O advogado Almir Pazzianotto Pinto, de 86 anos, é uma das vozes mais respeitadas do País quando o que está em pauta são as relações trabalhistas. Ex-presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho), ex-ministro do Trabalho (1985-1988), ex-secretário do Trabalho do Estado de São Paulo (1983-1985) e advogado do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema nos anos 1970, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou os holofotes como líder sindical, Pazzianotto esteve no centro dos acontecimentos após a redemocratização e acompanhou de perto as profundas mudanças ocorridas no mundo dos negócios e no emprego nas últimas décadas.
Nesta entrevista ao Estadão, ele afirma que o STF (Supremo Tribunal Federal) “terá de respeitar” o direito do trabalhador de não pagar a chamada “contribuição assistencial”, ao julgar o pleito dos sindicatos para que o pagamento da taxa seja obrigatório até para quem não é sócio das entidades. “O trabalhador tem o direito de se opor a um desconto indevido em seu salário”, diz.
Pazzianotto fala também sobre a “resistência” da Justiça do Trabalho em aceitar as mudanças implementadas pela reforma trabalhista, aprovada pelo Congresso em 2017, critica a regulamentação dos aplicativos defendida pelo ministro do Trabalho, Luiz Marinho, e propõe mudanças na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), que está completando 80 anos em 2023, para implementar o pluralismo sindical.
Na sexta-feira, 1º de setembro, o STF formou maioria para autorizar a cobrança da contribuição sindical mesmo para quem não é associado. Confira a seguir a entrevista de Pazzianotto, publicada em 20 de junho:
O STF está prestes a considerar como constitucional a cobrança da chamada “contribuição assistencial” de trabalhadores que não são sócios das entidades, revendo posicionamento anterior em relação à questão. O placar já está cinco a zero, faltando apenas um voto, para a cobrança ser ressuscitada. Como o sr. vê essa guinada do STF em relação à taxa assistencial?
Hoje, a cobrança da taxa assistencial sofre as restrições de uma súmula do TST e de uma súmula do STF. Elas não proíbem a cobrança, mas a limitam aos associados dos sindicatos e asseguram o direito de oposição do trabalhador. Desde o Precedente Normativo nº 119 do TST, de 2014, o sindicato só pode cobrar a taxa assistencial de seus filiados. Agora o Supremo está reavaliando a questão, mas vai “chover no molhado”, porque vai dizer que o sindicato pode cobrar a taxa assistencial. Sempre pôde. A discussão é se o sindicato pode cobrar a taxa assistencial de não associado e se o trabalhador tem o direito de se opor à cobrança. Tem gente que não é associada e não quer contribuir. Então, o Supremo vai ter de respeitar o direito de o trabalhador se opor à cobrança. O trabalhador tem o direito de se opor a um desconto indevido em seu salário.
A que o sr. atribui a reviravolta na posição do Supremo nesta questão?
Acredito que o Supremo não entende bem o Direito do Trabalho, não conhece o histórico. Ele está olhando se o sindicato sobrevive ou não sem a taxa assistencial. Está examinando a questão pelo ângulo da sobrevivência. A meu ver o Supremo não entrou na seguinte consideração: sindicato é pessoa jurídica de direito privado? É. Pode impor uma mensalidade ao sócio? Pode. Pode limitar os benefícios assistenciais aos sócios? Pode. Agora, ele pode limitar aos sócios uma norma que, pela sua própria natureza, é de caráter geral? Não. Ele não pode dizer “olha a convenção coletiva só vale para associado”, porque o sindicato não está representando só os sócios, mas toda a categoria – e da categoria participa quem é sócio e quem não é. São duas coisas diferentes. O trabalhador pode escolher entre ser ou não associado ao sindicato, mas não entre ser ou não membro da categoria. Como integrante de uma categoria específica não por opção própria, o trabalhador é alcançado pelos acordos, pelas convenções coletivas e pelas sentenças normativas, independentemente de ser sócio ou não do sindicato. Ele não tem como não ser membro da categoria naquela base territorial. Só existe um sindicato por categoria em cada base territorial, desde 1939. No Brasil, você pode optar por partido político, por igreja, por clube, mas na hora de optar pelo sindicato, que é vital, não tem escolha.
