O Plano Real, que completa 30 anos nesta segunda-feira, 1º, foi o marco inicial do Sistema Financeiro Nacional de hoje na visão do copresidente do conselho de administração do Itaú Unibanco, Pedro Moreira Salles. O controle da inflação tornou o crédito a principal atividade do setor, sinalizando a entrada da economia em uma rota mais saudável que a dos 15 anos anteriores.
“Há um sistema financeiro pré-real e um sistema financeiro pós-real”, diz Moreira Salles ao Estadão/Broadcast. À época, ele era conselheiro do Unibanco, um dos maiores bancos privados do Brasil. Tornaria-se presidente do banco em 2004. Em 2008, o Unibanco fundiu-se ao Itaú, formando o Itaú Unibanco, que hoje é o maior banco da América Latina, com R$ 2,8 trilhões em ativos.
O Unibanco foi um dos agentes da consolidação do setor no pós-real. Em 1995, assumiu a parte saudável do Banco Nacional, um dos maiores do País, mas que tivera o balanço inflado por uma fraude, em uma das insolvências mais rumorosas de um banco após o plano. O Unibanco comprou ainda o Bandeirantes, em 2000, e disputou mas não levou os leilões do Banestado e do Banespa, ambos em 2000. Além disso, tentou comprar o Banco Real, de capital privado, em 1998.
A consolidação foi o segundo efeito do plano sobre os bancos. O primeiro foi o fim do chamado lucro inflacionário, que os bancos obtinham através do rendimento das aplicações de depósitos dos clientes em ativos corrigidos pela inflação. Todos os bancos tiveram de reduzir custos e crescer no crédito para recuperar receitas, mas a falta de prática fez com que muitos tropeçassem.
“Ninguém sabia dar crédito, porque a inflação estava presente de forma doentia na economia havia 15 anos”, afirma Moreira Salles. Ao longo dos anos seguintes, os bancos desenvolveram modelos de análise e avaliação dos clientes, que permitiram que o crédito fosse ampliado tanto em volume quanto em prazo.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
Na época do Plano Real, o senhor estava no conselho de administração do Unibanco. Como foi para o banco?
O Plano Real era o quinto que o banco enfrentava, havia alguma experiência. A diferença é que acreditávamos que havia um mecanismo que poderia resultar no sucesso do plano. Os outros tiveram vida curta, havia um cenário de inflações altas que de repente eram interrompidas. Isso gerava um problema nos bancos, que tentavam fazer ajustes, mas a inflação voltava. No caso do real, parecia que seria bem-sucedido porque havia o aprendizado do passado, e porque, ao contrário dos outros, não houve congelamento de preços. Tudo foi anunciado e a população entendeu. Mesmo em relação ao mecanismo de difícil compreensão, a URV, que era a indexação da moeda à própria moeda, a adaptação foi rápida e, em 1º de julho de 1994, quando veio o plano, pareceu ter resiliência e permanência. O banco teve de se adaptar. Dizia-se que os bancos eram sócios da inflação, sócios involuntários, mas eles se ajustaram ao longo do tempo a conseguir receita pelo lado dos passivos, o famoso float. O grande sócio da inflação era o governo. Os bancos desenvolveram mecanismos de captação, e o residual não repassado de inflação fazia com que funcionassem. Quando acaba a inflação, perde-se a grande fonte de receita e tem de se olhar para o crédito. Muitos bancos tinham se fragilizado pelos vários planos, pela parada súbita da fonte de receita e pela tentativa de dar crédito. Ninguém sabia dar crédito, porque a inflação estava presente de forma doentia na economia havia 15 anos. Como houve perda de receita, os bancos tiveram de ajustar o custo, e o banco fez um grande ajuste de estrutura, em que pese que já fizesse desde o Plano Cruzado. Alguns bancos chegaram ao Plano Real em melhor estado que outros. Foi um choque de realidade grande para o sistema financeiro, e houve uma enorme consolidação. O real não era só uma reforma monetária, mas também uma tentativa de estancar caminhos de emissão de moeda. Os bancos estaduais eram um grande problema, então foram encampados ou vendidos. Entre os seis maiores bancos privados, até 1996, três foram absorvidos, fechados ou vendidos. Ficou claro que para sermos competitivos e ficarmos no mercado, a consolidação era incontornável, e daí surgiram as conversas que, em 1995, resultaram na operação do Nacional. Não eram as únicas que estávamos tendo, mas o caso do Nacional se tornou crítico e precisava de uma operação rápida. Por estarmos conversando anteriormente com os controladores e, quando a situação se agravou, com o Banco Central, fizemos a operação.
