BRASÍLIA – O pacote de cortes de gastos enviado pelo governo Lula oficialmente ao Congresso nesta sexta-feira, 29, abre uma brecha para que recursos de fundos públicos que estão parados na conta única da União possam ser direcionados livremente no Orçamento. O risco foi apontado por especialistas após o texto ser divulgado. Procurados, ministérios da Fazenda e do Planejamento não comentaram.
O projeto libera o uso do dinheiro do superávit (saldo positivo) financeiro desses fundos, que hoje somam R$ 39 bilhões, para qualquer finalidade. Caso a lei seja aprovada, os recursos que hoje estão parados poderão ser usados para outros fins, o que abre a margem para ampliar despesas, de acordo com especialistas consultados pelo Estadão.
Integrantes da equipe econômica ouvidos pela reportagem alegam que o objetivo é abater dívida. O problema, dizem analistas, é que isso não ficou explícito no texto. Como o projeto diz “livre aplicação”, sem especificação, ficou aberto o caminho para outras finalidades, como repasse a bancos públicos para impulsionar o crédito sem aparecer no Orçamento.
O projeto permite o uso do superávit financeiro de oito fundos públicos para “livre aplicação” entre os anos de 2025 e 2030. Entre eles, estão o Fundo da Marinha Mercante, destinado à infraestrutura naval, e o Fundo Nacional Antidrogas, criado para financiar projetos de programas relacionadas ao combate às drogas.
Atualmente, o dinheiro arrecadado por esses fundos só pode ir para as políticas para as quais foram criados. Se o recurso não é gasto, ele vira “superávit” e fica parado.
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Para o economista e pesquisador associado do Insper Marcos Mendes, há brecha para gastos parafiscais, ou seja, fora da contabilidade tradicional da União. “Ficou desvinculado e disponível para fazer o que quiser com o dinheiro. Usualmente, os superávits desses fundos eram desvinculados para quitar dívida pública. É o uso mais conservador do ponto de vista fiscal”, diz Mendes.
Segundo o economista, o uso “mais perigoso” é o repasse para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ou outros bancos públicos para expansão de programas de crédito do banco. Essa possibilidade, de acordo com ele, é pior até mesmo do que usar o recurso para bancar despesas corriqueiras do Orçamento, impactando o resultado primário (saldo entre receitas e despesas) e que o governo já iria gastar de qualquer forma.
Segundo o economista Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos, a medida preocupa, por deixar em aberto a finalidade de uso dos recursos.
“Se houvesse explicitamente a destinação desse superávit financeiro para o pagamento da dívida, não haveria problema. Mas a livre aplicação sugere que o recurso pode ser utilizado para outros fins, inclusive para despesas reembolsáveis (empréstimos) via BNDES”, afirmou.
O entendimento é o mesmo do economista Fábio Serrano, do BTG Pactual, que viu na medida um risco “parafiscal”, quando despesas são feitas por fora do Orçamento. Em relatório a clientes, ele afirmou que o governo até pode ter tido a boa intenção de usar esses recursos para o pagamento de dívidas, mas o texto, sem essa restrição, ampliou incertezas. Ele afirmou que já houve casos similares no atual governo.
“Algumas possíveis utilizações seriam amortizar dívida (num caso bom) ou financiar gastos. Dentro dessa segunda opção, gastos primários teriam impacto no limite de gastos e na meta de primário, mas gastos financeiros (empréstimos), não. Em um caso recente, a Lei Geral do Turismo autorizou a desvinculação do superávit financeiro do FNAC para financiar empréstimos para companhias aéreas através do BNDES. O artigo não limita o uso dos recursos e nem estabelece a devolução, em caso de empréstimos”, escreveu.
O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), que protocolou o projeto na Casa, não escreveu uma justificativa específica para a proposta dos fundos no texto. Falando sobre o projeto todo, que traz outras medidas do pacote de contenção de gastos, ele afirmou que “a proposição traz consequências positivas para a estabilização da economia, apoiando a continuidade do processo de crescimento com estabilidade de preços e geração de emprego e renda.”
A regra que “amarra” o uso do dinheiro dos fundos está na Lei de Responsabilidade Fiscal.
“O grande objetivo do arcabouço fiscal é diminuir a dívida pública em relação ao PIB; então, seria razoável direcionar o dinheiro para o pagamento da dívida”, diz o economista Camillo Bassi, pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). “Os recursos são vinculados. Ou você desafeta (desvincula) ou vai carregar esse tesouro ad eternum e não pode usufruir.”