Americanas: prejuízo da operação digital pode ter motivado fraude, indicam documentos


Ata de reunião em dezembro de 2022 mostra preocupação do comando da empresa com ‘queima de caixa’; união entre os braços físico e digital da companhia não teve retorno esperado

Por Talita Nascimento e Matheus Piovesana

A origem da crise da Americanas parece estar na B2W, um “filhote digital” da empresa que nunca parou de pé, segundo documentos aos quais o Estadão/Broadcast teve acesso. A rede varejista entrou em recuperação judicial em janeiro de 2023 após a descoberta de um rombo contábil de R$ 20 bilhões.

A ata de uma reunião entre o então futuro CEO da Americanas, Sergio Rial, os ex-diretores Anna Saicali, Marcio Cruz, Timótheo Barros e o então futuro diretor financeiro da companhia, André Covre, em 2 de dezembro de 2022, mostra que o comando da varejista sabia que a operação digital não ia bem. Trechos do depoimento do ex-CEO Miguel Gutierrez à Comissão Mobiliária de Valores (CVM) detalham esses problemas. Procurada, a Americanas afirmou que não comentaria o teor dos documentos.

A ata que resume a reunião de dezembro afirma que os anos de 2023 e de 2024 seriam decisivos para a Americanas e para o setor. “Não poderemos ter a queima de caixa que estamos tendo”, diz um trecho.

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Na sequência, traça-se uma estratégia: “Precisamos enxergar com nitidez que não poderemos ter uma companhia só digital. Temos que pensar no portfólio como um todo, reequilibrando as contas. Temos que dar um salto no físico e pensar mais nas categorias do digital (remodelar as categorias), com Ame (banco digital do grupo) permeando tudo isso, porque é o que rentabiliza”.

O grupo chega à conclusão de que, dali em diante, a área financeira precisaria levantar “a bandeira vermelha” sempre que necessário. Depois, um comentário mostra um orçamento mais curto: “Importante levarmos em consideração o asset (ativo) da empresa achatado, fizemos um follow on espetacular no momento certo, mas gastamos o dinheiro todo. Agora precisamos do dinheiro e temos que ir para a ‘guerra’”.

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Rombo bilionário nas demonstrações financeiras das Lojas Americanas foi revelado em janeiro de 2023 Foto: Taba Benedicto / Estadão

A ata deixa evidente parte dos fundamentos da crise: a operação digital da empresa era um problema e precisava ser redesenhada. O documento aponta direcionamentos: a necessidade de se criar uma estratégia de crescimento sustentável e a proposta de repensar categorias “que só geram prejuízos”, mas “com cautela, sem maluquice, estudando detalhadamente as implicações de cada decisão”.

A mesma ata foi usada por dois lados na Justiça. Os advogados do Bradesco, um dos credores da Americanas, citou trechos do documento em uma manifestação no processo em que pede a produção antecipada de provas contra diretores da companhia, membros do conselho de administração e os principais acionistas (Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira). Para o Bradesco, o conhecimento de Rial sobre a situação financeira da varejista é um fato novo que precisa ser avaliado.

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Na visão da defesa da Americanas, porém, que juntou em agravo no mesmo processo a íntegra da ata, o que fica exposto é simplesmente o planejamento do então futuro CEO, Rial, com base nos dados do terceiro trimestre de 2022, que haviam sido divulgados ao mercado.

Uma década de prejuízo

A cronologia dos problemas financeiros da B2W fica mais clara com trechos do depoimento de Miguel Gutierrez, CEO da companhia até 2022, prestado em março à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e aos quais o Estadão/Broadcast teve acesso.

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Como a Lojas Americanas controlava a B2W, a operação das lojas físicas financiava a operação digital mesmo quando as empresas eram separadas, uma dependência que ficou clara no início da década passada.

Entre 2010 e 2011, a B2W enfrentou uma crise de credibilidade por não entregar no prazo os produtos comprados pelos clientes em seus sites. Gutierrez afirmou no depoimento que esse “colapso” levou a uma mudança na operação: a companhia internalizou áreas que antes eram terceirizadas, como a distribuição de mercadorias, o que reduziu a rentabilidade.

