Paulo Guedes, de ‘Posto Ipiranga’ a ‘troféu’ na Esplanada dos Ministérios


Mesmo com influência reduzida, o ministro da Economia resiste a deixar o cargo e se torna avalista de medidas que vão contra o que sempre pregou

Por José Fucs

O economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, costuma dizer que, no futuro, caberá aos psicólogos e sociólogos explicar a relação do ministro da Economia, Paulo Guedes, com o presidente Jair Bolsonaro. 

Amigo de Guedes e liberal como ele, Franco – que chegou a ser indicado para a presidência do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), mas foi vetado por Bolsonaro por ter participado do governo FHC – expõe com fina ironia o enigma que cerca a permanência do ministro no cargo, em meio às rasteiras em série que leva do chefe.

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Para quem acompanha o vai e vem da relação de Guedes com o presidente, é difícil entender o que o faz manter o seu “casamento hétero” com Bolsonaro, enquanto muitos de seus auxiliares já deixaram o governo, seja por terem se desapontado com o rumo das coisas, seja porque foram defenestrados por ordem do “capitão”. 

Jair Bolsonaro, presidente da República, e seu ministro da Economia, Paulo Guedes Foto: Eraldo Peres/ AP

De “Posto Ipiranga” e “superministro” da Economia, que pretendia dar um “banho” de liberalismo no Brasil, Guedes se transformou em avalista das medidas populistas e eleitoreiras encampadas por Bolsonaro, que vão contra tudo o que sempre pregou ao longo de sua trajetória profissional como economista, financista e empresário da área educacional.

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Verniz liberal

Embora Bolsonaro alterne as bordoadas que desfere em seu auxiliar com afagos ocasionais, no melhor estilo “morde e assopra”, Guedes se tornou na prática uma espécie de “troféu” que o presidente preserva na Esplanada dos Ministérios, para tentar manter acesa a chama do liberalismo, que ele simboliza, de olho no apoio dos liberais – ou de uma parte deles, cada vez menor – nas eleições de 2022. 

Muitas das propostas anunciadas por Guedes na campanha eleitoral de 2018, que deram a Bolsonaro um verniz liberal e lhe renderam votos preciosos, não saíram do papel ou foram desfiguradas por determinação do presidente. 

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O parcelamento dos precatórios e a violação do teto de gastos, para viabilizar o pagamento de R$ 400 por mês aos beneficiários do programa Auxílio Brasil, que deverá suceder o Bolsa Família, são apenas os exemplos mais recentes dos sapos que Guedes teve de engolir desde o início do governo e que vão na direção oposta de suas ideias fiscalistas e liberalizantes.

Foi assim também na reforma da Previdência, quando Bolsonaro manteve os privilégios dos militares; na proposta de reforma administrativa encaminhada ao Congresso, que preservou a estabilidade dos atuais servidores; nas privatizações, que não deslancharam; na abertura econômica, torpedeada pela indústria com o apoio do Planalto; e no subsídio concedido ao consumo de óleo diesel para beneficiar os caminhoneiros, entre tantos outros episódios que seria difícil enumerar todos aqui. Para completar o quadro, o presidente ainda decidiu recriar o Ministério do Trabalho e da Previdência, que havia sido incorporado à pasta da Economia no início da atual gestão, para acomodar interesses políticos.

“Zumbi”

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Hoje, a margem de manobra de Guedes e o seu poder no governo se estreitaram dramaticamente. Alguns analistas chegam a comparar o papel desempenhado por ele ao que foi exercido pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello – aquele que afirmou numa live com Bolsonaro que “um manda e o outro obedece”, depois de o presidente ter mandado cancelar o protocolo de intenções que ele havia firmado para a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac. 

Outros passaram a se referir a Guedes como “o ministro da semana que vem” e “Dr. Promessa”, por prometer mundos e fundos e não conseguir levar adiante os seus planos, por oposição do presidente (e do Congresso), cujas decisões são influenciadas por uma espécie de “gabinete paralelo” que atua na economia, formado por um grupo de conselheiros de seu círculo mais próximo.

