A onda de recuperação judicial esperada para 2020, por causa das restrições da pandemia, chegou com quase três anos de atraso. Nos últimos meses, as empresas tiveram de conviver tanto com o fim dos programas governamentais e o vencimento de dívidas renegociadas no passado pelos bancos quanto com juros altos (Selic de 13,75%, a maior desde 2017), inflação pressionada e consumo fraco.
Nesse cenário, companhias recorrem à Justiça para ganhar tempo, arrumar a casa e preservar o negócio. Em janeiro, o volume de recuperações judiciais requeridas foi o maior para o mês em três anos, segundo dados da Serasa Experian. E a perspectiva, segundo consultorias, é que haja um boom de pedidos de recuperação e de falências no primeiro quadrimestre.
Pesos-pesados do mercado e empresas tradicionais deram mostras de esgotamento financeiro. A Oi, que saiu da recuperação judicial em dezembro, fez um pedido de tutela à Justiça que indica uma segunda recuperação para honrar as dívidas da primeira. A DOK Calçados, dona da Ortopé, entrou com o pedido de proteção judicial contra seus credores.
Já a Pan, de chocolates, e a Livraria Cultura não resistiram e foram à falência (no caso da Cultura, revertida mediante liminar na semana passada). Além disso, a Americanas, em um caso particular de problemas nos balanços, também entrou com pedido de recuperação judicial. A Marisa, do setor de vestuário, optou por reescalonar a dívida de R$ 600 milhões fora do âmbito judicial.
Pelos dados da Serasa, 92 companhias pediram ajuda da Justiça para adiar o pagamento de dívidas em janeiro, segundo o levantamento da Serasa Experian obtido com exclusividade pelo Estadão. A alta é de 37,3% ante janeiro de 2022 e de quase 90% ante janeiro de 2021.
Além do grande volume de pedidos, chama a atenção nos resultados o aumento da fatia de companhias de grande porte que solicitaram recuperação judicial neste começo de ano.
Apesar de as micro e as pequenas serem maioria, com dois terços dos pedidos, no mês passado, 15 companhias de grande porte recorreram a esse instrumento jurídico. É quase triplo do ano anterior. “Quando vemos as grandes empresas tendo problemas, está feia a coisa”, diz Luiz Rabi, economista da Serasa Experian, responsável pelo levantamento.
Os sinais de estrangulamento financeiro das empresas começaram a surgir no final de 2022. O ano se encerrou com 6,4 milhões de companhias inadimplentes, um recorde desde que a Serasa iniciou o levantamento, em março de 2016.
Rabi observa que, quando a inflação anual ultrapassou 10% no final de 2021, cresceu a inadimplência tanto do consumidor quanto das empresas. De lá para cá, esses volumes só aumentaram. “Uma inadimplência (pessoa física) puxa outra (pessoa jurídica)”, diz.
Buscas por reestruturação
Em meio ao estrangulamento financeiro das companhias iniciado na pandemia e agravado pela alta no calote de consumidores, cresce entre as empresas a busca por reestruturação. Consultorias como a Corporate Consulting e a Siegen, especializadas em reestruturar empresas, relatam um salto na demanda.
”Era algo previsível”, afirma Osana Mendonça, sócia de reestruturação judicial da consultoria KPMG, que espera um boom de recuperações judiciais, especialmente depois do carnaval.
Ela lembra o efeito cascata que deve ocorrer no mercado com os pedidos de grandes empresas, que acabam afetando também a situação financeira dos credores, geralmente outras companhias.
Com a crise sanitária, muitos negócios fecharam as portas. O governo injetou recursos na economia por meio de linhas especiais de crédito para atenuar as restrições. “As empresas se aguentaram em cima de dinheiro novo, que inibiu grande volume de demissões, recuperações judiciais e retardou o movimento falimentar por quase dois anos”, observa Luiz Alberto de Paiva, sócio-fundador da Corporate Consulting. Foram dois anos com os bancos repactuando créditos, advogados segurando processos de execução, além das mudanças na lei falimentar por conta da pandemia, mas o quadro se deteriorou.
Atualmente com juros nas alturas, a aprovação de novos financiamentos está mais difícil e mais cara. Além disso, a inflação se mantém em níveis elevados. Esse cenário pressiona custos das empresas, que, ao mesmo tempo, veem as expectativas de melhora da economia e das vendas não se confirmarem.
Paiva conta que as empresas não estão conseguindo rolar as dívidas e buscam alternativas, como a negociação amigável, a recuperação extrajudicial e a recuperação judicial. Sua consultoria hoje conduz a reestruturação financeira de quase 40 grupos econômicos de médio porte que somam uma dívida de R$ 3,5 bilhões. Antes da pandemia, ele tocava, em média, sete ou oito reestruturações por mês.
“Acredito num pico de pedidos de recuperação judicial no primeiro quadrimestre. Depois, deve apaziguar”, afirma Paiva.
O trabalho também cresceu na Siegen, que em janeiro recebeu consultas de 30 empresas de médio porte em dificuldades financeiras. As dívidas dessas companhias somam R$ 1 bilhão.
A consulta é feita para avaliar a possibilidade de reestruturação e a viabilidade de pedir recuperação judicial. Desde 2019, a empresa não recebia um volume tão alto de consultas num único mês, observa Fabio Astrauskas, sócio da consultoria.