Além da escala, o que o Nacional trouxe ao Unibanco?
O maior valor era a base de clientes, a escala. A dimensão dos bancos estava muito vinculada à rede de agências. O Nacional tinha mais ou menos o mesmo número de agências do Unibanco, então, dobramos a rede de uma hora para a outra. Em muitos lugares havia sobreposição, mas em muitos outros, não. Nos tornamos o primeiro banco no Rio de Janeiro, mudamos muito nossa posição em São Paulo, e o Nacional tinha uma presença mais forte em Minas Gerais do que nós. O Nacional tinha um problema sério, que era a fraude: parte do crédito que estava no balanço não existia. Não era uma operação rentável. Sem a carteira de crédito fictícia, vieram títulos públicos. Logo, não havia margem. Transformar isso em crédito de verdade, com spread, foi um processo árduo. Reduzimos não só a rede de agências, mas o número de funcionários. A operação ao final rodava com cerca de 65% da soma original de pessoas.
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Foi esse processo que fez com que o Unibanco não fosse tão forte na privatização de bancos estaduais quanto outros bancos privados?
Teve duas coisas. Uma foi a digestão do Nacional, que levou uns três anos. E víamos os bancos estaduais com uma grande interrogação sobre o quê se estava comprando e como se fazia o turnaround. Entramos em dois leilões, mas não levamos. Entramos no leilão do Banestado, que o Itaú levou, e no do Banespa, em que fomos o segundo colocado. Nós estávamos interessados no Banespa a um determinado valor, mas a proposta do Santander foi bem mais alta. E sempre perseguimos mais operações com bancos privados. Em 1998, estávamos prontos para buscar mais escala. Negociamos bastante com o doutor Aloysio de Faria o Banco Real, e chegamos muito próximos de fechar, mas o ABN fez uma proposta maior.
Em que momento o sr. diria que os bancos aprenderam a dar crédito após o impacto inicial do plano?
Foi um longo processo. A maneira pela qual hoje se analisa e dá crédito, com modelos, não tem nada a ver com o que se tinha. Fazia-se empréstimos de muito curto prazo, crédito imobiliário e financiamento de automóvel praticamente não existiam. Havia algum crédito de capital de giro para grandes empresas, mas sempre curto, e se fosse longo era repasse de linha do BNDES. O crédito massificado foi tentativa e erro. Foi preciso criar áreas de crédito, implantar credit scoring, fazer o beabá.
Quando vocês começaram a sentir na economia o impacto do surgimento dessas linhas mais longas?
Nossa reciclagem após a aquisição dos ativos e passivos do Nacional começou a gerar algum volume após dois ou três anos. Mas todo mundo era muito consciente dos riscos de exposição a créditos em que não havia uma relação antiga com os clientes. Quando se tentou sair dos problemas colocados com o fim da inflação, seja no Plano Cruzado, no Bresser ou no Collor, todo mundo tropeçou, saiu dando crédito e teve inadimplência além do esperado. Quando se chega ao Plano Real, boa parte dos bancos estava escolada. Os bancos que permaneceram foram à grande escala, ficaram mais eficientes e entraram no crédito tentando trazer o que havia de mais moderno para as modelagens e o entendimento do risco. Se o Plano Real tivesse sido o primeiro, provavelmente teria sido mais difícil a adaptação. Não quer dizer que tenha sido fácil, mas o fato de que tinha havido Cruzado, Bresser, Verão e Collor antes de chegar ao Plano Real nos educou, e nos permitiu entender de que maneira gerenciar o banco.
