Crédito de carbono pode levar investimentos para terras indígenas, mas também problemas; entenda


Assunto gera controvérsias; parte dos envolvidos afirma que créditos podem garantir recursos para populações vulneráveis, parte diz que projetos vão contra modo de vida de comunidades originárias

Por Luciana Dyniewicz
Atualização:

Com o desenvolvimento de projetos de crédito carbono em comunidades indígenas praticamente paralisado há mais de um ano, parte do setor pede que a Funai amplie a fiscalização para os projetos voltarem a sair do papel e agilize a criação de critérios que permitam o desenvolvimento do segmento. As atividades em territórios indígenas estão estancadas após surgirem diferentes denúncias de que as empresas estavam cometendo abusos ao trabalhar com povos originários.

O tema é sensível. Há quem defenda que os créditos podem garantir recursos para populações vulneráveis. Mas há os que apontam que os projetos de carbono vão contra o modo de vida das comunidades tradicionais. “Para a gente, é muito preocupante a forma como o debate está chegando. Ele não agrega em nada ao modo de vida dos povos indígenas. A gente vê um crescimento forte da mercantilização da floresta, e isso traz mais problemas do que solução”, diz Kleber Karipuna, coordenador executivo da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

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Karipuna afirma que, dependendo do conteúdo dos contratos firmados com empresas desenvolvedoras de projetos, pode haver interferência na cultura das populações e no modo como elas usam matérias-primas da floresta. Ele pondera, porém, que as comunidades originárias não conseguirão “fugir” desse mercado. Portanto, a orientação da APIB é que os povos tradicionais aguardem o Projeto de Lei que deverá regular o mercado de carbono, para que haja mais clareza de como o setor vai funcionar. “A gente se alinha e concorda com a nota técnica da Funai no sentido de salvaguardar direitos.”

Em abril, a Funai publicou uma nota orientando as comunidades a não participarem de negociações envolvendo a venda de créditos de carbono até que “haja a definição de critérios e orientações para a inserção das terras indígenas no mercado voluntário de carbono”. A fundação, porém, afirmou que era “desejável” que as populações se preparassem para o debate sobre o assunto.

Ao Estadão, informou ainda aguardar a “tramitação de legislação específica no Congresso Nacional sobre o tema para que possa realizar análises técnicas sobre aspectos legais dos projetos”.

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Vista aérea da Amazônia no Pará; projetos de crédito de carbono poderiam ser desenvolvidos em territórios indígenas da região Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Do lado do setor privado, há pedidos para que essa definição saia logo. “Tem muitas empresas trabalhando com comunidades tradicionais – a maioria em fase de consultas – em um clima de insegurança jurídica. Estão em compasso de espera para ter uma clareza do governo brasileiro em relação ao modelo de fiscalização que será colocado em prática e à defesa dos direitos dessas comunidades”, diz Monique Vanni, diretora no Brasil da Wildlife Works Carbon.

A Wildlife Works Carbon é uma empresa americana pioneira no desenvolvimento de projetos de carbono com comunidades tradicionais. Começou sua atuação no continente africano (no Congo e no Quênia). Agora, está trabalhando na Colômbia e pretende avançar no Brasil.

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No ano passado, a companhia foi alvo de denúncias de ONGs que apontaram casos de abuso sexual e assédio em larga escala em uma comunidade queniana entre 2011 e 2023. Em novembro, a empresa publicou uma nota em que afirmava que havia demitido o chefe de segurança do projeto Corredor Kasigau, “por má conduta grave, incluindo comportamentos que violaram a política da empresa contra assédio sexual”, e o gerente de recursos humanos, devido à criação de uma “cultura de medo e intimidação que (...) impedia a denúncia de incidentes de assédio sexual”.

No Brasil, a Wildlife Works Carbon tem mantido conversas com algumas comunidades tradicionais. Vanni afirma que os projetos estão em fase de consulta livre, prévia e informada e que a intenção é dar andamento a eles mesmo sem a definição dos critérios por parte da Funai.

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“Estamos dentro da lei. Somos assessores dos projetos. A autonomia e a legitimidade (para decidir se os projetos serão desenvolvidos) são das comunidades”, diz a executiva. Ela acrescenta, no entanto, que ajudaria se a Funai publicasse as orientações e colocasse em prática medidas de fiscalização. “A métrica do que é considerado correto não é clara. O risco de judicialização acaba criando empecilhos para a atuação de empresas sérias. Queremos que eles (a Funai) digam quais são os procedimentos, para termos um norte.”