Naquele 2011, a B2W fez um aumento de capital de R$ 1 bilhão. Desse valor, a Lojas Americanas entrou com 64%. De acordo com Gutierrez, a partir desse ponto, é possível que a Americanas tenha sido obrigada a recorrer aos bancos para adiantar os pagamentos aos fornecedores, em uma das operações relacionadas à fraude descoberta neste ano, o risco sacado. Ele afirmou não conhecer bem o “desenho” da operação, mas disse que antes a rede fazia o adiantamento com o próprio caixa. As necessidades da B2W reduziram o espaço para a operação usar capital próprio.

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O último ano em que a B2W teve lucro foi 2010. Dali em diante, a companhia fecharia todos os anos no vermelho. Em 2021, o resultado voltou para o azul, mas já reunia as operações física e digital. No final de 2020, último ano de B2W independente, o prejuízo acumulado somava R$ 2,8 bilhões.

Os aportes na operação digital eram constantes. Em 2020, a Lojas Americanas levantou cerca de R$ 7,9 bilhões em uma oferta de ações, dos quais cerca de R$ 3 bilhões foram para a B2W.

“A cada dois anos, a gente botava algum dinheiro. Na medida em que vai crescendo muito a venda, você termina tendo mais demanda”, disse Gutierrez à CVM. “Até setembro de 2022, desde a combinação (dos negócios), gastou-se R$ 10 bilhões”, disse ele, afirmando que os gastos envolveram compra de empresas e investimentos na combinação dos negócios.

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Fusão problemática

Gutierrez afirma que a união entre os braços físico e digital, concluída em julho de 2021, gerou problemas operacionais e não trouxe o resultado esperado no mercado financeiro. O maior nó, segundo ele, era que a Lojas Americanas tinha uma operação muito diferente da B2W, tanto nos produtos vendidos quanto na legislação tributária.

Gutierrez afirmou que a fusão foi rejeitada algumas vezes, mas foi em frente quando o comando da companhia entendeu que as lojas físicas eram subavaliadas pelo investidor das ações da Lojas Americanas, que como controladora da B2W, também refletia o valor de mercado da fatia que detinha no “filhote” digital. A meta, segundo ele, era que a rede chegasse a valer R$ 150 bilhões, valor de mercado que a rival Magazine Luiza alcançou durante a pandemia da covid-19.

Houve quem previsse o caos da junção sobre a estrutura financeira. “Foi interessante que o nosso maior investidor saiu do papel depois da mudança. Fui lá conversar com ele e ele disse: ‘O digital no mundo inteiro perde dinheiro. Eu gostava muito das lojas físicas. Vocês estão falando agora que a nova companhia tem 76% no mundo digital e que daqui a cinco anos terá 90% do mundo digital. Você vai perder dinheiro ‘pra burro’’. Ele tinha 12% do papel e foi embora com esse argumento”, relatou Gutierrez.

A fraude

Ainda sem conclusões do comitê de investigação independente que atua na Americanas, a atual gestão da rede afirmou, por meio de documentos entregues à CVM e apresentados à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados, que durante as gestões anteriores, a empresa fraudou seus resultados por anos.

“A fraude é uma fraude de resultados”, afirmou o atual CEO da companhia, Leonardo Coelho, na CPI em junho. A companhia, disse, inflava o Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) graças a contratos falsos de verbas de publicidade. Para que o caixa ficasse compatível aos resultados forjados, a companhia usou linhas de crédito para o pagamento de fornecedores.

Ainda não ficou claro, porém, a razão da necessidade de inflar resultados. No entanto, quando se olha para uma operação digital que consumia os recursos da empresa-mãe e deu ainda mais gastos depois de uma fusão malsucedida, parte dos motivos começa a ficar mais clara.

Os problemas do digital estão longe de serem resolvidos em meio à recuperação judicial da empresa, que tenta renegociar mais de R$ 40 bilhões em dívidas.

