institucionais e bancos e renovar a confiança cimentou uma dependência prejudicial em relação ao contínuo financiamento inflacionário do BCRA.

O Banco Central tentou com afinco minimizar seu impacto prejudicial vendendo letras (LELIQs) e portando absorvendo muitos pesos indesejados, recém-impressos, que o governo tinha gastado. Mas após quatro anos financiando o governo por meio de empréstimos livres de juros e colocando nas mãos do sistema bancário uma quantidade colossal de LELIQs que pagam juros estratosféricos, o BCRA certamente engendrou preocupações sobre levar a si mesmo à insolvência e/ou que poderia dar calote nas LELIQs — ocasionando uma crise financeira sistêmica.

Um problema relacionado e mais premente é que o BCRA não está apenas sobrecarregado em termos das obrigações de LELIQs, está também dolorosamente sem reservas de ativos — principalmente dólares americanos. Suas reservas em moeda estrangeira caíram de US$ 41 bilhões no início do ano para cerca de US$ 25 bilhões. Uma vez que várias obrigações a curto prazo do BCRA forem liquidadas, a maioria em dinheiro devido ao Banco Popular da China, as reservas argentinas cairão para quase zero.

Mas aqui, também, as escassas reservas em moeda estrangeira no cofre do BCRA não contam a história inteira. As autoridades restringiram significativamente o acesso a dólares dos importadores fazendo com que eles dependam de empréstimos a curto prazo de forneceres e subsidiárias no exterior. Como resultado, em vez das reservas em moeda estrangeira do BCRA terem caído mais US$ 16 bilhões entre o início de 2022 e meados de 2023, o endividamento a curto prazo dos importadores argentinos foi inflado por esse montante — com perspectivas de pagamentos em dúvida.

Restrições impostas sobre a repatriação de lucros e dividendos por empresas estrangeiras que operam na Argentina têm funcionado da mesma maneira: pouparam ao BCRA mais de US$ 10 bilhões em perdas de reservas em moeda estrangeira — mas sob o custo de manter confinados os ganhos dos investidores estrangeiros.

Mesmo que milagres aconteçam e independentemente de Massa ou Milei triunfar nas urnas, é improvável que qualquer dos candidatos seja capaz de cumprir suas promessas de campanha caso eleito. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

AMERICAS QUARTERLY - Dois candidatos, Sergio Massa e Javier Milei, disputam a presidência da Argentina. Enquanto o contencioso segundo turno deste domingo, 19, captura a atenção da maioria dos cidadãos, uma questão crucial paira sobre a votação: algum deles seria capaz de resolver a pior crise do país em mais de duas décadas? Ainda que não haja uma resposta fácil, um ajuste doloroso será inevitável.

O vencedor herdará uma economia distópica minada por uma inflação galopante, uma recessão cada vez mais profunda e políticas fiscais e monetárias malogradas. Para piorar, o banco central está quase sem reservas internacionais, enquanto investidores locais e no exterior estão fartos da história de um país sobrevalorizado demais no passado recente.

A fábula da esperança já não convence, e em um ambiente de negócios desafiador, o momento pede ação. E a Argentina deve agir rapidamente uma vez que a eleição for decidida.

Para começar, o vencedor não terá maioria na legislatura — especialmente Milei. A coalizão peronista de Massa, União pela Pátria, deterá 34 dos 72 assentos do Senado; o partido libertário de Milei controlará 8. Os peronistas deterão 108 dos 257 assentos da Câmara dos Deputados; os libertários de Milei, 37. A história mostra que presidentes latino-americanos que não contam com forte apoio no Congresso tendem a ser malsucedidos — alguns nem conseguem terminar o mandato.

Complicando as coisas ainda mais, os legisladores mais influentes do partido de Massa pertencem ao grupo esquerdista La Cámpora, liderado por Cristina Fernández de Kirchner e seu filho, Máximo, um congressista. Isso provavelmente dificultará para o centrista Massa obter apoio do partido, quem dirá construir coalizões mais amplas, para aprovar as reformas econômicas significativas que as terríveis circunstâncias exigem.

Se Milei for eleito presidente, terá de conquistar o apoio dos legisladores dos partidos que não passaram para o segundo turno.  Foto: Luis Robayo/AFP

Se Milei for eleito presidente, ele terá de conquistar o apoio dos legisladores dos partidos que não passaram para o segundo turno, principalmente o Juntos pela Mudança, de Patricia Bullrich. Isso dificultaria, impossibilitaria até, que ele aprovasse qualquer uma de suas reformas radicais, como fechar o Banco Central ou dolarizar a economia.

