Enquanto a preservação da fauna e da flora não faz parte dos projetos prioritários dos governos brasileiros, grupos de pessoas que incluem empresários, banqueiros, médicos e até um ex-piloto de corrida tentam, por conta própria, garantir a conservação do Pantanal comprando fazendas na região para preservá-las. O foco são áreas estratégicas para o bioma que estão sob algum grau de ameaça.
Com compras diretas, doações para aquisições por terceiros e adesão de fazendeiros locais, que assumem compromissos de preservação, o grupo contabiliza, até agora, 536 mil hectares (5,3 mil km²) onde não entram culturas que degradem solo e rios – como o plantio de soja –, pesca predatória, caça de animais e desmatamento. Também há o compromisso de criar brigadas para evitar ou combater incêndios.
A área equivale a três vezes e meia a cidade de São Paulo. De todo o Pantanal, representa uma fatia de 3,5%. A conservação desse território envolve dois grupos organizados que compram ou administram propriedades privadas. Um deles é chamado de Aliança 5P (de pantanal, preservação, parcerias, pecuária e produtividade), que atualmente reúne 12 fazendas formando um dos maiores corredores privados de vida selvagem do mundo.
Uma das articuladoras da 5P é a ambientalista Teresa Bracher, dona de algumas fazendas na região junto com o marido, Candido Bracher, acionista e ex-presidente do Itaú. A Fazenda Rio Negro, do banqueiro André Esteves, fundador do BTG Pactual, também está na Aliança.
É na Rio Negro que foram gravadas cenas da novela Pantanal. Também é integrante do grupo o sócio fundador e CEO da Pandhora Investimentos e presidente do SOS Pantanal, Alexandre Bossi. A Aliança envolve várias outras pessoas que não querem ser identificadas.
O outro grupo, da Serra do Amolar, é coordenado pelo Instituto Homem Pantaneiro (IHP), com sete fazendas e cinco RPPNs (Reserva Particular do Patrimônio Natural). É presidido por Ângelo Rabelo, coronel reformado que ajudou a criar a Polícia Militar Ambiental em Mato Grosso do Sul.
Ambas as áreas estão conectadas a dois parques, o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, que é público mas recebe ajuda do IHP, e o Parque Estadual do Pantanal do Rio Negro, ambos no Mato Grosso do Sul. O objetivo dos grupos é continuar comprando áreas com boa diversidade, em especial as que estejam sob risco de desmatamento ou de serem adquiridas por pessoas não comprometidas com a preservação. A intenção é formar grandes corredores ecológicos e manter o bioma como o mais preservado do País.
Doações
Somente entre 2020 e 2021, a Aliança 5P conseguiu, em doações, R$ 110 milhões para a compra de duas fazendas. Uma delas, adquirida no ano passado, é a São Francisco de Perigara, em Mato Grosso. A área tem a maior concentração de araras azuis do mundo. Durante o incêndio de 2020, teve grande parte de seu território queimado, e as proprietárias decidiram vendê-la.
“É uma área super preservada, onde estão 15% de toda a população do mundo de araras azuis. Também tem onças-pintadas e outros animais, por isso achamos importante que seja preservada para sempre”, afirma Mario Haberfeld, ex-piloto de Fórmula Indy, fundador da Associação Onçafari, que também integra a 5P.
Segundo ele, diante do risco de a fazenda cair em mãos com propósitos de usá-la para finalidades que não garantissem a conservação, a Onçafari conseguiu ajuda financeira de seis pessoas, comprou a área e é responsável por sua administração
Mario Haberfeld, ex-piloto e fundador da ONG Onçafari
A Onçafari é uma ONG criada em 2011 para promover a preservação da biodiversidade em diversos biomas brasileiros, com ênfase em onças-pintadas e lobos-guarás. Após 20 anos atuando em corridas, Haberfeld largou as pistas e fez várias viagens pelo mundo. Conheceu animais como o urso panda, na China, leões na África e tigres na Índia.
“Percebi que muitos deles estavam sendo salvos graças ao ecoturismo, pois passaram a ter valor econômico”, diz o ex-piloto. “As pessoas entenderam que os animais valem mais vivos do que mortos”. Ele se inspirou nessas experiências para seu projeto de ecoturismo.
