O RenovaBio começou com um recorde. Da apresentação do projeto na Câmara dos Deputados até sua aprovação pelo Senado, foram apenas 28 dias. Foi esse o tempo gasto para colocar em pé as fundações de um dos instrumentos mais importantes de que o Brasil dispõe para cumprir o compromisso que assumiu como parte do Acordo de Paris, assinado em 2015, de reduzir suas emissões de CO2 em 37%.
A ideia é limpar a matriz de transportes estimulando a troca de combustíveis fósseis por biocombustíveis. A ambição do governo brasileiro, declarada no Diálogo de Alto Nível da ONU sobre Energia, é reduzir em 10% a intensidade de carbono do setor até 2030.
Pelo desenho do programa, isso é feito por meio de títulos negociáveis chamados Créditos de Descarbonização (CBios), que equivalem a uma tonelada de CO2 cada. De um lado, produtores e importadores de biocombustíveis, devidamente certificados pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), emitem CBios na mesma proporção que seus produtos se descarbonizam. Do outro, os distribuidores têm de comprá-los de acordo com metas decenais fixadas pelo governo. Isso fecha o ciclo.
O RenovaBio tornou a descarbonização um negócio bilionário. Pelas contas do Ministério de Minas e Energia (MME), desde que passou a ser negociado na B3 em 2020, a comercialização de CBios já movimentou R$ 8,5 bilhões.
Segundo o secretário do MME, Pietro Mendes, formatar o programa como um mecanismo de mercado foi uma opção. “Os recursos do RenovaBio estimulam a eficiência ambiental dos produtores de biocombustíveis. Um imposto de carbono não permitiria isso”, explica. Ele acrescenta ainda que, até agora, 280 fabricantes de etanol, 37 de biodiesel e quatro de biometano já aderiram ao mercado de carbono.
Impasse
No início do ano passado, o governo do então presidente Jair Bolsonaro prorrogou em nove meses o prazo para que as distribuidoras comprassem os 36,7 milhões de CBios, volume total estipulado pela ANP como meta para 2022. Mesmo assim, 50 empresas – de um total de 141 – não conseguiram fechar as contas. E não foi por falta de CBios no mercado.
“O RenovaBio é um belo programa e uma bela ideia, mas é preciso fazer ajustes”, opina o sócio-consultor da Schmidt Valois Advogados e ex-diretor da ANP, Aurélio Amaral. Foi ele quem coordenou a formatação do programa quando ainda estava na agência reguladora.
Uma das questões é que, sozinho, o RenovaBio não garante o aumento da oferta de biocombustíveis necessário para cobrir as metas. Cerca de 85% dos CBios vêm do etanol, biocombustível que viu sua oferta recuar de 35,3 bilhões de litros em 2019 para 30,7 bilhões de litros no ano passado – queda de 13%
O motivo, segundo Aurélio, é que o mercado de açúcar tem remunerado melhor as usinas. Com menos CBios, os preços sobem. “Você artificializa o preço do CBio e gera efeito inflacionário”, completa Aurélio.
O impacto disso, segundo a Federação Brasilcom, é que o litro dos combustíveis nos postos pode ficar de sete a 12 centavos mais caro. “O custo de aquisição dos CBios tem variado muito, então é um exercício difícil”, reconhece Sérgio Massilon, diretor institucional da entidade.
Sob esse impasse, muitas empresas judicializaram a questão. A Brasilcom contabiliza 16 liminares e 30 processos judiciais contra o RenovaBio. A resposta contra o que Pietro qualifica como “um movimento” de distribuidoras contrárias ao programa tem sido em espécie. “O MME tem atuado com uma estratégia de defesa judicial. Nós movimentamos a Advocacia-Geral da União e temos feito um esforço para explicar o RenovaBio para o Judiciário”, afirma o servidor.
Alívio
O setor pode estar para receber um alívio. Em meados de setembro, o MME publicou as metas propostas de aquisição de CBios para o decênio entre 2024 e 2033. Embora os números finais ainda precisem ser aprovados pelo Conselho Nacional de Política Energética, já é possível dizer que eles diminuirão. A meta de 2024, por exemplo, foi revista de 50,8 milhões para 38,8 milhões de CBios. Os cortes se estendem por toda a década fazendo com que a demanda total de CBios fique em 570 milhões de unidades – 29% menos que as previstas no ciclo 2023/2032.
Pietro explica que os valores ficaram menores porque o modelo do RenovaBio considerava um crescimento maior da frota nacional e, portanto, do consumo de combustíveis e uma penetração menor dos veículos elétricos. “Esses três fatores se somam para reduzir a quantidade de CBios necessários para atingirmos o objetivo de redução da intensidade de carbono”, diz. “Isso ajuda a reduzir o risco de um déficit de CBios”, complementa
Pode não ser o suficiente. “Mesmo com a recente proposta de diminuição das metas em análise no MME, é nossa estimativa que a falta de disponibilidade de CBios continue em níveis que contribuirão para a elevação contínua de seus custos de aquisição”, garante Sérgio.
Para Aurélio, foi um “erro de origem” focar nos distribuidores. “Outros programas colocam essa responsabilidade sobre os produtores dos combustíveis, ou seja, as refinarias e os importadores. São eles que têm melhores condições para absorver esse custo. O RenovaBio ficou desbalanceado”, aponta.
Tanto Aurélio quanto Sérgio concordam que o RenovaBio não deveria ser isolado de outros mercados de carbono. “O CBio precisa se tornar um verdadeiro crédito de carbono. Sua metodologia deveria ser aderente a outros padrões”, afirma Aurélio.
Com o Congresso avançando num projeto que prevê a criação de um mercado de carbono nacional, essa fungibilidade é uma possibilidade admitida pelo MME. “Isso está no nosso radar. Mas o mercado de carbono nacional ainda precisa ser colocado de pé e não tem como fazermos isso até sabermos as regras”, encerra Pietro.