Dor macroeconômica

A inflação provavelmente continuará num ritmo anual de três dígitos, como ocorre desde fevereiro. Em agosto e setembro, a inflação mensal anualizada acelerou para mais de 300%, de longe o aumento mais veloz em mais de três décadas. Em termos simples, a Argentina poderia descambar para a hiperinflação a qualquer momento — o que representa uma ameaça existencial para o próximo governo.

Por piores que sejam, as estatísticas da inflação não capturam as pressões econômicas subjacentes e potencialmente explosivas. Intervenções pesadas do governo têm segurado os preços dos alimentos e da energia, índices de benchmark e a taxa de câmbio oficial substancialmente abaixo de níveis de liquidação no mercado.

A economia é distorcida por subsídios massivos para os consumidores em combustíveis, eletricidade, água e transporte público; impostos pesados e tetos periódicos sobre exportações de alimentos como soja e carne bovina; controles antigos sobre os preços nos supermercados; e acesso racionado a moedas estrangeiras sob uma miríade de taxas de câmbio.

Pode ser que logo seja preciso medidas corretivas impopulares, mas necessárias, que provavelmente farão a inflação aumentar ainda mais no curto prazo. Estima-se que os preços da energia teriam de ser dobrados da noite para o dia e ajustados segundo a inflação depois disso, para recuperarem os níveis pré-pandêmico.

Javier Milei e Sergio Massa.  Foto: Luis Robayo/POOL/AFP

A atividade econômica medida pelo produto interno bruto real diminuirá estimados 3% este ano, e a renda per capita deverá cair até cerca de 15% abaixo do nível em 2011, no recorde anterior. O resultado: mais de 40% da população vivendo abaixo da linha da pobreza. Esse índice era menos de 7% mais de uma década atrás. Pelo menos metade da população depende de benefícios de suplementos de renda financiados pelo governo e programas de empregos, e hoje estima-se que 6 em cada 10 crianças argentinas com menos de 18 anos vivam em lares classificados como pobres. Sem esses programas de bem-estar social, a condição de pobreza seria ainda pior.

Ainda que o índice de desemprego tenha permanecido relativamente baixo e estável, em cerca de 7%, o mercado de trabalho tem sofrido ao longo da década recente. Vagas de trabalho ocorrem principalmente em empresas pequenas e improdutivas, que operam “paralelamente”; portanto, não oferecem benefícios trabalhistas nem fazem contribuições laborais para pensões.

Estima-se que, desde o fim de 2016, três entre quatro vagas de emprego ocupadas colocaram candidatos em posições principalmente de mal remuneradas na economia amplamente clandestina da Argentina. Sem o crescimento de arranjos empregatícios informais, o desemprego e a pobreza seriam muito maiores.

Um banco central enfraquecido

A crescente e cada vez mais disruptiva inflação argentina foi alimentada por déficits fiscais financiados principalmente por empréstimos do Banco Central da República Argentina (BCRA), dada a ausência de alternativas melhores.

As raízes fiscais da inflação alta foram fincadas no início de 2020, quando o então recém-empossado governo do presidente Alberto Fernández aumentou o gasto público e administrou um déficit orçamentário substancial — equivalente a quase 9% do PIB — para proteger lares vulneráveis e empresas dos efeitos da pandemia de covid-19.

Infelizmente, essa grandeza fiscal ocorreu enquanto o governo dava calotes em suas obrigações para investidores domésticos e internacionais, o que significou que as autoridades tiveram pouca escolha a não ser financiar o déficit desproporcional principalmente com empréstimos do BCRA.

Ainda que os déficits fiscais desde então tenham circulado em torno de mais modestos 4% do PIB anualmente, de 2021 a 2023 o fracasso do governo em reparar relações com investidores institucionais e bancos e renovar a confiança cimentou uma dependência prejudicial em relação ao contínuo financiamento inflacionário do BCRA.

O Banco Central tentou com afinco minimizar seu impacto prejudicial vendendo letras (LELIQs) e portando absorvendo muitos pesos indesejados, recém-impressos, que o governo tinha gastado. Mas após quatro anos financiando o governo por meio de empréstimos livres de juros e colocando nas mãos do sistema bancário uma quantidade colossal de LELIQs que pagam juros estratosféricos, o BCRA certamente engendrou preocupações sobre levar a si mesmo à insolvência e/ou que poderia dar calote nas LELIQs — ocasionando uma crise financeira sistêmica.

Um problema relacionado e mais premente é que o BCRA não está apenas sobrecarregado em termos das obrigações de LELIQs, está também dolorosamente sem reservas de ativos — principalmente dólares americanos. Suas reservas em moeda estrangeira caíram de US$ 41 bilhões no início do ano para cerca de US$ 25 bilhões. Uma vez que várias obrigações a curto prazo do BCRA forem liquidadas, a maioria em dinheiro devido ao Banco Popular da China, as reservas argentinas cairão para quase zero.