A sede da entidade, que tem nove bases espalhadas pelo País, fica no Refúgio Ecológico Caiman (MS). A fazenda pertence há vários anos ao empresário Roberto Klabin, da gigante de papéis Klabin, que sempre manteve projetos de conservação ambiental.
Parte do local é uma RPPN e também há uma área para criação de gado, de forma sustentável. A criação de gado é principal atividade econômica do Pantanal e os ambientalistas trabalham para que haja equilíbrio entre a produção e preservação. Uma das maneiras é manter pastos só com grama nativa, não usar agrotóxicos e nem desmatar.
Ecoturismo
À medida em que as áreas do pantanal vão ficando mais secas por falta de chuvas, em parte por causa das mudanças climáticas, começam a ocorrer pressões de fazendeiros para a introdução de outras atividades, como o plantio da soja, que tem impacto muito mais negativo do que o gado, pontua Haberfeld.
A fazenda Caiman abriga uma pousada e Haberfeld se uniu a Klabin para, por meio da Onçafari, promover a conservação e contribuir com o desenvolvimento socioeconômico da região com ecoturismo, educação ambiental, atuação junto às comunidades e estudos científicos sobre as onças-pintadas. O local recebe visitantes do mundo todo. A ONG também atua na recuperação de animais feridos para que possam voltar aos seus hábitats.
A outra fazenda adquirida com doações privadas, em 2020, foi a Santa Sofia. A ex-proprietária, Beatriz Rondon, chegou a ser presa após a descoberta de que usava o local para turismo de caça de onças. Após as denúncias, ela colocou a fazenda à venda.
”Tinha um pessoal que queria comprar a área para desmatar e a Teresa (Bracher) sugeriu juntar um grupo para comprá-la e mantê-la integralmente como área de proteção”, conta Raquel Machado, médica dermatologista que é uma dos oito cotistas que bancaram a compra, assim como Teresa e a Onçafari. “Nós mudamos o futuro das onças de lá”, diz. Foi depois dessa iniciativa que a 5P foi criada.
Raquel e seu marido, o administrador Irllau Machado, já tinham histórico de comprar áreas para fins de preservação. Em 2008, eles adquiriram um sítio em Porto Feliz (SP). Ela conta que ficou chocada ao tomar posse da área e encontrar um papagaio preso em uma gaiola, deixado pelo antigo proprietário.
Buscou ajuda no Ibama e construiu um local amplo para que a ave pudesse voar. Acabou virando uma mantenedora (pessoa ou entidade que recebe animais do Ibama para guarda e recuperação para soltura.
“Começamos com papagaios, depois vieram periquitos, tucanos, araras, macaco prego e bugio, cachorro do mato, anta e ratão do banhado, grande parte recuperada de traficantes de animais” Hoje o sítio não tem espaço para receber mais animais. Para que o projeto seja mantido, foi criado, há dois anos, o Instituto Raquel Machado.
Paralelamente, o casal compraram duas áreas em Bonito (MS), chamadas de Santuário e Saci, e as transformou em RPPNs. Raquel também tem duas fazendas adquiridas no ano passado no sul do Pará . Uma delas, a Reserva São Benedito, com 1,2 mil hectares (12 km²) de mata fechada e preservada, teve toda sua extensão atingida por um incêndio no início do mês.
Segundo ela, o vizinho da área colocou fogo na propriedade dele, provavelmente para formar pasto, mas o fogo se espalhou e atingiu sua reserva. “Esse fazendeiro foi autuado em 2020 pelo mesmo motivo, mas voltou a repetir a ação”, diz Raquel, que tem registros do início do fogo na área vizinha. “A minha área queimou inteira; um sonho acabou, virou pó”.
Crédito de carbono
Na Serra do Amolar, que teve mais de 90% de sua área atingida pelo incêndio de 2020, o maior já ocorrido no Pantanal, o IHP adquiriu ou administra sete fazendas, a maior delas pertencente a Teresa Bracher.