“O Paulo Guedes começou como ‘posto Ipiranga’, mas Bolsonaro nunca lhe deu combustível”, ironizou recentemente o economista Antônio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura. “O Paulo acreditava que o Bolsonaro iria ouvi-lo. Talvez o maior defeito tenha sido dele mesmo, ao acreditar em um voluntarista.”

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Até entre os liberais, que o tinham como guru até pouco tempo atrás,Guedes se tornou alvo de comentários jocosos. “Ele virou um zumbi”, afirma um representante dos Chicago Oldies, como é chamada a velha guarda de economistas do País formados na Escola de Chicago, o templo do liberalismo global, na qual Guedes, de 72 anos, também estudou.

Inexplicavelmente, para muitos dos que o cultuavam e dos que fizeram parte da equipe econômica e o deixaram pelo caminho, Guedes se recusa a admitir que o seu “prazo de validade” venceu e que não tem muito mais a fazer no governo, sem continuar a passar vexame e a ser desgastado por Bolsonaro.  

Como a personagem Santinha Pureza, da Escolinha do Professor Raimundo, que respondia “eu gostcho” quando o mestre lhe perguntava por que aceitava as agressões do marido, Guedes parece não se incomodar com as pauladas recebidas do presidente e os reveses que sofreu em questões relevantes da economia. “Vamos trabalhar até o fim do governo”, afirmou Guedes, ao lado de Bolsonaro, depois de “agasalhar” a proposta de “furar” o teto, com o objetivo de gerar recursos para viabilizar o novo Auxílio Brasil. 

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Biografia

Aos que o questionam por que se sujeita a isso, ele diz acreditar que ainda pode influenciar o governo de alguma forma, na linha do “ruim comigo, pior ‘sem migo’”. Guedes sabe que, por suas ideias, dificilmente seria ministro de qualquer outro presidente além de Bolsonaro e acredita que, mesmo sem poder fazer quase nada do que pretendia e pretende, o mínimo que fizer já será muito. 

No retreat, no surrender (não retrocederemos, não nos renderemos)”, costuma dizer a seus colaboradores, em inglês mesmo, para mobilizar o pessoal e dar o tom da missão que chamou para si ao assumir o ministério, em 2019. A frase, que virou título de filme de Hollywood, é uma referência à afirmação feita pelo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965) – “We shall never surrender” (nós jamais nos renderemos) –  no famoso discurso que pronunciou no Parlamento britânico, em 1941, após a ocupação da França pela Alemanha, na Segunda Guerra Mundial.

No atual estágio da vida e com um patrimônio milionário, que lhe garantirá uma aposentadoria tranquila, muita tranquila, Guedes parece genuinamente disposto a dar a sua contribuição, dentro do que acredita ser o melhor para o Brasil, relevando todo o resto, apesar das manchas que a sua permanência no governo está deixando em sua reputação e em sua credibilidade. 

É certo que ele jamais teve o respeito devido junto a boa parte dos economistas do País. Por sua visão mais ortodoxa da economia, abraçada por um grupo reduzido de economistas brasileiros, jamais fez parte da “panela” da categoria. Além disso, por não ter produzido um trabalho acadêmico de peso e ter sido, ironicamente, um crítico ácido de vários economistas que trabalharam no Plano Real, pela não incorporação de uma âncora fiscal ao programa, Guedes é depreciado com frequência por muitos de seus pares. Não tem, portanto, muito mais a perder junto ao grupo.

Ainda assim, tem uma biografia a preservar, que o habilitou, de um jeito ou de outro, a se tornar um dos principais porta-vozes do liberalismo econômico no Brasil. Talvez justamente por ter as ideias que tem e ser como é, ele tenha conquistado uma legião de admiradores ao longo de sua vida profissional, em especial no mercado financeiro, entre empresários mais alinhados ao pensamento liberal, entre (uns poucos) estudantes e professores de economia e em certos setores da classe média que se opõem à mentalidade estatista e corporativista que ainda predomina no País.