Muitos analistas têm interpretado a obrigatoriedade da cobrança da taxa assistencial como a volta do imposto sindical, que foi extinto pela reforma trabalhista de 2017. Como o sr. analisa isso?
O que acabou com a reforma trabalhista foi o imposto sindical, que estabelecia o desconto compulsório de um dia de trabalho do salário do trabalhador para custear o sindicato, independentemente de ele ser ou não sócio da entidade, e não a taxa assistencial, cujo valor é deliberado pela assembleia de cada categoria. Para resgatar o imposto sindical, o Supremo teria de legislar – e nem pode fazer isso. O imposto sindical extinto pela reforma foi criado em 1940 por Getúlio Vargas. A taxa assistencial foi criada em dissídios coletivos na década de 1970 por aprovação em assembleia. O sindicato dizia que o dinheiro do imposto sindical era pouco para realizar atividades de caráter assistencial – assistência médica, dentária e jurídica – e para construir colônia de férias e ter sede própria. Daí é que veio a criação da taxa assistencial. Só que passaram a estipular importâncias muito elevadas e isso acabou sendo questionado na Justiça do Trabalho. Quando essas reivindicações chegaram ao TST, o tribunal disse primeiro que a assembleia não era representativa para tomar a decisão. Depois, que não houve negociação sobre o valor cobrado e por fim que a taxa era exagerada. O TST tomou, então, a seguinte decisão, posteriormente referendada pelo Supremo: só paga a taxa assistencial o sócio, porque quem não é sócio não pode ser abrangido por uma deliberação interna da entidade.
Recentemente, o STF decidiu que a demissão sem justa causa não precisa de justificativa do empregador, em oposição ao que diz a Convenção 158 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). O que o sr. pensa sobre essa decisão do Supremo?
Eu acredito que todos ali pegaram o caminho errado, tanto quem apoiou a ratificação da Convenção da OIT como quem depois a denunciou, questionando sua inconstitucionalidade, e o Supremo entrou nesse barco. O que existe, na verdade, é que essa Convenção, que prevê a submissão da demissão a um órgão arbitral neutro, não pode se aplicar ao Brasil, porque o País tem um sistema próprio e constitucional regulamentando o desligamento do empregado. O que as Constituições anteriores não tinham a atual Constituição tem. O que ela diz? “A relação de emprego é protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa nos termos da lei complementar, que preverá indenização compensatória, entre outros direitos”. Só que, na dificuldade de se produzir uma lei complementar, que enfrentaria problemas políticos sérios para ser aprovada no Congresso, eles meteram um remendo nas disposições constitucionais transitórias. Remeteram a questão para a lei 5.107, relacionada ao FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço), que foi reformada e passou a prever uma multa de 40% sobre o saldo acumulado na conta do trabalhador, em vez dos 10% previstos originalmente. Então, qual a compensação que o trabalhador deve receber pela despedida sem justa causa? Os 40% do saldo do FGTS. A Constituição e a lei não condicionam em momento algum a despedida sem justa causa a uma autorização de um juiz. A Constituição diz claramente que a indenização compensatória para a despedida arbitrária ou sem justa causa é o pagamento dessa multa.
Mudando de assunto, como o sr. avalia a reforma trabalhista, que completou cinco anos em 2022?
A reforma trabalhista trouxe contribuições muito positivas e tem também coisas que não surtiram efeito. Um dos aspectos positivos da reforma trabalhista é que ela nos ensinou como reformar a CLT. Em vez de a gente propor uma nova CLT, um grande projeto inviável, o caminho é realizar as mudanças por meio de reformas de pontos específicos da legislação. Agora, as mudanças precisam ser aceitas pelo Poder Judiciário. Em muitos casos, a Justiça do Trabalho ainda julga com base no que diz a CLT, porque a reforma continua enfrentando muita resistência, em virtude do viés ideológico que marca as decisões dos tribunais.
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O que leva a Justiça do Trabalho a privilegiar a CLT e desconsiderar a reforma trabalhista, que foi aprovada pelo Congresso?