“A operação tem de ser rentável e, hoje, precisa de ajustes para isso”, disse Coelho ao Estadão/Broadcast, em março, quando o plano de recuperação, que aguarda aprovação, foi anunciado. “Se não recuperar, terei de resolver de outro jeito. Carregar uma operação deficitária não é uma opção para uma empresa em recuperação judicial.”

A origem da crise da Americanas parece estar na B2W, um “filhote digital” da empresa que nunca parou de pé, segundo documentos aos quais o Estadão/Broadcast teve acesso. A rede varejista entrou em recuperação judicial em janeiro de 2023 após a descoberta de um rombo contábil de R$ 20 bilhões.

A ata de uma reunião entre o então futuro CEO da Americanas, Sergio Rial, os ex-diretores Anna Saicali, Marcio Cruz, Timótheo Barros e o então futuro diretor financeiro da companhia, André Covre, em 2 de dezembro de 2022, mostra que o comando da varejista sabia que a operação digital não ia bem. Trechos do depoimento do ex-CEO Miguel Gutierrez à Comissão Mobiliária de Valores (CVM) detalham esses problemas. Procurada, a Americanas afirmou que não comentaria o teor dos documentos.

A ata que resume a reunião de dezembro afirma que os anos de 2023 e de 2024 seriam decisivos para a Americanas e para o setor. “Não poderemos ter a queima de caixa que estamos tendo”, diz um trecho.

Na sequência, traça-se uma estratégia: “Precisamos enxergar com nitidez que não poderemos ter uma companhia só digital. Temos que pensar no portfólio como um todo, reequilibrando as contas. Temos que dar um salto no físico e pensar mais nas categorias do digital (remodelar as categorias), com Ame (banco digital do grupo) permeando tudo isso, porque é o que rentabiliza”.

O grupo chega à conclusão de que, dali em diante, a área financeira precisaria levantar “a bandeira vermelha” sempre que necessário. Depois, um comentário mostra um orçamento mais curto: “Importante levarmos em consideração o asset (ativo) da empresa achatado, fizemos um follow on espetacular no momento certo, mas gastamos o dinheiro todo. Agora precisamos do dinheiro e temos que ir para a ‘guerra’”.

Rombo bilionário nas demonstrações financeiras das Lojas Americanas foi revelado em janeiro de 2023 Foto: Taba Benedicto / Estadão

A ata deixa evidente parte dos fundamentos da crise: a operação digital da empresa era um problema e precisava ser redesenhada. O documento aponta direcionamentos: a necessidade de se criar uma estratégia de crescimento sustentável e a proposta de repensar categorias “que só geram prejuízos”, mas “com cautela, sem maluquice, estudando detalhadamente as implicações de cada decisão”.

A mesma ata foi usada por dois lados na Justiça. Os advogados do Bradesco, um dos credores da Americanas, citou trechos do documento em uma manifestação no processo em que pede a produção antecipada de provas contra diretores da companhia, membros do conselho de administração e os principais acionistas (Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira). Para o Bradesco, o conhecimento de Rial sobre a situação financeira da varejista é um fato novo que precisa ser avaliado.

Na visão da defesa da Americanas, porém, que juntou em agravo no mesmo processo a íntegra da ata, o que fica exposto é simplesmente o planejamento do então futuro CEO, Rial, com base nos dados do terceiro trimestre de 2022, que haviam sido divulgados ao mercado.

Uma década de prejuízo

A cronologia dos problemas financeiros da B2W fica mais clara com trechos do depoimento de Miguel Gutierrez, CEO da companhia até 2022, prestado em março à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e aos quais o Estadão/Broadcast teve acesso.

Como a Lojas Americanas controlava a B2W, a operação das lojas físicas financiava a operação digital mesmo quando as empresas eram separadas, uma dependência que ficou clara no início da década passada.

Entre 2010 e 2011, a B2W enfrentou uma crise de credibilidade por não entregar no prazo os produtos comprados pelos clientes em seus sites. Gutierrez afirmou no depoimento que esse “colapso” levou a uma mudança na operação: a companhia internalizou áreas que antes eram terceirizadas, como a distribuição de mercadorias, o que reduziu a rentabilidade.