Mesmo que Guedes tenha perdido muitos apoiadores nos últimos tempos, ao respaldar medidas contrárias à sua pregação liberal e às suas posições históricas em defesa da austeridade fiscal, como o “furo” no teto de gastos defendido por Bolsonaro, não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar, como diz o velho dito popular. 

Nas circunstâncias atuais, é provável que até para fazer o mínimo seja ainda mais complicado para ele do que foi até agora. Se Guedes chegar mesmo ao fim do governo, como afirma ser sua intenção, é grande a probabilidade de ter de fazer novas concessões, comprometendo de vez a sua reputação.

Pouco antes de ele assumir o cargo, ainda na transição de governo, um economista ligado a Marina Silva, ex-senadora, ex-ministra do Meio Ambiente e ex-candidata à Presidência pelo Rede, manifestou a sua preocupação de que o “excesso de liberalismo” de Guedes pudesse prejudicar “a imagem do liberalismo” no Brasil. Mas, pelo andar da carruagem, ele corre o sério risco de ser lembrado mais por ter validado propostas que nada têm a ver com as ideias que sempre defendeu do que pelo pouco de liberalismo que conseguiu implementar em sua passagem pelo governo, apesar de suas boas intenções. Será um fim doloroso para quem se fez como arauto do liberalismo e falava com empolgação de seus planos e dos efeitos positivos que teriam para o Brasil.

O economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, costuma dizer que, no futuro, caberá aos psicólogos e sociólogos explicar a relação do ministro da Economia, Paulo Guedes, com o presidente Jair Bolsonaro. 

Amigo de Guedes e liberal como ele, Franco – que chegou a ser indicado para a presidência do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), mas foi vetado por Bolsonaro por ter participado do governo FHC – expõe com fina ironia o enigma que cerca a permanência do ministro no cargo, em meio às rasteiras em série que leva do chefe.

Para quem acompanha o vai e vem da relação de Guedes com o presidente, é difícil entender o que o faz manter o seu “casamento hétero” com Bolsonaro, enquanto muitos de seus auxiliares já deixaram o governo, seja por terem se desapontado com o rumo das coisas, seja porque foram defenestrados por ordem do “capitão”. 

Jair Bolsonaro, presidente da República, e seu ministro da Economia, Paulo Guedes Foto: Eraldo Peres/ AP

De “Posto Ipiranga” e “superministro” da Economia, que pretendia dar um “banho” de liberalismo no Brasil, Guedes se transformou em avalista das medidas populistas e eleitoreiras encampadas por Bolsonaro, que vão contra tudo o que sempre pregou ao longo de sua trajetória profissional como economista, financista e empresário da área educacional.

Verniz liberal

Embora Bolsonaro alterne as bordoadas que desfere em seu auxiliar com afagos ocasionais, no melhor estilo “morde e assopra”, Guedes se tornou na prática uma espécie de “troféu” que o presidente preserva na Esplanada dos Ministérios, para tentar manter acesa a chama do liberalismo, que ele simboliza, de olho no apoio dos liberais – ou de uma parte deles, cada vez menor – nas eleições de 2022. 

Muitas das propostas anunciadas por Guedes na campanha eleitoral de 2018, que deram a Bolsonaro um verniz liberal e lhe renderam votos preciosos, não saíram do papel ou foram desfiguradas por determinação do presidente. 

O parcelamento dos precatórios e a violação do teto de gastos, para viabilizar o pagamento de R$ 400 por mês aos beneficiários do programa Auxílio Brasil, que deverá suceder o Bolsa Família, são apenas os exemplos mais recentes dos sapos que Guedes teve de engolir desde o início do governo e que vão na direção oposta de suas ideias fiscalistas e liberalizantes.