Imagina-se que a CLT é o instrumento ideal para proteção ao hipossuficiente, que o empregado é uma vítima indefesa do regime capitalista perverso, espoliador, e de um patrão desumano. Eu sempre digo que o trabalhador pode escolher mulher para casar, pode se divorciar, mas, quando o que está em jogo são as relações do trabalho, ele é tratado como relativamente incapaz, um vulnerável. Se o Brasil fosse um satélite do planeta Terra, isolado, ele poderia ter sistemas próprios. Mas, como é parte do planeta Terra, precisa se adaptar ao resto do mundo – e não pode se adaptar ao que há de mais atrasado. Tem que procurar se adaptar ao que há de mais avançado. Agora, recentemente um grupo de brasileiros foi à Espanha para aprender Direito do Trabalho. Não sei de onde vem essa coisa de que a Espanha é um país modelo em matéria de Direito do Trabalho, se ela não é esse paraíso que se imagina. A Espanha tem divisões internas gravíssimas. Você pode olhar, estudar, mas não pode copiar. Tem que entender a realidade brasileira.
Em sua opinião, até que ponto a reforma trabalhista contribuiu para modernizar a legislação e nos colocar na trilha do novo mundo do trabalho?
O objetivo da reforma foi esse. Não sei se o (ex-presidente Michel) Temer tinha consciência disso, porque a reforma dele era menorzinha do que a do (então deputado federal e hoje senador) Rogério Marinho, relator da proposta na Câmara, que acabou aprovada pelos parlamentares. Quando a reforma foi lançada, eu fui lá na Câmara falar sobre o assunto e critiquei muito a reforma. Depois, eu revi meu ponto de vista. Achei que ela tinha e tem mais aspectos positivos do que negativos, principalmente ao reduzir a insegurança jurídica na área trabalhista. Hoje, por exemplo, as empresas de um mesmo grupo econômico nem sempre podem ser responsabilizadas por pendências relacionadas a outra companhia do conglomerado, mesmo que tenha os mesmos sócios. É preciso ter um vínculo de dependência de uma em relação a outra, ter interesses comuns. Isso melhorou muito com a reforma. Agora, frequentemente nós estamos discutindo se num determinado caso concreto se aplica a lei velha ou a reforma. Por que essa discussão acontece? Por duas razões: primeiro, porque toda lei é sujeita a interpretação. Segundo, porque a lei nem sempre é suficientemente clara. Muitas vezes, ela é escrita justamente para dar margem a que qualquer das correntes se aposse dela para apoiar seu ponto de vista. Acredito que a reforma abriu muito o leque, tratou de muitos assuntos. Poderia ter sido ser mais específica, centrado mais o foco. Não deveria ter tratado, por exemplo, do trabalho intermitente, que encorpou a reforma sem nenhum resultado objetivo. Trabalho intermitente sempre houve. Não me lembro de ter visto na vida ninguém reclamar de registro por fazer bico.
O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, tem dito que a reforma trabalhista levou a uma “desformalização” e estimulou regimes de trabalho “análogos à escravidão”, deixando o trabalhador mais vulnerável. O sr. concorda com ele?
Não. Trabalho análogo à escravidão? Não, não, isso aí, não. O que estimula a “desformalização” é a insegurança jurídica. É um pouco fruto dessa má vontade do Judiciário com a reforma que eu mencionei há pouco. O trabalho informal foi criado em 1943. Com a adoção da CLT, houve uma divisão dentro da própria classe trabalhadora, porque a legislação nunca conseguiu atingir o objetivo, se que é houve esse objetivo, de formalizar os contratos de todos os trabalhadores. Então, ela gerou duas classes de trabalhadores: uma formal, com carteira assinada, e outra informal, sem carteira assinada. Quando o trabalhador informal passa a formal, sem dúvida ele tem um ganho. Tem 13º, férias, descanso semanal, uma série de proteções. Agora, quando ele sai da formalidade e vai para a informalidade, tem um prejuízo. Só que até hoje o Estado não conseguiu evitar que isso aconteça. Não conseguiu extinguir o mercado informal, que vai se ampliando na medida em que o formal se torna cada vez mais oneroso, uma onerosidade frequentemente em desacordo com a possibilidade do empresário, especialmente de micro e pequeno portes. Se essa legislação fosse boa, os miseráveis não representariam 50% da população do País.