Naquele 2011, a B2W fez um aumento de capital de R$ 1 bilhão. Desse valor, a Lojas Americanas entrou com 64%. De acordo com Gutierrez, a partir desse ponto, é possível que a Americanas tenha sido obrigada a recorrer aos bancos para adiantar os pagamentos aos fornecedores, em uma das operações relacionadas à fraude descoberta neste ano, o risco sacado. Ele afirmou não conhecer bem o “desenho” da operação, mas disse que antes a rede fazia o adiantamento com o próprio caixa. As necessidades da B2W reduziram o espaço para a operação usar capital próprio.

O último ano em que a B2W teve lucro foi 2010. Dali em diante, a companhia fecharia todos os anos no vermelho. Em 2021, o resultado voltou para o azul, mas já reunia as operações física e digital. No final de 2020, último ano de B2W independente, o prejuízo acumulado somava R$ 2,8 bilhões.

Os aportes na operação digital eram constantes. Em 2020, a Lojas Americanas levantou cerca de R$ 7,9 bilhões em uma oferta de ações, dos quais cerca de R$ 3 bilhões foram para a B2W.

“A cada dois anos, a gente botava algum dinheiro. Na medida em que vai crescendo muito a venda, você termina tendo mais demanda”, disse Gutierrez à CVM. “Até setembro de 2022, desde a combinação (dos negócios), gastou-se R$ 10 bilhões”, disse ele, afirmando que os gastos envolveram compra de empresas e investimentos na combinação dos negócios.

Fusão problemática

Gutierrez afirma que a união entre os braços físico e digital, concluída em julho de 2021, gerou problemas operacionais e não trouxe o resultado esperado no mercado financeiro. O maior nó, segundo ele, era que a Lojas Americanas tinha uma operação muito diferente da B2W, tanto nos produtos vendidos quanto na legislação tributária.

Gutierrez afirmou que a fusão foi rejeitada algumas vezes, mas foi em frente quando o comando da companhia entendeu que as lojas físicas eram subavaliadas pelo investidor das ações da Lojas Americanas, que como controladora da B2W, também refletia o valor de mercado da fatia que detinha no “filhote” digital. A meta, segundo ele, era que a rede chegasse a valer R$ 150 bilhões, valor de mercado que a rival Magazine Luiza alcançou durante a pandemia da covid-19.

Houve quem previsse o caos da junção sobre a estrutura financeira. “Foi interessante que o nosso maior investidor saiu do papel depois da mudança. Fui lá conversar com ele e ele disse: ‘O digital no mundo inteiro perde dinheiro. Eu gostava muito das lojas físicas. Vocês estão falando agora que a nova companhia tem 76% no mundo digital e que daqui a cinco anos terá 90% do mundo digital. Você vai perder dinheiro ‘pra burro’’. Ele tinha 12% do papel e foi embora com esse argumento”, relatou Gutierrez.

A fraude

Ainda sem conclusões do comitê de investigação independente que atua na Americanas, a atual gestão da rede afirmou, por meio de documentos entregues à CVM e apresentados à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados, que durante as gestões anteriores, a empresa fraudou seus resultados por anos.

“A fraude é uma fraude de resultados”, afirmou o atual CEO da companhia, Leonardo Coelho, na CPI em junho. A companhia, disse, inflava o Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) graças a contratos falsos de verbas de publicidade. Para que o caixa ficasse compatível aos resultados forjados, a companhia usou linhas de crédito para o pagamento de fornecedores.

Ainda não ficou claro, porém, a razão da necessidade de inflar resultados. No entanto, quando se olha para uma operação digital que consumia os recursos da empresa-mãe e deu ainda mais gastos depois de uma fusão malsucedida, parte dos motivos começa a ficar mais clara.

Os problemas do digital estão longe de serem resolvidos em meio à recuperação judicial da empresa, que tenta renegociar mais de R$ 40 bilhões em dívidas.

“A operação tem de ser rentável e, hoje, precisa de ajustes para isso”, disse Coelho ao Estadão/Broadcast, em março, quando o plano de recuperação, que aguarda aprovação, foi anunciado. “Se não recuperar, terei de resolver de outro jeito. Carregar uma operação deficitária não é uma opção para uma empresa em recuperação judicial.”