Foi assim também na reforma da Previdência, quando Bolsonaro manteve os privilégios dos militares; na proposta de reforma administrativa encaminhada ao Congresso, que preservou a estabilidade dos atuais servidores; nas privatizações, que não deslancharam; na abertura econômica, torpedeada pela indústria com o apoio do Planalto; e no subsídio concedido ao consumo de óleo diesel para beneficiar os caminhoneiros, entre tantos outros episódios que seria difícil enumerar todos aqui. Para completar o quadro, o presidente ainda decidiu recriar o Ministério do Trabalho e da Previdência, que havia sido incorporado à pasta da Economia no início da atual gestão, para acomodar interesses políticos.

“Zumbi”

Hoje, a margem de manobra de Guedes e o seu poder no governo se estreitaram dramaticamente. Alguns analistas chegam a comparar o papel desempenhado por ele ao que foi exercido pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello – aquele que afirmou numa live com Bolsonaro que “um manda e o outro obedece”, depois de o presidente ter mandado cancelar o protocolo de intenções que ele havia firmado para a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac. 

Outros passaram a se referir a Guedes como “o ministro da semana que vem” e “Dr. Promessa”, por prometer mundos e fundos e não conseguir levar adiante os seus planos, por oposição do presidente (e do Congresso), cujas decisões são influenciadas por uma espécie de “gabinete paralelo” que atua na economia, formado por um grupo de conselheiros de seu círculo mais próximo.

“O Paulo Guedes começou como ‘posto Ipiranga’, mas Bolsonaro nunca lhe deu combustível”, ironizou recentemente o economista Antônio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura. “O Paulo acreditava que o Bolsonaro iria ouvi-lo. Talvez o maior defeito tenha sido dele mesmo, ao acreditar em um voluntarista.”

Até entre os liberais, que o tinham como guru até pouco tempo atrás,Guedes se tornou alvo de comentários jocosos. “Ele virou um zumbi”, afirma um representante dos Chicago Oldies, como é chamada a velha guarda de economistas do País formados na Escola de Chicago, o templo do liberalismo global, na qual Guedes, de 72 anos, também estudou.

Inexplicavelmente, para muitos dos que o cultuavam e dos que fizeram parte da equipe econômica e o deixaram pelo caminho, Guedes se recusa a admitir que o seu “prazo de validade” venceu e que não tem muito mais a fazer no governo, sem continuar a passar vexame e a ser desgastado por Bolsonaro.  

Como a personagem Santinha Pureza, da Escolinha do Professor Raimundo, que respondia “eu gostcho” quando o mestre lhe perguntava por que aceitava as agressões do marido, Guedes parece não se incomodar com as pauladas recebidas do presidente e os reveses que sofreu em questões relevantes da economia. “Vamos trabalhar até o fim do governo”, afirmou Guedes, ao lado de Bolsonaro, depois de “agasalhar” a proposta de “furar” o teto, com o objetivo de gerar recursos para viabilizar o novo Auxílio Brasil. 

Biografia

Aos que o questionam por que se sujeita a isso, ele diz acreditar que ainda pode influenciar o governo de alguma forma, na linha do “ruim comigo, pior ‘sem migo’”. Guedes sabe que, por suas ideias, dificilmente seria ministro de qualquer outro presidente além de Bolsonaro e acredita que, mesmo sem poder fazer quase nada do que pretendia e pretende, o mínimo que fizer já será muito. 

No retreat, no surrender (não retrocederemos, não nos renderemos)”, costuma dizer a seus colaboradores, em inglês mesmo, para mobilizar o pessoal e dar o tom da missão que chamou para si ao assumir o ministério, em 2019. A frase, que virou título de filme de Hollywood, é uma referência à afirmação feita pelo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965) – “We shall never surrender” (nós jamais nos renderemos) –  no famoso discurso que pronunciou no Parlamento britânico, em 1941, após a ocupação da França pela Alemanha, na Segunda Guerra Mundial.