O ministro Luiz Marinho e os sindicatos falam muito hoje também em “precarização” do trabalho. Qual a sua visão sobre esse problema?
Esse não é um fenômeno brasileiro. É mundial. Aliás, no Brasil, há pouca literatura sobre isso. A literatura sobre o trabalho é mais sobre o Direito do Trabalho. Não há muita literatura ao alcance das pessoas comuns sobre mercado de trabalho. Você encontra hoje vários autores de renome internacional falando no fim do emprego, em decorrência da automação, da globalização. Vi alguém dizer no Estadão que a criação de 400 milhões de empregos na China gerou 400 milhões de desempregados no mundo ocidental. O mundo passou a importar mercadorias chinesas, num regime de absoluta informalidade em todos os aspectos, por um preço melhor. No Brasil, entram 500 mil pacotes de produtos chineses por dia, naqueles contêineres imensos. Como você vai deter isso se o governo não encara o problema da redução dos encargos trabalhistas e dos impostos? Para o Brasil concorrer no mercado global, onde tem uma presença inexpressiva, precisa adotar políticas que tornem o país mais competitivo.
Até pouco tempo atrás, o Lula, o PT e o ministro Marinho falavam abertamente em revogação da reforma trabalhista. Agora, parece que a ideia é fazer a contrarreforma em partes, para facilitar a aprovação no Congresso. Como o sr. vê essa estratégia?
O Congresso não cometeria a loucura de revogar a reforma trabalhista. Não é nem que não haja apoio para revogar a reforma. Não há como fazer isso. Quando eu revogo uma lei hoje, não restabeleço a lei revogada. Precisa partir do marco zero. Eles não poderão fazer isso por decreto, porque decreto é o regulamento de uma lei. Farão por projeto de lei? Se o projeto não for bem feito, não passa. Vai receber 600 emendas, a lei vai nascer completamente desfigurada e pode ter certeza de que a mudança será para pior. Qual é o objetivo do Ministério do Trabalho? Quais os aspectos negativos levantados pelos adversários da reforma trabalhista? Eu não encontro uma crítica objetiva neste sentido.
Parece que na contrarreforma eles querem limitar a terceirização, rever a prevalência do acordado sobre o legislado e fortalecer os sindicatos nas negociações com os empregadores, além de regulamentar dos aplicativos.
Para reforçar o acordo coletivo, em primeiro lugar o sindicato precisa ser forte. O primeiro requisito para fortalecer o acordo coletivo é colocar gente na assembleia.
Precisa discutir antes se a assembleia é a instância adequada para esse tipo de deliberação ou se voto dos trabalhadores não deveria ser secreto, para garantir liberdade de escolha aos associados, sem o constrangimento existente nas votações abertas, que qualquer trabalhador sabe como são.
Vamos resumir esse capítulo ao seguinte: os nossos sindicatos não têm legitimidade. Os membros da diretoria se eternizam no comando. O processo eleitoral é interno. Não há fiscalização. Uma das coisas que a gente deveria priorizar é a redução do número de sindicatos. É impossível ter 14 mil, 15 mil sindicatos no País. Quantos são representativos? A taxa de sindicalização é muito pequena e a participação nas assembleias, também. Vai gente que não tem nada a ver com a categoria. Já fizeram até assembleia aberta ao público na Praça da Sé, em São Paulo. Então, para mim, a prioridade nº 1 é a reforma da estrutura sindical.
Que reforma sindical seria essa?
Não há necessidade de muita discussão. É só ratificar a Convenção 87 da OIT, que está no Congresso desde 1949 e prevê autonomia de organização e liberdade de criação sindical, adotada pela grande maioria dos países, para que não haja interferência do Estado, de partidos políticos e dos empregadores. Quem deve decidir se deve haver unidade ou não, se deve haver um sindicato só ou dois ou três de cada categoria, é o trabalhador. Não se pode negar a ele essa decisão. Isso é assim desde 1937. É o grande resíduo corporativista da legislação. Mudar isso é fundamental para que o País tenha o mínimo de respeitabilidade no cenário internacional nessa matéria. Dos 180 filiados da OIT, cerca de 150 ratificaram a Convenção 87. Se você for ver quem não ratificou, além do Brasil, são todos pequenos países, como Kuwait e Oman, e ditaduras como a Venezuela. Então, o primeiro item na pauta trabalhista deve ser a ratificação da Convenção 87 da OIT. Qualquer mudança tem que começar pela reforma do sistema de organização sindical. Eu quase consegui fazer isso. Quando o Tancredo (Neves) me convidou para ser o Ministro do Trabalho, ele me deu duas tarefas: ratificar a Convenção 87 e celebrar o pacto social, e eu não consegui realizar nenhuma das duas. No dia da votação do projeto no Senado, o José Richa (PSDB-PR), falecido em 2003, pediu vista e não o devolveu mais. Toda a cúpula sindical, patronal e profissional, estava contra a mudança.