Mas aqui, também, as escassas reservas em moeda estrangeira no cofre do BCRA não contam a história inteira. As autoridades restringiram significativamente o acesso a dólares dos importadores fazendo com que eles dependam de empréstimos a curto prazo de forneceres e subsidiárias no exterior. Como resultado, em vez das reservas em moeda estrangeira do BCRA terem caído mais US$ 16 bilhões entre o início de 2022 e meados de 2023, o endividamento a curto prazo dos importadores argentinos foi inflado por esse montante — com perspectivas de pagamentos em dúvida.

Restrições impostas sobre a repatriação de lucros e dividendos por empresas estrangeiras que operam na Argentina têm funcionado da mesma maneira: pouparam ao BCRA mais de US$ 10 bilhões em perdas de reservas em moeda estrangeira — mas sob o custo de manter confinados os ganhos dos investidores estrangeiros.

Mesmo que milagres aconteçam e independentemente de Massa ou Milei triunfar nas urnas, é improvável que qualquer dos candidatos seja capaz de cumprir suas promessas de campanha caso eleito. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

AMERICAS QUARTERLY - Dois candidatos, Sergio Massa e Javier Milei, disputam a presidência da Argentina. Enquanto o contencioso segundo turno deste domingo, 19, captura a atenção da maioria dos cidadãos, uma questão crucial paira sobre a votação: algum deles seria capaz de resolver a pior crise do país em mais de duas décadas? Ainda que não haja uma resposta fácil, um ajuste doloroso será inevitável.

O vencedor herdará uma economia distópica minada por uma inflação galopante, uma recessão cada vez mais profunda e políticas fiscais e monetárias malogradas. Para piorar, o banco central está quase sem reservas internacionais, enquanto investidores locais e no exterior estão fartos da história de um país sobrevalorizado demais no passado recente.

A fábula da esperança já não convence, e em um ambiente de negócios desafiador, o momento pede ação. E a Argentina deve agir rapidamente uma vez que a eleição for decidida.

Para começar, o vencedor não terá maioria na legislatura — especialmente Milei. A coalizão peronista de Massa, União pela Pátria, deterá 34 dos 72 assentos do Senado; o partido libertário de Milei controlará 8. Os peronistas deterão 108 dos 257 assentos da Câmara dos Deputados; os libertários de Milei, 37. A história mostra que presidentes latino-americanos que não contam com forte apoio no Congresso tendem a ser malsucedidos — alguns nem conseguem terminar o mandato.

Complicando as coisas ainda mais, os legisladores mais influentes do partido de Massa pertencem ao grupo esquerdista La Cámpora, liderado por Cristina Fernández de Kirchner e seu filho, Máximo, um congressista. Isso provavelmente dificultará para o centrista Massa obter apoio do partido, quem dirá construir coalizões mais amplas, para aprovar as reformas econômicas significativas que as terríveis circunstâncias exigem.

Se Milei for eleito presidente, terá de conquistar o apoio dos legisladores dos partidos que não passaram para o segundo turno.  Foto: Luis Robayo/AFP

Se Milei for eleito presidente, ele terá de conquistar o apoio dos legisladores dos partidos que não passaram para o segundo turno, principalmente o Juntos pela Mudança, de Patricia Bullrich. Isso dificultaria, impossibilitaria até, que ele aprovasse qualquer uma de suas reformas radicais, como fechar o Banco Central ou dolarizar a economia.

Dor macroeconômica

A inflação provavelmente continuará num ritmo anual de três dígitos, como ocorre desde fevereiro. Em agosto e setembro, a inflação mensal anualizada acelerou para mais de 300%, de longe o aumento mais veloz em mais de três décadas. Em termos simples, a Argentina poderia descambar para a hiperinflação a qualquer momento — o que representa uma ameaça existencial para o próximo governo.

Por piores que sejam, as estatísticas da inflação não capturam as pressões econômicas subjacentes e potencialmente explosivas. Intervenções pesadas do governo têm segurado os preços dos alimentos e da energia, índices de benchmark e a taxa de câmbio oficial substancialmente abaixo de níveis de liquidação no mercado.

A economia é distorcida por subsídios massivos para os consumidores em combustíveis, eletricidade, água e transporte público; impostos pesados e tetos periódicos sobre exportações de alimentos como soja e carne bovina; controles antigos sobre os preços nos supermercados; e acesso racionado a moedas estrangeiras sob uma miríade de taxas de câmbio.

Pode ser que logo seja preciso medidas corretivas impopulares, mas necessárias, que provavelmente farão a inflação aumentar ainda mais no curto prazo. Estima-se que os preços da energia teriam de ser dobrados da noite para o dia e ajustados segundo a inflação depois disso, para recuperarem os níveis pré-pandêmico.