No atual estágio da vida e com um patrimônio milionário, que lhe garantirá uma aposentadoria tranquila, muita tranquila, Guedes parece genuinamente disposto a dar a sua contribuição, dentro do que acredita ser o melhor para o Brasil, relevando todo o resto, apesar das manchas que a sua permanência no governo está deixando em sua reputação e em sua credibilidade. 

É certo que ele jamais teve o respeito devido junto a boa parte dos economistas do País. Por sua visão mais ortodoxa da economia, abraçada por um grupo reduzido de economistas brasileiros, jamais fez parte da “panela” da categoria. Além disso, por não ter produzido um trabalho acadêmico de peso e ter sido, ironicamente, um crítico ácido de vários economistas que trabalharam no Plano Real, pela não incorporação de uma âncora fiscal ao programa, Guedes é depreciado com frequência por muitos de seus pares. Não tem, portanto, muito mais a perder junto ao grupo.

Ainda assim, tem uma biografia a preservar, que o habilitou, de um jeito ou de outro, a se tornar um dos principais porta-vozes do liberalismo econômico no Brasil. Talvez justamente por ter as ideias que tem e ser como é, ele tenha conquistado uma legião de admiradores ao longo de sua vida profissional, em especial no mercado financeiro, entre empresários mais alinhados ao pensamento liberal, entre (uns poucos) estudantes e professores de economia e em certos setores da classe média que se opõem à mentalidade estatista e corporativista que ainda predomina no País.

Mesmo que Guedes tenha perdido muitos apoiadores nos últimos tempos, ao respaldar medidas contrárias à sua pregação liberal e às suas posições históricas em defesa da austeridade fiscal, como o “furo” no teto de gastos defendido por Bolsonaro, não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar, como diz o velho dito popular. 

Nas circunstâncias atuais, é provável que até para fazer o mínimo seja ainda mais complicado para ele do que foi até agora. Se Guedes chegar mesmo ao fim do governo, como afirma ser sua intenção, é grande a probabilidade de ter de fazer novas concessões, comprometendo de vez a sua reputação.

Pouco antes de ele assumir o cargo, ainda na transição de governo, um economista ligado a Marina Silva, ex-senadora, ex-ministra do Meio Ambiente e ex-candidata à Presidência pelo Rede, manifestou a sua preocupação de que o “excesso de liberalismo” de Guedes pudesse prejudicar “a imagem do liberalismo” no Brasil. Mas, pelo andar da carruagem, ele corre o sério risco de ser lembrado mais por ter validado propostas que nada têm a ver com as ideias que sempre defendeu do que pelo pouco de liberalismo que conseguiu implementar em sua passagem pelo governo, apesar de suas boas intenções. Será um fim doloroso para quem se fez como arauto do liberalismo e falava com empolgação de seus planos e dos efeitos positivos que teriam para o Brasil.

O economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central, costuma dizer que, no futuro, caberá aos psicólogos e sociólogos explicar a relação do ministro da Economia, Paulo Guedes, com o presidente Jair Bolsonaro. 

Amigo de Guedes e liberal como ele, Franco – que chegou a ser indicado para a presidência do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), mas foi vetado por Bolsonaro por ter participado do governo FHC – expõe com fina ironia o enigma que cerca a permanência do ministro no cargo, em meio às rasteiras em série que leva do chefe.

Para quem acompanha o vai e vem da relação de Guedes com o presidente, é difícil entender o que o faz manter o seu “casamento hétero” com Bolsonaro, enquanto muitos de seus auxiliares já deixaram o governo, seja por terem se desapontado com o rumo das coisas, seja porque foram defenestrados por ordem do “capitão”. 

Jair Bolsonaro, presidente da República, e seu ministro da Economia, Paulo Guedes Foto: Eraldo Peres/ AP

De “Posto Ipiranga” e “superministro” da Economia, que pretendia dar um “banho” de liberalismo no Brasil, Guedes se transformou em avalista das medidas populistas e eleitoreiras encampadas por Bolsonaro, que vão contra tudo o que sempre pregou ao longo de sua trajetória profissional como economista, financista e empresário da área educacional.