Para além do crédito, quando vocês perceberam que o plano tinha dado certo?
Foi fácil entender que o plano estava bem-sucedido do ponto de vista da estabilidade da moeda: passaram seis meses, nove, 12, e tudo caminhava na direção certa. E não tinha o truque do congelamento de preço, que tinha acontecido em todos os outros, ou no caso do Plano Collor, uma enorme restrição de acesso à moeda. Nestes casos, em seis meses havia inflação de novo. O Real não foi assim, mas colocou outros problemas. Ele dependia de uma âncora cambial, e havia dúvida se a inflação voltaria se fosse necessário soltar o câmbio, como aconteceu quase cinco anos depois. Mas a reforma foi muito além da moeda. Houve um enorme esforço de privatização, criação de agências reguladoras, e mais tarde, o tripé macroeconômico, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Lançou-se as bases de um Estado muito mais moderno.
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Então, o sr. diria que o real trouxe a consciência de que havia uma série de reformas que se precisava fazer na economia?
Sem dúvida. Uma agenda ainda incompleta passados 30 anos, mas havia uma visão de que tipo de País iríamos construir, o papel do Estado dentro dele. Tinha a evidência da doença na inflação, e esse era o alvo. As circunstâncias foram muito particulares. Havia um departamento de economia no Rio onde as pessoas se conheciam, discutiam a inflação sob uma ótica acadêmica. Alguns tinham participado de planos anteriores. O Fernando Henrique, ao virar ministro da Fazenda, e acho que o Persio Arida disse isso recentemente, combinava uma coisa rara: era um intelectual que circulava nesse mundo, entendia quem estava discutindo o tema e como montar um time de primeiríssimo nível; e ao mesmo tempo era um político experimentado, que sabia que tinha de convencer o Congresso, formar maiorias. E o real resistiu. Passou por várias crises, pela necessidade de flutuar o câmbio, e ninguém sabia se a inflação voltaria. Via política monetária, já com a Armínio Fraga no Banco Central e o lançamento do tripé, das metas de inflação e a criação do Copom, manteve-se a inflação em níveis relativamente baixos. Há um sistema financeiro pré-real e um sistema financeiro pós-real. Cresci vendo minha moeda mudar de nome, cortar zeros. Para quem cresceu nos anos 1970, 1980, parecia normal. Você recebia uma nota de 50.000, depois ela vinha com os zeros cortados e os 50.000 viravam 50. Passava um tempo, os 50 viravam 500, depois 5.000. Era uma loucura, e todo mundo estava anestesiado, não entendendo a natureza do problema, monetário e fiscal. Por isso a privatização, a reforma do Estado, para gerar a percepção de que não haveria um problema de insolvência. Foi um momento extraordinário, da junção de pessoas muito particulares, muito técnicas e alguém com uma habilidade de comunicação política, que é o Fernando Henrique. É para festejar os 30 anos.
O sr. disse que tem uma parte do trabalho do plano que ainda não foi feita. O que faltou?
Faltou o que está todo dia nos jornais. Não é uma questão de Estado grande ou pequeno, mas sim de qual é o Estado eficiente que precisamos, como ele atende as enormes necessidades que o País tem do ponto de vista social, mas entendendo que há um tamanho certo. Tem de se buscar, como em qualquer ente econômico, um equilíbrio. Isso exige pensar o que é necessário e o que não é. Temos reformas inacabadas e discussões incompletas, e elas são muito difíceis. Mas para o Brasil avançar, esse problema vai ter de ser enfrentado.