BRASÍLIA - A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) emergencial que tramita no Senado, formulada para destravar o auxílio emergencial, pode fazer com o que o governo federal acione gatilhos para contenção de despesas apenas em 2025 e abre brecha para gastos fora do teto ainda neste ano, na avaliação de diferentes técnicos e consultores do Congresso Nacional.
A votação está prevista para quarta-feira, 3, mas ainda não há acordo entre líderes partidários sobre o texto. O teto de gastos é a regra constitucional que impede que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação.
A aprovação da PEC, que enfrenta resistência no Congresso, é uma condição da equipe econômica para lançar uma nova rodada do auxílio. A ideia, já defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, é que sejam pagas quatro parcelas de R$ 250.
O parecer do senador Márcio Bittar (MDB-AC) prevê o acionamento automático de gatilhos, como congelamento de salários de servidores públicos e proibição de novos subsídios, quando a despesa obrigatória superar 95% do total na aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA). De acordo com projeções da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, isso só vai ocorrer em 2025, o que coloca a contenção de despesas em um cenário ainda longínquo para Bolsonaro.
Os gatilhos são apontados pelo Ministério da Economia como condição para aprovar uma nova rodada do auxílio emergencial. O tempo que o Executivo levaria para acioná-los, no entanto, compromete a argumentação, pois o governo estaria liberado a conceder reajustes no ano que vem.
"O fundamental é ter claro que o porcentual de 95%, muito provavelmente, de acordo com nossos cálculos, só seria ultrapassado em 2025. Ou seja, falta o governo explicar o porquê desse porcentual, se a ideia era acionar os gatilhos de imediato", afirma o diretor executivo da IFI, Felipe Salto.
Há uma alternativa na PEC para o governo acionar os gatilhos e congelar salários no ano que vem. Em 2021, essas despesas já estão com crescimento travado. O parecer dá aval para contenção dos gastos com o funcionalismo se um novo estado de calamidade pública for decretado. Caberia exclusivamente ao presidente da República solicitar e ao Congresso aprovar. Nesse caso, o congelamento seria feito por dois anos após o fim do decreto.
Além do critério de 95% das despesas, os gatilhos podem ser acionados em um novo estado de calamidade pública, que deve ser proposto pelo Executivo e aprovado pelo Congresso. Para a Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados, um novo decreto daria amparo para o governo pagar um novo auxílio, pois sustentaria a abertura de um crédito extraordinário no Orçamento, fora do teto de gastos, e ao mesmo tempo permitiria a contenção de despesas com o funcionalismo. A calamidade, por outro lado, liberaria outros gastos, como financiamento a empresas e repasses a Estados e municípios, sem uma série de limitações fiscais.
"Esse dispositivo afasta e dispensa o cumprimento de diversas condições, destacando-se o atingimento de resultados fiscais e aquelas relacionadas à exigência de compensação na geração de novas despesas para seu enfrentamento. Ademais, ampara o argumento da necessidade de abertura de crédito extraordinário", diz nota assinada pelos consultores Eugênio Greggianin e Ricardo Volpe ao avaliar a possibilidade de um decreto de calamidade.
Como alternativa, os técnicos sugerem desvincular a despesa do auxílio e compensá-la com uso do superávit de fundos públicos, acionamentos de gatilhos e contribuição adicional de Estados e municípios.
O parecer da PEC emergencial no Senado autoriza expressamente o pagamento de uma nova rodada do auxílio em 2021 - que terá de ser criado por uma nova lei - com a abertura de um crédito extraordinário fora do teto de gastos, da regra de ouro e da meta de resultado primário. O texto vai além e dispensa a necessidade de justificar a imprevisibilidade e a urgência exigidas na Constituição para esse tipo de despesa. O dispositivo foi inserido para dar tranquilidade jurídica ao governo, mas é questionado em uma nota técnica da Consultoria de Orçamento do Senado.
"É inevitável que o dispositivo cause estranheza, podendo a solução proposta vir a ser futuramente questionada. O crédito a ser editado, assim, poderia ser interpretado como não sendo materialmente extraordinário, não produzindo, portanto, o resultado desejado de exclusão do cômputo dos limites do teto de gastos", diz o texto assinado pelos consultores Fernando Bittencourt, Vinícius do Amaral, Marcel Pereira e Carlos de Carvalho.
A consultoria do Senado argumenta que o auxílio pode ser aberto por crédito extraordinário sem aprovação de qualquer PEC. A equipe econômica, porém, teme um questionamento no futuro e até crime de responsabilidade. Como alternativa, os consultores do Senado sugerem a elaboração de uma proposta para tirar essa despesa específica do teto de gastos, como ocorreu em 2019 com a repartição de recursos arrecadados com os leilões do pré-sal.
Há ainda uma terceira possibilidade de acionar os gatilhos na PEC, mas é opcional. União, Estados e municípios poderiam se valer do mecanismo quando as despesas superarem 95% da arrecadação. A projeção da IFI é que 14 Estados estão nessa situação, conforme parâmetros do Tesouro Nacional. Na prática, porém, cada governo estadual aponta a metodologia ao classificar despesas correntes e poderia manipular os dados para conter os gastos.
Teto de gastos
O rigor com o teto de gastos, que limita o crescimento de despesas à inflação do ano anterior, é posto em xeque com o relatório da PEC emergencial. A mudança na regra é questionada por técnicos do Congresso desde a apresentação do parecer. A proposta aciona os gatilhos do teto, entre eles o congelamento de salários, quando as despesas obrigatórias superarem 95% do total de despesas primárias na aprovação da lei orçamentária no Congresso. A medida altera o mecanismo atual, que aciona as medidas de contenção se o teto for rompido durante a execução do orçamento, ao longo do ano.
Deixar o acionamento de gatilhos, que é a punição para o rompimento do teto, apenas para a fase de aprovação do Orçamento poderia levar o governo federal a descumprir a regra ao longo do ano sem ter de acionar as medidas de contenção, abrindo um precedente perigoso. "No curto prazo, a mudança pode permitir dar vazão ao estoque de restos a pagar, levando a pagamentos expressivos acima do teto sem que o gatilho seja acionado", diz a nota da consultoria do Senado.
De acordo com esse entendimento, o governo poderia executar despesas que não foram pagas em anos anteriores, os chamados "restos a pagar", fora do teto. Para 2021, o volume de restos a pagar é de R$ 227,9 bilhões. Só de emendas parlamentares, são R$ 28,6 bilhões. Pelas regras atuais, esse montante necessariamente precisa respeitar o teto, ou seja, disputa o mesmo espaço orçamentário com as despesas deste ano.
O argumento do Executivo para mexer na regra é limitar o crescimento de despesas obrigatórias, como salários, e abrir espaço para discricionárias, aquelas destinadas a investimentos. A estratégia foi exposta pelo senador Marcio Bittar na justificativa do parecer. A intenção, de acordo com ele, é antecipar os gatilhos para o controle das despesas primárias obrigatórias "a fim de se preservar um nível mínimo de execução de despesas discricionárias concomitante à manutenção do teto de gastos".
O diretor executivo da IFI, Felipe Salto, alerta que há um risco para o governo nesse caminho, pois as discricionárias também precisam respeitar o teto. Mesmo sem a punição dos gatilhos para o descumprimento do teto, o presidente da República poderia ser alvo de um processo de impeachment no futuro por furar o teto. "Tira a sanção. Ou seja, se interpretar que aumento de discricionária pode, minha avaliação é que, se esse fato ocasionar rompimento do teto, o governo vai ter um abacaxi na mão", afirmou.