Verniz liberal

Embora Bolsonaro alterne as bordoadas que desfere em seu auxiliar com afagos ocasionais, no melhor estilo “morde e assopra”, Guedes se tornou na prática uma espécie de “troféu” que o presidente preserva na Esplanada dos Ministérios, para tentar manter acesa a chama do liberalismo, que ele simboliza, de olho no apoio dos liberais – ou de uma parte deles, cada vez menor – nas eleições de 2022. 

Muitas das propostas anunciadas por Guedes na campanha eleitoral de 2018, que deram a Bolsonaro um verniz liberal e lhe renderam votos preciosos, não saíram do papel ou foram desfiguradas por determinação do presidente. 

O parcelamento dos precatórios e a violação do teto de gastos, para viabilizar o pagamento de R$ 400 por mês aos beneficiários do programa Auxílio Brasil, que deverá suceder o Bolsa Família, são apenas os exemplos mais recentes dos sapos que Guedes teve de engolir desde o início do governo e que vão na direção oposta de suas ideias fiscalistas e liberalizantes.

Foi assim também na reforma da Previdência, quando Bolsonaro manteve os privilégios dos militares; na proposta de reforma administrativa encaminhada ao Congresso, que preservou a estabilidade dos atuais servidores; nas privatizações, que não deslancharam; na abertura econômica, torpedeada pela indústria com o apoio do Planalto; e no subsídio concedido ao consumo de óleo diesel para beneficiar os caminhoneiros, entre tantos outros episódios que seria difícil enumerar todos aqui. Para completar o quadro, o presidente ainda decidiu recriar o Ministério do Trabalho e da Previdência, que havia sido incorporado à pasta da Economia no início da atual gestão, para acomodar interesses políticos.

“Zumbi”

Hoje, a margem de manobra de Guedes e o seu poder no governo se estreitaram dramaticamente. Alguns analistas chegam a comparar o papel desempenhado por ele ao que foi exercido pelo ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello – aquele que afirmou numa live com Bolsonaro que “um manda e o outro obedece”, depois de o presidente ter mandado cancelar o protocolo de intenções que ele havia firmado para a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac. 

Outros passaram a se referir a Guedes como “o ministro da semana que vem” e “Dr. Promessa”, por prometer mundos e fundos e não conseguir levar adiante os seus planos, por oposição do presidente (e do Congresso), cujas decisões são influenciadas por uma espécie de “gabinete paralelo” que atua na economia, formado por um grupo de conselheiros de seu círculo mais próximo.

“O Paulo Guedes começou como ‘posto Ipiranga’, mas Bolsonaro nunca lhe deu combustível”, ironizou recentemente o economista Antônio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e da Agricultura. “O Paulo acreditava que o Bolsonaro iria ouvi-lo. Talvez o maior defeito tenha sido dele mesmo, ao acreditar em um voluntarista.”

Até entre os liberais, que o tinham como guru até pouco tempo atrás,Guedes se tornou alvo de comentários jocosos. “Ele virou um zumbi”, afirma um representante dos Chicago Oldies, como é chamada a velha guarda de economistas do País formados na Escola de Chicago, o templo do liberalismo global, na qual Guedes, de 72 anos, também estudou.

Inexplicavelmente, para muitos dos que o cultuavam e dos que fizeram parte da equipe econômica e o deixaram pelo caminho, Guedes se recusa a admitir que o seu “prazo de validade” venceu e que não tem muito mais a fazer no governo, sem continuar a passar vexame e a ser desgastado por Bolsonaro.  

Como a personagem Santinha Pureza, da Escolinha do Professor Raimundo, que respondia “eu gostcho” quando o mestre lhe perguntava por que aceitava as agressões do marido, Guedes parece não se incomodar com as pauladas recebidas do presidente e os reveses que sofreu em questões relevantes da economia. “Vamos trabalhar até o fim do governo”, afirmou Guedes, ao lado de Bolsonaro, depois de “agasalhar” a proposta de “furar” o teto, com o objetivo de gerar recursos para viabilizar o novo Auxílio Brasil. 