Em relação à regulamentação dos aplicativos, que o ministro Marinho classificou de trabalho “semiescravo”, qual é a sua posição?
Precisa perguntar para o Marinho como ele chegou a essa conclusão sobre motoristas de aplicativos, se por acaso o governo fez alguma pesquisa junto a motoristas ou motoqueiros de aplicativos para saber quem são essas pessoas, quem é esse advogado ou esse engenheiro motorista de aplicativo. Ou esse moço solteiro que estuda à noite e é motorista de aplicativo. Você vê a índole ditatorial do Marinho. Como ele sabe o que pensam 800 mil motoristas de aplicativos no Brasil sem ter feito qualquer pesquisa? Eu pergunto: qual é o problema de o cara não ter um contrato formal? Ele tem duas opções: ou ele fica desempregado ou vai trabalhar por conta própria e prestar serviços para empresas de aplicativos. Ele pode trabalhar quantas horas quiser, ir para casa na hora que quiser. Esse mito do contrato registrado tomou conta de um país que é marcado por uma multidão de trabalhadores informais e uma multidão ainda maior de pessoas que trabalham por conta própria. Quem trabalha por conta própria, como os motoristas de aplicativo que têm um carro, é pária? Não. É da última camada da sociedade? Também não. Ele ganha mais do que o salário mínimo e não encontrou um emprego que lhe dê as mesmas condições que tem como motorista de aplicativo. Não conseguiu ser funcionário do Ministério das Relações Exteriores ou burocrata do Ministério do Trabalho. Ele tem a possibilidade de ter um carro e sustentar a família determinando quantas horas de trabalho vai fazer por dia, quantos dias por semana vai trabalhar, se vai trabalhar ou não no fim de semana, se aceita uma viagem para a periferia de São Paulo de madrugada. Nós perdemos o respeito pela liberdade de escolher.
Quanto à ideia de restringir a terceirização, também defendida pelo Marinho e pelo PT, qual a sua avaliação?
O oposto da terceirização é a produção verticalizada. Nós tivemos alguns exemplos no Brasil. O Grupo Matarazzo foi um. Não só era verticalizado como queria abranger todos os setores. Quebrou. Ou seja, não entendeu a necessidade de entregar tarefas especializadas para empresas ou pessoas especializadas. Interessante que a terceirização existe desde 1965, com a lei que regulamentou a atividade do representante comercial autônomo, que era um terceirizado. Nunca ninguém se insurgiu contra isso. Por que os sindicatos começaram a implicar com a terceirização? Porque o empregado terceirizado passou a constituir uma categoria à parte e os sindicatos querem ver todo terceirizado da indústria metalúrgica como metalúrgico, todo terceirizado de um banco como bancário e todo terceirizado da indústria de tecelagem como tecelão. Agora, isso não corresponde à necessidade da empresa. Na indústria automobilística hoje, o automóvel não é produzido, é montado. Há uma intensa terceirização. A produção do motor do automóvel, por exemplo, precisa ser em grande escala, para reduzir o custo. Um fabricante médio ou pequeno de automóveis não tem condições de fazer o motor. Vai onerar demais sua produção. Também não vai fazer o banco do carro. Nem o sistema de navegação digital ou os pneus. O (Henry) Ford (1863-1947) também queria concentrar tudo dentro da sua empresa. E ele chegou em grande parte a fazer isso, mas à medida que o negócio se expandiu a Ford se viu obrigada a terceirizar. E, no Brasil, a terceirização não é um desejo é uma necessidade.