A origem da crise da Americanas parece estar na B2W, um “filhote digital” da empresa que nunca parou de pé, segundo documentos aos quais o Estadão/Broadcast teve acesso. A rede varejista entrou em recuperação judicial em janeiro de 2023 após a descoberta de um rombo contábil de R$ 20 bilhões.

A ata de uma reunião entre o então futuro CEO da Americanas, Sergio Rial, os ex-diretores Anna Saicali, Marcio Cruz, Timótheo Barros e o então futuro diretor financeiro da companhia, André Covre, em 2 de dezembro de 2022, mostra que o comando da varejista sabia que a operação digital não ia bem. Trechos do depoimento do ex-CEO Miguel Gutierrez à Comissão Mobiliária de Valores (CVM) detalham esses problemas. Procurada, a Americanas afirmou que não comentaria o teor dos documentos.

A ata que resume a reunião de dezembro afirma que os anos de 2023 e de 2024 seriam decisivos para a Americanas e para o setor. “Não poderemos ter a queima de caixa que estamos tendo”, diz um trecho.

Na sequência, traça-se uma estratégia: “Precisamos enxergar com nitidez que não poderemos ter uma companhia só digital. Temos que pensar no portfólio como um todo, reequilibrando as contas. Temos que dar um salto no físico e pensar mais nas categorias do digital (remodelar as categorias), com Ame (banco digital do grupo) permeando tudo isso, porque é o que rentabiliza”.

O grupo chega à conclusão de que, dali em diante, a área financeira precisaria levantar “a bandeira vermelha” sempre que necessário. Depois, um comentário mostra um orçamento mais curto: “Importante levarmos em consideração o asset (ativo) da empresa achatado, fizemos um follow on espetacular no momento certo, mas gastamos o dinheiro todo. Agora precisamos do dinheiro e temos que ir para a ‘guerra’”.

Rombo bilionário nas demonstrações financeiras das Lojas Americanas foi revelado em janeiro de 2023 Foto: Taba Benedicto / Estadão

A ata deixa evidente parte dos fundamentos da crise: a operação digital da empresa era um problema e precisava ser redesenhada. O documento aponta direcionamentos: a necessidade de se criar uma estratégia de crescimento sustentável e a proposta de repensar categorias “que só geram prejuízos”, mas “com cautela, sem maluquice, estudando detalhadamente as implicações de cada decisão”.

A mesma ata foi usada por dois lados na Justiça. Os advogados do Bradesco, um dos credores da Americanas, citou trechos do documento em uma manifestação no processo em que pede a produção antecipada de provas contra diretores da companhia, membros do conselho de administração e os principais acionistas (Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira). Para o Bradesco, o conhecimento de Rial sobre a situação financeira da varejista é um fato novo que precisa ser avaliado.

Na visão da defesa da Americanas, porém, que juntou em agravo no mesmo processo a íntegra da ata, o que fica exposto é simplesmente o planejamento do então futuro CEO, Rial, com base nos dados do terceiro trimestre de 2022, que haviam sido divulgados ao mercado.

Uma década de prejuízo

A cronologia dos problemas financeiros da B2W fica mais clara com trechos do depoimento de Miguel Gutierrez, CEO da companhia até 2022, prestado em março à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e aos quais o Estadão/Broadcast teve acesso.

Como a Lojas Americanas controlava a B2W, a operação das lojas físicas financiava a operação digital mesmo quando as empresas eram separadas, uma dependência que ficou clara no início da década passada.

Entre 2010 e 2011, a B2W enfrentou uma crise de credibilidade por não entregar no prazo os produtos comprados pelos clientes em seus sites. Gutierrez afirmou no depoimento que esse “colapso” levou a uma mudança na operação: a companhia internalizou áreas que antes eram terceirizadas, como a distribuição de mercadorias, o que reduziu a rentabilidade.