Também inclui cinco RPPNs – uma delas é uma fazenda que pertenceu ao empresário Eliezer Batista e foi doada ao instituto. Ao longo de cinco anos (até 2013), o empresário Eike Batista, filho de Eliezer e dono da EBX, contribuiu com doações anuais de cerca de R$ 3 milhões ao IHP, antes da falência do grupo.
Além de doadores privados que ajudaram na aquisição de fazendas transformadas em RPPNs, o IHP conta com patrocínios de empresas como JBS e General Motors e captação de recursos por meio de editais. Recentemente, lançou um programa de ecoturismo sustentável e foi certificado para a venda de créditos de carbono.
Em 2008 foi criada a Rede Amolar, parceria entre o IHP, Instituto Acaia Pantanal, Fazenda Santa Tereza, Fundação Ecotrópica, Instituto Chico Mendes e Polícia Militar Ambiental com o propósito de defender a biodiversidade local.
“A extinção de espécies ocorre por destruição do hábitat, por isso o grande desafio é assegurar corredores que permitam não só a sobrevivência, mas evite a consanguinidade (cruzamento de animais da mesma família), que também leva à extinção”, afirma Rabelo. Com grandes áreas para habitação, isso é mais difícil de ocorrer.
Soja se aproxima
Outra iniciativa para preservação do Pantanal e de outros biomas ao seu redor vem do Instituto Delta do Salobra (IDS), criado em 2019 pelo documentarista Maurício Copetti. A ONG pretende unificar várias áreas para a formação de um grande corredor verde.
A família de Copetti tem uma propriedade na região do Delta do Rio Salobra e, em 1997, ele construiu a Pousada Refúgio da Ilha, onde promove o turismo sustentável, mas percebeu que não adianta preservar sua propriedade se no entorno há destruição.
O objetivo do IDS é criar soluções para o desenvolvimento sustentável da região e, ao mesmo tempo, descobrir possibilidades de obtenção de renda, como o ecoturismo, pois é preciso ter uma economia para manter quem vive na área.
Pantanal preservado
Copetti explica que já existe no local um corredor natural que precisa ser consolidado com a garantia de preservação. Para isso, o IDS, em parceria com a Embrapa Pantanal, têm conversado com proprietários locais para se unirem em projetos de preservação. “Nossa instituição é muito pequena, vive de algumas doações e taxas de conservação dos visitantes, mas está empenhada em conquistar essas áreas aos poucos”, diz.
A junção do Delta do Salobra a outros projetos como os da Aliança 5P e Rede Amolar, passando pela Serra da Bodoquena e a terra indígena Kadiuéw, criaria um corredor com cerca de 1,2 milhão de hectares (12 mil km²) que vai além do Pantanal. “Teríamos um território com diversidade de cultura, com serras, diferentes pantanais, mata atlântica e chaco”, afirma o documentarista.
O receio é a chegada mais intensa da soja, já presente na região “e que afeta diretamente na transparência da água, turvando-a totalmente”, diz Copetti. O cultivo ocorre em maior escala em Bonito (MS), importante ponto turístico.
Leonardo Gomes, diretor de Estratégias do SOS Pantanal, conta que, na área de planície do Pantanal no Mato Grosso do Sul foram identificados recentemente 600 hectares de plantação de soja. A suspeita, porém, é de que pode ser ainda maior. “Está ocorrendo principalmente em áreas que não alagam há uns dois ou três anos por causa das mudanças climáticas.”
“Se a soja chegar ao Delta do Salobra será um grande problema”, diz Copetti, que tem visto aumentar a seca na região. Neste ano não houve as tradicionais enchentes de janeiro a março. “Em 24 anos eu nunca tinha visto isso. Há lugares em que a canoa não entra mais, é preciso descer e empurrá-la; as ariranhas não reproduzem mais lá porque o rio está seco e não tem peixe”. A famosa cachoeira Boca da Onça também está seca.
Segundo Copetti, o movimento de compra de terras para conservação começa a chegar ao Delta. “Há pelo menos uma negociação em andamento”. Também há investidores estrangeiros interessados em patrocinar projetos envolvendo as comunidades locais.