Tem também a questão do ganho de eficiência e de produtividade. Para que se envolver com certas atividades, mesmo aquelas ligadas diretamente ao negócio?
Quando comecei a advogar, a Nitro Química fazia até comida dos empregados, a limpeza da fábrica. Tinha até departamento médico interno.
Só que aí o sr. está falando das chamadas atividades-meio e não das atividades-fim das empresas, que é o que parece incomodar mais o pessoal. O sr. é a favor da terceirização das atividades-fim?
A coisa se resolve da seguinte maneira: nós temos de respeitar o direito de a empresa estabelecer o seu sistema de trabalho. Há marcas de tênis que não têm um empregado próprio fazendo tênis e mesmo assim têm posições relevantes no mercado mundial. Acho que essa é uma discussão que nem vale a pena ser retomada. A terceirização está permitida e se voltarem atrás vão desestruturar todo o sistema produtivo que está baseado na terceirização. Como é que o empresário que tem vários setores terceirizados vai voltar a chamar a si a responsabilidade da produção daqueles componentes ou daqueles serviços? Vai ser uma falência geral. Por que não queremos aceitar a liberdade que as pessoas querem ter de tomar suas próprias decisões?
Acredito que é essa mentalidade que o sr. mencionou de que o trabalhador é visto como um pobre coitado, uma vítima do sistema.
Acredito que também contribui para isso o desconhecimento do próprio sistema econômico ou industrial. Agora que estão falando em reindustrialização, como é que vão acabar com a terceirização? São duas coisas que caminham juntas. Você conhece um livro que se chama O mundo é plano, do Thomas Friedman? Ele diz que o laboratório médico americano manda a radiografia ou o exame de sangue para ser analisado na Índia. E, como o fuso horário é diferente, quando o americano está dormindo o indiano está trabalhando. Então, são assuntos que estão falhando ao alcance da compreensão dos juristas e dos sindicalistas.
Para finalizar, gostaria que o sr. falasse sobre a CLT, que está completando 80 anos em 2023. Qual a sua avaliação da CLT hoje?
É óbvio que nenhuma lei nasce perfeita e acabada. E nenhuma lei resiste à ação do tempo, sobretudo quando se levam em conta as transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas em escala global nas últimas décadas, especialmente no terreno da tecnologia. A fábrica de tecidos daquela época era completamente diferente do que é hoje. O transporte era diferente. O automóvel era um objeto raro e caro. A comunicação se fazia pelo telégrafo e as ligações telefônicas interurbanas eram feitas por meio da telefonista. Neste cenário de constantes e profundas mudanças, a CLT – criada em 1943, durante o Estado Novo, no auge da ditadura de Getúlio Vargas, e inspirada na Carta Del Lavoro, implementada pelo ditador italiano Benito Mussolini – permaneceu, embora tenha passado por muitas alterações desde então. A CLT não é mais a mesma coisa, mas muito do texto original se manteve até hoje.
Em sua avaliação, a CLT ainda faz sentido hoje, mesmo com as mudanças ocorridas desde a sua criação, ou deve ser substituída como principal instrumento de regulação do trabalho no País?
Nós estamos acorrentados à CLT. É muito difícil prosperar qualquer medida de revisão profunda do ordenamento jurídico que se aplica às relações de emprego no País. Se a reforma trabalhista, que não foi algo tão grandioso como algumas pessoas querem apresentar, gerou tanta resistência, o que acontecerá com um projeto que incluir todas as relações de trabalho? Não importa quem redija, quem prepare, quem elabore. Quando chegar à Câmara dos Deputados, receberá 450 mil emendas e não vai prosperar. Algo que teria de ser feito de maneira urgente não conseguirá chegar nem à fase de votação, exceto depois que estiver ultrapassado, porque o mundo não espera, a economia não espera. A CLT foi feita em três meses. Começaram a trabalhar nela no fim de 1942 e o texto foi encaminhado ao Vargas em março ou abril de 1943. No dia 1º de maio, ele baixou o decreto-lei implementando a nova legislação. Só que ele tinha plenos poderes, era um ditador. Hoje, no regime que nós conhecemos, com centrão, esquerda, extrema-esquerda, meia-esquerda, centro-esquerda, meia-direita, centro-direita, o que pode acontecer? A minha percepção é de que nós vamos ter de continuar com a CLT e, como eu disse, ir modificando seu texto à medida que forem surgindo as questões.