Javier Milei e Sergio Massa.  Foto: Luis Robayo/POOL/AFP

A atividade econômica medida pelo produto interno bruto real diminuirá estimados 3% este ano, e a renda per capita deverá cair até cerca de 15% abaixo do nível em 2011, no recorde anterior. O resultado: mais de 40% da população vivendo abaixo da linha da pobreza. Esse índice era menos de 7% mais de uma década atrás. Pelo menos metade da população depende de benefícios de suplementos de renda financiados pelo governo e programas de empregos, e hoje estima-se que 6 em cada 10 crianças argentinas com menos de 18 anos vivam em lares classificados como pobres. Sem esses programas de bem-estar social, a condição de pobreza seria ainda pior.

Ainda que o índice de desemprego tenha permanecido relativamente baixo e estável, em cerca de 7%, o mercado de trabalho tem sofrido ao longo da década recente. Vagas de trabalho ocorrem principalmente em empresas pequenas e improdutivas, que operam “paralelamente”; portanto, não oferecem benefícios trabalhistas nem fazem contribuições laborais para pensões.

Estima-se que, desde o fim de 2016, três entre quatro vagas de emprego ocupadas colocaram candidatos em posições principalmente de mal remuneradas na economia amplamente clandestina da Argentina. Sem o crescimento de arranjos empregatícios informais, o desemprego e a pobreza seriam muito maiores.

Um banco central enfraquecido

A crescente e cada vez mais disruptiva inflação argentina foi alimentada por déficits fiscais financiados principalmente por empréstimos do Banco Central da República Argentina (BCRA), dada a ausência de alternativas melhores.

As raízes fiscais da inflação alta foram fincadas no início de 2020, quando o então recém-empossado governo do presidente Alberto Fernández aumentou o gasto público e administrou um déficit orçamentário substancial — equivalente a quase 9% do PIB — para proteger lares vulneráveis e empresas dos efeitos da pandemia de covid-19.

Infelizmente, essa grandeza fiscal ocorreu enquanto o governo dava calotes em suas obrigações para investidores domésticos e internacionais, o que significou que as autoridades tiveram pouca escolha a não ser financiar o déficit desproporcional principalmente com empréstimos do BCRA.

Ainda que os déficits fiscais desde então tenham circulado em torno de mais modestos 4% do PIB anualmente, de 2021 a 2023 o fracasso do governo em reparar relações com investidores institucionais e bancos e renovar a confiança cimentou uma dependência prejudicial em relação ao contínuo financiamento inflacionário do BCRA.

O Banco Central tentou com afinco minimizar seu impacto prejudicial vendendo letras (LELIQs) e portando absorvendo muitos pesos indesejados, recém-impressos, que o governo tinha gastado. Mas após quatro anos financiando o governo por meio de empréstimos livres de juros e colocando nas mãos do sistema bancário uma quantidade colossal de LELIQs que pagam juros estratosféricos, o BCRA certamente engendrou preocupações sobre levar a si mesmo à insolvência e/ou que poderia dar calote nas LELIQs — ocasionando uma crise financeira sistêmica.

Um problema relacionado e mais premente é que o BCRA não está apenas sobrecarregado em termos das obrigações de LELIQs, está também dolorosamente sem reservas de ativos — principalmente dólares americanos. Suas reservas em moeda estrangeira caíram de US$ 41 bilhões no início do ano para cerca de US$ 25 bilhões. Uma vez que várias obrigações a curto prazo do BCRA forem liquidadas, a maioria em dinheiro devido ao Banco Popular da China, as reservas argentinas cairão para quase zero.

Mas aqui, também, as escassas reservas em moeda estrangeira no cofre do BCRA não contam a história inteira. As autoridades restringiram significativamente o acesso a dólares dos importadores fazendo com que eles dependam de empréstimos a curto prazo de forneceres e subsidiárias no exterior. Como resultado, em vez das reservas em moeda estrangeira do BCRA terem caído mais US$ 16 bilhões entre o início de 2022 e meados de 2023, o endividamento a curto prazo dos importadores argentinos foi inflado por esse montante — com perspectivas de pagamentos em dúvida.

Restrições impostas sobre a repatriação de lucros e dividendos por empresas estrangeiras que operam na Argentina têm funcionado da mesma maneira: pouparam ao BCRA mais de US$ 10 bilhões em perdas de reservas em moeda estrangeira — mas sob o custo de manter confinados os ganhos dos investidores estrangeiros.

Mesmo que milagres aconteçam e independentemente de Massa ou Milei triunfar nas urnas, é improvável que qualquer dos candidatos seja capaz de cumprir suas promessas de campanha caso eleito. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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