BRASÍLIA - A cesta básica é uma espécie de microcosmo do sistema tributário brasileiro: benefícios que se multiplicaram ao longo das décadas e que variam de acordo com o Estado e as pressões exercidas pelos segmentos produtivos. Simplificar esse emaranhado de regras, como propõe a reforma tributária, não será tarefa fácil — e as negociações já começaram.
Com a chegada da proposta no Senado, começa a corrida para se definir quais produtos vão integrar a nova cesta básica nacional, mais enxuta, que contará com alíquota zero do novo IVA — o Imposto sobre Valor Agregado, que vai substituir os tributos atuais. Hoje, a cesta básica é desonerada dos impostos federais, mas paga impostos estaduais. Cada Estado determina as suas alíquotas, isenções e sua lista de produtos — que chega a centenas e contempla diversos itens inusitados.
Em Minas Gerais, o pão de queijo faz parte da lista de itens básicos e, por isso, conta com benefícios ligados ao ICMS, o principal tributo arrecadatório dos governadores. Ao cruzar a fronteira para São Paulo, o salgado é eliminado da cesta, que agora conta com anticoncepcionais, anti-inflamatórios e analgésicos. Chegando ao Rio de Janeiro, encontramos outra gama de produtos selecionados, como protetor solar (mas não qualquer um: apenas com fator de proteção igual ou superior a 30) e repelente.
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Subindo no mapa, temos o Ceará, o Estado com a maior lista de itens na cesta básica. Inclui desde telha, areia e tijolo, passando por caderno e apontador, e contemplando ainda bicicleta e capacete para motos. Mais ao sul, no Paraná, a erva-mate do chimarrão é desonerada, assim como mortadela e peixes como o salmão.
“Começou como uma cesta básica de subsistência do trabalhador, mas, com o passar do tempo, a lista foi se ampliando e a proposta inicial se perdeu”, afirma Leonel Pessôa, professor da FGV Direito SP. Juntamente com outros pesquisadores, Pessôa fez um amplo estudo sobre a tributação do consumo e as desonerações da cesta básica.
Para ele, as alíquotas diferenciadas são problemáticas por três motivos: favorecem tanto os mais pobres como os mais ricos, que não precisam do benefício; abrem espaço para grupos de pressão; e não garantem repasse integral ao consumidor final.
Levantamento feito pelos pesquisadores — analisando benefícios concedidos a 79 alimentos, desde o início do Plano Real até 2021 — aponta que cada ponto porcentual de redução no ICMS gera, em média, 0,13 ponto de variação nos preços. E o repasse demora até quatro meses para acontecer. “Parte da desoneração acaba sendo apropriada, na forma de lucro, pelo comerciante”, afirma Pessôa.
Para ele, o sistema de cashback (devolução do imposto para a população de mais baixa renda) teria sido a melhor alternativa, por desonerar diretamente o consumidor e não o produto. O debate, no entanto, encontrou resistências políticas dentro da Câmara dos Deputados. Assim, o detalhamento sobre o mecanismo ficou pendente para lei complementar.
Cesta básica nacional
A Associação Brasileira de Supermercados (Abras) divulgou uma lista com 37 itens que deve servir de base para a discussão da cesta básica nacional. Além de alimentos, inclui seis produtos de higiene pessoal, como sabonete e creme dental (os quais, pelo texto atual, contam apenas com alíquota reduzida, sem isenção total) e três itens de limpeza — detergente, sabão em pó e água sanitária — que não tiveram benefícios previstos na proposta.
“Vamos levar esse debate aos senadores”, diz João Galassi, presidente da Abras. A associação também já iniciou o diálogo com os Estados, para mapear itens que tenham ficado de fora dessa seleção inicial e para os quais haja uma “necessidade clara” de inclusão. Segundo Galassi, questões regionais também serão consideradas. A ideia é ter uma proposta mais definida até o início de agosto, quando o Senado retomará os trabalhos após o recesso parlamentar.
A Abras havia feito críticas à primeira versão do parecer do relator da reforma na Câmara, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que fixou que a cesta básica teria alíquota reduzida à metade da alíquota padrão. Um estudo da associação, porém, apontou que a medida poderia resultar no aumento do preço dos alimentos — o que foi rebatido pelo Ministério da Fazenda, que afirmou que o cálculo estava incorreto. Ainda assim, o estudo bastou para inflamar as redes com críticas à reforma, inclusive do ex-presidente, Jair Bolsonaro.
Por isso, o relator mudou o seu parecer, como já havia antecipado ao Estadão, e previu a criação de uma cesta básica nacional com alíquota zero.
Relator quer lista ‘justa’
Na entrevista, Aguinaldo Ribeiro afirmou que, hoje, “não há controle” sobre a cesta básica dos Estados e que o desafio é definir uma lista que seja justa, sem ser restritiva. “Eu não gosto daquela ideia de você dizer assim: ‘Olha, não pode ter salmão’. E se o cidadão quiser o salmão?”
Galassi, da Abras, reforça a avaliação: “Então o mais humilde nunca vai poder comer picanha? Só pode dar isenção para carne de segunda?” Para ele, não se deve diferenciar classe social na tributação sobre o consumo, e sim sobre a renda, que será a segunda etapa da reforma. “A isenção da cesta básica é uma política pública. Garante uma saúde melhor para a população e reduz o uso do serviço de saúde”, afirma o porta-voz dos supermercados.
Aguinaldo Ribeiro reconheceu, porém, que há incongruências que deverão ser revistas. “Tem cesta básica de Estado que tem capacete de moto. Estamos alinhando para ter um equilíbrio”, disse.