Naquele 2011, a B2W fez um aumento de capital de R$ 1 bilhão. Desse valor, a Lojas Americanas entrou com 64%. De acordo com Gutierrez, a partir desse ponto, é possível que a Americanas tenha sido obrigada a recorrer aos bancos para adiantar os pagamentos aos fornecedores, em uma das operações relacionadas à fraude descoberta neste ano, o risco sacado. Ele afirmou não conhecer bem o “desenho” da operação, mas disse que antes a rede fazia o adiantamento com o próprio caixa. As necessidades da B2W reduziram o espaço para a operação usar capital próprio.

O último ano em que a B2W teve lucro foi 2010. Dali em diante, a companhia fecharia todos os anos no vermelho. Em 2021, o resultado voltou para o azul, mas já reunia as operações física e digital. No final de 2020, último ano de B2W independente, o prejuízo acumulado somava R$ 2,8 bilhões.

Os aportes na operação digital eram constantes. Em 2020, a Lojas Americanas levantou cerca de R$ 7,9 bilhões em uma oferta de ações, dos quais cerca de R$ 3 bilhões foram para a B2W.

“A cada dois anos, a gente botava algum dinheiro. Na medida em que vai crescendo muito a venda, você termina tendo mais demanda”, disse Gutierrez à CVM. “Até setembro de 2022, desde a combinação (dos negócios), gastou-se R$ 10 bilhões”, disse ele, afirmando que os gastos envolveram compra de empresas e investimentos na combinação dos negócios.

Fusão problemática

Gutierrez afirma que a união entre os braços físico e digital, concluída em julho de 2021, gerou problemas operacionais e não trouxe o resultado esperado no mercado financeiro. O maior nó, segundo ele, era que a Lojas Americanas tinha uma operação muito diferente da B2W, tanto nos produtos vendidos quanto na legislação tributária.

Gutierrez afirmou que a fusão foi rejeitada algumas vezes, mas foi em frente quando o comando da companhia entendeu que as lojas físicas eram subavaliadas pelo investidor das ações da Lojas Americanas, que como controladora da B2W, também refletia o valor de mercado da fatia que detinha no “filhote” digital. A meta, segundo ele, era que a rede chegasse a valer R$ 150 bilhões, valor de mercado que a rival Magazine Luiza alcançou durante a pandemia da covid-19.

Houve quem previsse o caos da junção sobre a estrutura financeira. “Foi interessante que o nosso maior investidor saiu do papel depois da mudança. Fui lá conversar com ele e ele disse: ‘O digital no mundo inteiro perde dinheiro. Eu gostava muito das lojas físicas. Vocês estão falando agora que a nova companhia tem 76% no mundo digital e que daqui a cinco anos terá 90% do mundo digital. Você vai perder dinheiro ‘pra burro’’. Ele tinha 12% do papel e foi embora com esse argumento”, relatou Gutierrez.

A fraude

Ainda sem conclusões do comitê de investigação independente que atua na Americanas, a atual gestão da rede afirmou, por meio de documentos entregues à CVM e apresentados à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados, que durante as gestões anteriores, a empresa fraudou seus resultados por anos.

“A fraude é uma fraude de resultados”, afirmou o atual CEO da companhia, Leonardo Coelho, na CPI em junho. A companhia, disse, inflava o Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) graças a contratos falsos de verbas de publicidade. Para que o caixa ficasse compatível aos resultados forjados, a companhia usou linhas de crédito para o pagamento de fornecedores.

Ainda não ficou claro, porém, a razão da necessidade de inflar resultados. No entanto, quando se olha para uma operação digital que consumia os recursos da empresa-mãe e deu ainda mais gastos depois de uma fusão malsucedida, parte dos motivos começa a ficar mais clara.

Os problemas do digital estão longe de serem resolvidos em meio à recuperação judicial da empresa, que tenta renegociar mais de R$ 40 bilhões em dívidas.

“A operação tem de ser rentável e, hoje, precisa de ajustes para isso”, disse Coelho ao Estadão/Broadcast, em março, quando o plano de recuperação, que aguarda aprovação, foi anunciado. “Se não recuperar, terei de resolver de outro jeito. Carregar uma operação deficitária não é uma opção para uma empresa em recuperação judicial.”