O sr. falou que a CLT passou por muitas mudanças desde a sua criação. Que mudanças ocorridas nesses 80 anos o sr. destacaria?
Em 1966/67, no governo Castello Branco, por exemplo, houve uma grande renovação na legislação trabalhista, com a criação do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço). Foi uma grande reforma, inicialmente rejeitada pelos trabalhadores, que diziam acreditar que, com o FGTS e o fim da estabilidade conquistada após dez anos de serviço na mesma empresa, todas as garantias desapareceriam e seria impossível a vida sindical. Ora, o FGTS revelou-se uma legislação extremamente útil, benéfica, que de opcional se universalizou com a Constituição de 1988 e se tornou uma das garantias fundamentais da classe trabalhadora. Com a Constituição de 1946, houve outra mudança importante. O direito de greve, que era considerado crime pela CLT, foi reconhecido, “na forma da lei”, apesar de só ter sido regulamentado em 1964, 18 anos depois.
Do que permaneceu na CLT até agora, que pontos o sr. acredita que ficaram obsoletos?
Como eu disse, toda a estrutura corporativista do fascismo, que deveria ter se transformado com a redemocratização, permaneceu intocada. Por inércia do Legislativo e do Executivo, a Constituição de 1946 manteve a organização sindical corporativa fascista da Carta de 1937: a unicidade sindical, o monopólio de representação, a estrutura confederativa hierarquizada, composta por confederações, federações e sindicatos, para empregados e empregadores. Mesmo a Constituição de 1988, por pressão dos pelegos patronais e profissionais, ficou no meio do caminho, entre um sindicalismo democrático e o sindicalismo autoritário de Vargas. No artigo 8º, ao tratar do assunto, a Constituição diz: “É livre a associação profissional ou sindical”. Mas depois vem a fatídica vírgula e segue-se a seguinte ressalva: “Vedada mais de uma organização sindical em qualquer grau, representativa de categoria econômica profissional, na mesma base territorial, preservando o monopólio de representação”. Trata-se de um dispositivo profundamente antidemocrático, que era um dos pilares do sindicalismo corporativo fascista do Estado Novo. Além disso, a Constituição de 1988 diz que os sindicatos deveriam ser registrados no “órgão competente”, mas, como não falou qual, a questão foi parar no Supremo. Na minha avaliação, o “órgão competente” seria o cartório das pessoas jurídicas, já que o sindicato é uma organização de direito privado. O Supremo, porém, decidiu que o registro deve ser feito no Ministério do Trabalho. Ou seja, preservou a vinculação do sindicato ao Estado, como nos tempos de Vargas.
Em resumo, o sr. acredita que a CLT atende ou não às necessidades do mundo do trabalho atualmente?
Hoje, o trabalhador já não tem mais a mesma ambição que teve no passado de ter um registro em carteira. O ideal de todo o trabalhador quando a CLT foi criada era conseguir um registro em carteira ou emprego público. Hoje, eu não percebo esse mesmo interesse extremo nos jovens. No mundo real, o objetivo do registro em carteira não é mais o mesmo, assim como a inscrição na Previdência. O que um jovem de 18 anos pode aspirar da Previdência Social? Ele sofre um desconto muito forte no salário, que é a sua contribuição, na expectativa do quê? Se quiser ter assistência em saúde, ele tem de ter um convênio. Se quiser estudar, tem de pagar uma escola. É tudo muito diferente. Nós queremos olhar o mundo de hoje com os olhos de 1943, com a ótica da CLT. Nós temos de analisar esse conjunto de leis segundo o mundo do século 21, profundamente alterado pela globalização, pela informatização, pela politização das pessoas. O trabalhador de 1943 não tinha os partidos políticos que tem hoje para escolher. Não tinha acesso à informação. As comunicações eram completamente diferentes. Hoje, a vida profissional tem facetas que lá em 1943 ninguém poderia imaginar. Com o home office, tem gente trabalhando no Brasil e morando na Europa. É outro mundo.