Biografia

Aos que o questionam por que se sujeita a isso, ele diz acreditar que ainda pode influenciar o governo de alguma forma, na linha do “ruim comigo, pior ‘sem migo’”. Guedes sabe que, por suas ideias, dificilmente seria ministro de qualquer outro presidente além de Bolsonaro e acredita que, mesmo sem poder fazer quase nada do que pretendia e pretende, o mínimo que fizer já será muito. 

No retreat, no surrender (não retrocederemos, não nos renderemos)”, costuma dizer a seus colaboradores, em inglês mesmo, para mobilizar o pessoal e dar o tom da missão que chamou para si ao assumir o ministério, em 2019. A frase, que virou título de filme de Hollywood, é uma referência à afirmação feita pelo ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965) – “We shall never surrender” (nós jamais nos renderemos) –  no famoso discurso que pronunciou no Parlamento britânico, em 1941, após a ocupação da França pela Alemanha, na Segunda Guerra Mundial.

No atual estágio da vida e com um patrimônio milionário, que lhe garantirá uma aposentadoria tranquila, muita tranquila, Guedes parece genuinamente disposto a dar a sua contribuição, dentro do que acredita ser o melhor para o Brasil, relevando todo o resto, apesar das manchas que a sua permanência no governo está deixando em sua reputação e em sua credibilidade. 

É certo que ele jamais teve o respeito devido junto a boa parte dos economistas do País. Por sua visão mais ortodoxa da economia, abraçada por um grupo reduzido de economistas brasileiros, jamais fez parte da “panela” da categoria. Além disso, por não ter produzido um trabalho acadêmico de peso e ter sido, ironicamente, um crítico ácido de vários economistas que trabalharam no Plano Real, pela não incorporação de uma âncora fiscal ao programa, Guedes é depreciado com frequência por muitos de seus pares. Não tem, portanto, muito mais a perder junto ao grupo.

Ainda assim, tem uma biografia a preservar, que o habilitou, de um jeito ou de outro, a se tornar um dos principais porta-vozes do liberalismo econômico no Brasil. Talvez justamente por ter as ideias que tem e ser como é, ele tenha conquistado uma legião de admiradores ao longo de sua vida profissional, em especial no mercado financeiro, entre empresários mais alinhados ao pensamento liberal, entre (uns poucos) estudantes e professores de economia e em certos setores da classe média que se opõem à mentalidade estatista e corporativista que ainda predomina no País.

Mesmo que Guedes tenha perdido muitos apoiadores nos últimos tempos, ao respaldar medidas contrárias à sua pregação liberal e às suas posições históricas em defesa da austeridade fiscal, como o “furo” no teto de gastos defendido por Bolsonaro, não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar, como diz o velho dito popular. 

Nas circunstâncias atuais, é provável que até para fazer o mínimo seja ainda mais complicado para ele do que foi até agora. Se Guedes chegar mesmo ao fim do governo, como afirma ser sua intenção, é grande a probabilidade de ter de fazer novas concessões, comprometendo de vez a sua reputação.

Pouco antes de ele assumir o cargo, ainda na transição de governo, um economista ligado a Marina Silva, ex-senadora, ex-ministra do Meio Ambiente e ex-candidata à Presidência pelo Rede, manifestou a sua preocupação de que o “excesso de liberalismo” de Guedes pudesse prejudicar “a imagem do liberalismo” no Brasil. Mas, pelo andar da carruagem, ele corre o sério risco de ser lembrado mais por ter validado propostas que nada têm a ver com as ideias que sempre defendeu do que pelo pouco de liberalismo que conseguiu implementar em sua passagem pelo governo, apesar de suas boas intenções. Será um fim doloroso para quem se fez como arauto do liberalismo e falava com empolgação de seus planos e dos efeitos positivos que teriam para o Brasil.

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