A origem da crise da Americanas parece estar na B2W, um “filhote digital” da empresa que nunca parou de pé, segundo documentos aos quais o Estadão/Broadcast teve acesso. A rede varejista entrou em recuperação judicial em janeiro de 2023 após a descoberta de um rombo contábil de R$ 20 bilhões.

A ata de uma reunião entre o então futuro CEO da Americanas, Sergio Rial, os ex-diretores Anna Saicali, Marcio Cruz, Timótheo Barros e o então futuro diretor financeiro da companhia, André Covre, em 2 de dezembro de 2022, mostra que o comando da varejista sabia que a operação digital não ia bem. Trechos do depoimento do ex-CEO Miguel Gutierrez à Comissão Mobiliária de Valores (CVM) detalham esses problemas. Procurada, a Americanas afirmou que não comentaria o teor dos documentos.

A ata que resume a reunião de dezembro afirma que os anos de 2023 e de 2024 seriam decisivos para a Americanas e para o setor. “Não poderemos ter a queima de caixa que estamos tendo”, diz um trecho.

Na sequência, traça-se uma estratégia: “Precisamos enxergar com nitidez que não poderemos ter uma companhia só digital. Temos que pensar no portfólio como um todo, reequilibrando as contas. Temos que dar um salto no físico e pensar mais nas categorias do digital (remodelar as categorias), com Ame (banco digital do grupo) permeando tudo isso, porque é o que rentabiliza”.

O grupo chega à conclusão de que, dali em diante, a área financeira precisaria levantar “a bandeira vermelha” sempre que necessário. Depois, um comentário mostra um orçamento mais curto: “Importante levarmos em consideração o asset (ativo) da empresa achatado, fizemos um follow on espetacular no momento certo, mas gastamos o dinheiro todo. Agora precisamos do dinheiro e temos que ir para a ‘guerra’”.

Rombo bilionário nas demonstrações financeiras das Lojas Americanas foi revelado em janeiro de 2023 Foto: Taba Benedicto / Estadão

A ata deixa evidente parte dos fundamentos da crise: a operação digital da empresa era um problema e precisava ser redesenhada. O documento aponta direcionamentos: a necessidade de se criar uma estratégia de crescimento sustentável e a proposta de repensar categorias “que só geram prejuízos”, mas “com cautela, sem maluquice, estudando detalhadamente as implicações de cada decisão”.

A mesma ata foi usada por dois lados na Justiça. Os advogados do Bradesco, um dos credores da Americanas, citou trechos do documento em uma manifestação no processo em que pede a produção antecipada de provas contra diretores da companhia, membros do conselho de administração e os principais acionistas (Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira). Para o Bradesco, o conhecimento de Rial sobre a situação financeira da varejista é um fato novo que precisa ser avaliado.

Na visão da defesa da Americanas, porém, que juntou em agravo no mesmo processo a íntegra da ata, o que fica exposto é simplesmente o planejamento do então futuro CEO, Rial, com base nos dados do terceiro trimestre de 2022, que haviam sido divulgados ao mercado.

Uma década de prejuízo

A cronologia dos problemas financeiros da B2W fica mais clara com trechos do depoimento de Miguel Gutierrez, CEO da companhia até 2022, prestado em março à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e aos quais o Estadão/Broadcast teve acesso.

Como a Lojas Americanas controlava a B2W, a operação das lojas físicas financiava a operação digital mesmo quando as empresas eram separadas, uma dependência que ficou clara no início da década passada.

Entre 2010 e 2011, a B2W enfrentou uma crise de credibilidade por não entregar no prazo os produtos comprados pelos clientes em seus sites. Gutierrez afirmou no depoimento que esse “colapso” levou a uma mudança na operação: a companhia internalizou áreas que antes eram terceirizadas, como a distribuição de mercadorias, o que reduziu a rentabilidade.