No momento, a Siegen reestrutura 15 empresas em recuperação judicial. Uma é do Grupo Raiola, uma marca de azeitonas e conservas que entrou em recuperação judicial em fevereiro, com dívidas bancárias de cerca de R$ 50 milhões. Astrauskas explica que a companhia teve aumento da despesa financeira por causa da alta dos juros e do custo da azeitona, importada, e não conseguiu repassá-lo porque o consumo está em queda. “A recuperação judicial foi o caminho mais indicado”, diz.
Astrauskas projeta mil pedidos de recuperação judicial este ano, nível semelhante ao de 2020 (1.179). Em 2022, foram 833 e no ano anterior, 891, de acordo com a Serasa Experian.
Apesar de o varejo ser o segmento mais exposto, empresas do agronegócio, da indústria e de serviços buscam ajuda ou para se reestruturar ou pedir recuperação judicial, diz Astrauskas.
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“A procura por reestruturação de dívida está muito grande por empresas do varejo e é o segmento que está sofrendo mais”, afirma Cinthia de Lamore, sócia da área de reestruturação e insolvências do escritório de advocacia Cescon Barrieu. O escritório tem atendido especialmente credores – bancos e fornecedores – que tiveram os recebimento de créditos adiados por conta da recuperação judicial de clientes.
Aracy Barbara, sócia do VBD Advogados e especialista em contratos e recuperação judicial, afirma que os problemas financeiros das empresas podem ter se arrastado por anos. “A maioria das recuperações judiciais neste começo de ano não é só de agora. Há empresas que têm problemas desde antes da pandemia, talvez até desde 2015″, diz.″
João Coronel, diretor de crédito do Banco Fator, afirma que o aumento da taxa Selic nos últimos anos fez crescer brutalmente o custo do crédito das empresas. “Pode ter dobrado, triplicado ou quadruplicado”, diz.
Na avaliação de Felipe Miranda, CEO da Empiricus, as empresas que estão em maior risco de inadimplência são aquelas que fizeram muitas dívidas e apostaram alto demais, por exemplo, na digitalização das vendas. “Tivemos exagero com os juros a 2% na pandemia, o que estimulou as empresas a se endividarem. Houve também muitas demandas relacionadas ao home office, que não se mantiveram. Em meio a isso, rapidamente a taxa de juros subiu para 13,75%”, afirma.
O que dizem as empresas
A Lojas Marisa disse, em nota, que “decidiu iniciar a renegociação de seu endividamento bancário para obter uma melhor liquidez de sua posição de caixa”. “Do lado da companhia e de seus acionistas de controle, temos um histórico de bom relacionamento com o mercado e, do lado dos bancos, há boa vontade em se chegar a bom termo”, afirmou.
A Americanas disse, em nota, que continua funcionando normalmente “ao mesmo tempo em que trabalha na construção de seu plano de recuperação” e que “soma mais de 40 mil colaboradores em todos os Estados do País e reitera que se mantém comprometida com a transparência e as obrigações trabalhistas, como prevê a legislação”.
Procuradas, Oi, Raiola e DOK Calçados não comentaram seus pedidos de recuperação judicial. Pan e Livraria Cultura também não se pronunciaram.
Relembre os casos
Americanas
Em um caso atípico, a Americanas entrou em recuperação judicial às pressas no começo do ano, depois que Sergio Rial reportou um rombo bilionário nas contas e renunciou ao cargo de presidente da varejista após apenas nove dias. A empresa tem dívida de mais de R$ 40 bilhões com cerca de 7 mil credores e agora prepara um plano de pagamento que será votado em assembleia.
Raiola
Conhecido por seus azeites e suas azeitonas, o Grupo Raiola entrou com pedido de recuperação judicial no começo de fevereiro, declarando dívidas que totalizam R$ 153 milhões. A empresa tinha a Americanas como canal importante de vendas. O montante sujeito à recuperação judicial é de R$ 62,3 milhões, enquanto o restante é referente a dívidas fiscais.
Marisa
Neste começo de ano, a varejista Marisa deu início a uma renegociação de cerca de R$ 600 milhões em dívidas, buscando mais prazo para realizar o pagamento. Em meio às dificuldades financeiras, o diretor presidente Adalberto Pereira dos Santos renunciou à presidência da empresa, sendo substituído interinamente por Alberto Kohn de Penhas, vice-presidente comercial e executivo.
DOK Calçados
O Grupo DOK, dono das marcas Ortopé e Dijean, enfrenta problemas financeiros e pediu recuperação judicial. A empresa também é alvo de investigação do Ministério Público por acusações de fraude por parte do escritório Dias da Silva Advogados, que representa um dos fundos que podem ser lesados pelo grupo. A acusação é de que a empresa tem dívidas de R$ 400 milhões com cerca de 90 instituições financeiras.
Livraria Cultura
A Livraria Cultura está em recuperação judicial desde 2019 e teve um revés no começo deste ano. A Justiça decretou a falência da empresa por não cumprir os pagamentos acordados no plano de recuperação. Na semana seguinte, a decisão foi suspensa por uma liminar que pede para a situação ser revista dada a importância da companhia para o setor. A empresa tenta renegociar a dívida de R$ 285,4 milhões.
Pan
A Pan Produtos Alimentícios, conhecida por seus produtos de chocolate em formato de cigarro e moeda, entrou com pedido de autofalência na Justiça, reconhecendo a incapacidade de honrar as dívidas e continuar operando. A empresa estava em recuperação judicial desde março de 2021, mas não conseguiu reverter a situação. A Pan tinha dívidas na casa de R$ 260 milhões e contava com 52 funcionários.