Naquele 2011, a B2W fez um aumento de capital de R$ 1 bilhão. Desse valor, a Lojas Americanas entrou com 64%. De acordo com Gutierrez, a partir desse ponto, é possível que a Americanas tenha sido obrigada a recorrer aos bancos para adiantar os pagamentos aos fornecedores, em uma das operações relacionadas à fraude descoberta neste ano, o risco sacado. Ele afirmou não conhecer bem o “desenho” da operação, mas disse que antes a rede fazia o adiantamento com o próprio caixa. As necessidades da B2W reduziram o espaço para a operação usar capital próprio.

O último ano em que a B2W teve lucro foi 2010. Dali em diante, a companhia fecharia todos os anos no vermelho. Em 2021, o resultado voltou para o azul, mas já reunia as operações física e digital. No final de 2020, último ano de B2W independente, o prejuízo acumulado somava R$ 2,8 bilhões.

Os aportes na operação digital eram constantes. Em 2020, a Lojas Americanas levantou cerca de R$ 7,9 bilhões em uma oferta de ações, dos quais cerca de R$ 3 bilhões foram para a B2W.

“A cada dois anos, a gente botava algum dinheiro. Na medida em que vai crescendo muito a venda, você termina tendo mais demanda”, disse Gutierrez à CVM. “Até setembro de 2022, desde a combinação (dos negócios), gastou-se R$ 10 bilhões”, disse ele, afirmando que os gastos envolveram compra de empresas e investimentos na combinação dos negócios.

Fusão problemática

Gutierrez afirma que a união entre os braços físico e digital, concluída em julho de 2021, gerou problemas operacionais e não trouxe o resultado esperado no mercado financeiro. O maior nó, segundo ele, era que a Lojas Americanas tinha uma operação muito diferente da B2W, tanto nos produtos vendidos quanto na legislação tributária.

Gutierrez afirmou que a fusão foi rejeitada algumas vezes, mas foi em frente quando o comando da companhia entendeu que as lojas físicas eram subavaliadas pelo investidor das ações da Lojas Americanas, que como controladora da B2W, também refletia o valor de mercado da fatia que detinha no “filhote” digital. A meta, segundo ele, era que a rede chegasse a valer R$ 150 bilhões, valor de mercado que a rival Magazine Luiza alcançou durante a pandemia da covid-19.

Houve quem previsse o caos da junção sobre a estrutura financeira. “Foi interessante que o nosso maior investidor saiu do papel depois da mudança. Fui lá conversar com ele e ele disse: ‘O digital no mundo inteiro perde dinheiro. Eu gostava muito das lojas físicas. Vocês estão falando agora que a nova companhia tem 76% no mundo digital e que daqui a cinco anos terá 90% do mundo digital. Você vai perder dinheiro ‘pra burro’’. Ele tinha 12% do papel e foi embora com esse argumento”, relatou Gutierrez.

A fraude

Ainda sem conclusões do comitê de investigação independente que atua na Americanas, a atual gestão da rede afirmou, por meio de documentos entregues à CVM e apresentados à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados, que durante as gestões anteriores, a empresa fraudou seus resultados por anos.

“A fraude é uma fraude de resultados”, afirmou o atual CEO da companhia, Leonardo Coelho, na CPI em junho. A companhia, disse, inflava o Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) graças a contratos falsos de verbas de publicidade. Para que o caixa ficasse compatível aos resultados forjados, a companhia usou linhas de crédito para o pagamento de fornecedores.

Ainda não ficou claro, porém, a razão da necessidade de inflar resultados. No entanto, quando se olha para uma operação digital que consumia os recursos da empresa-mãe e deu ainda mais gastos depois de uma fusão malsucedida, parte dos motivos começa a ficar mais clara.

Os problemas do digital estão longe de serem resolvidos em meio à recuperação judicial da empresa, que tenta renegociar mais de R$ 40 bilhões em dívidas.

“A operação tem de ser rentável e, hoje, precisa de ajustes para isso”, disse Coelho ao Estadão/Broadcast, em março, quando o plano de recuperação, que aguarda aprovação, foi anunciado. “Se não recuperar, terei de resolver de outro jeito. Carregar uma operação deficitária não é uma opção para uma empresa em recuperação judicial.”

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