Ao Estadão, o Ministério dos Povos Indígenas destacou ser “necessária a consulta aos órgãos indigenistas, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), para garantir que projetos desta magnitude resguardem os direitos dos povos indígenas, como previstos na Constituição Federal (no artigo 231) e na Convenção 169 da OIT”.

Kleber Karipuna, coordenador executivo da APIB, em encontro de populações originárias realizado na Colômbia na semana passada; para ele, o mercado de carbono 'não agrega em nada ao modo de vida dos povos indígenas' Foto: Raul Arboleda/AFP
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Diretor da Aliança Brasil Nature-based Solutions (associação que reúne empresas desenvolvedoras de projetos de crédito de carbono), Jerônimo Roveda afirma que, apesar de os créditos de comunidades originárias serem negociados em um mercado voluntário, seria “ideal” ter uma regra para disciplinar o segmento e dar segurança jurídica aos envolvidos. “A existência de projetos em comunidades indígenas é um fato. Se há muita insegurança, é melhor que isso seja disciplinado.”

Roveda reconhece que há regras mínimas, como a realização de consulta prévia, livre e informada, que precisam ser cumpridas independentemente da existência de um protocolo. “Ainda assim, talvez a gente precise de legislação e, principalmente, que os órgãos institucionais tenham mais condições de fiscalizar o que está sendo feito.”

A Systemica, desenvolvedora de projetos de carbono que tem o banco BTG como sócio, tem trabalhado, por ora, na capacitação de povos indígenas. O diretor jurídico, Tiago Ricci, afirma que a empresa já mapeou territórios na Amazônia onde os projetos poderiam ser desenvolvidos, mas destaca que abordagens diretas às populações não são realizadas.

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Segundo Ricci, dez comunidades já procuraram a companhia, mas a conversa continua, ainda numa fase inicial, com apenas três delas. “Algumas a gente descarta, seja porque o interlocutor é alguém que não tem representatividade no território, seja porque a área não tem condições para gerar o ativo.” Apenas áreas que estão sob pressão de desmatamento são capazes de produzir créditos.

Ao contrário de Roveda, Ricci não vê a necessidade de criação de um protocolo para que projetos sejam desenvolvidos em comunidades indígenas. Na visão dele, é necessário que a Funai e o Ministério Público sejam envolvidos no processo desde o início – ainda que essas populações sejam autônomas – e que haja “bons arranjos institucionais e de governança”. “Esses territórios são representados por associações? Tem um protocolo de consulta? Quem dá amparo técnico e financeiro para as populações? Se você não trouxer essa governança, provavelmente não dará certo.”

Ricci afirma que projetos anteriores que começaram a ser desenvolvidos com povos indígenas fracassaram devido à tentativa de simplificar o processo de criação desses projetos. No ano passado, houve várias denúncias de que empresas se aproveitavam do fato de grande parte das comunidades tradicionais não entender a complexidade técnica do mercado de carbono.

CEO da Biofílica (companhia da Ambipar na área de crédito de carbono), Plínio Ribeiro também afirma que muitos projetos no Brasil foram feitos sem o devido cuidado. Segundo ele, devido à complexidade do mercado e das populações envolvidas, é natural que a discussão em torno do assunto leve tempo. Ribeiro acrescenta que uma das dificuldades para se desenvolver projetos com comunidades tradicionais é a falta de entendimento sobre o processo ideal que deve ser adotado em uma consulta prévia, livre e informada.

Para a indigenista Neidinha Suruí, mãe da ativista Txai Suruí, o mercado de carbono pode ajudar povos tradicionais a terem renda e reduzir a insegurança alimentar, desde que os proponentes dos projetos sejam indígenas. “O que as empresas podem fazer é apoiar os projetos indígenas, mas nunca serem proponentes. Elas têm de apoiar a proposta que vem do povo.”

'O que as empresas podem fazer é apoiar os projetos indígenas, mas nunca serem proponentes', diz Neidinha Suruí Foto: NEIDINHA SURUI

O povo suruí – hoje formado por cerca de 2.200 pessoas que habitam a Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia e Mato Grosso – foi pioneiro na venda de crédito de carbono no Brasil. Ainda em 1999, o líder indígena e pai de Txai Suruí, Almir Suruí ouviu falar, em um evento em Nova York, que o mercado de carbono se tornaria uma ferramenta importante para a preservação ambiental. Ao voltar ao Brasil, trouxe a ideia para sua comunidade, que levou quase dez anos para implementá-la.

O projeto de carbono da Terra Sete de Setembro foi posto em pé pela própria associação do povo suruí, após fechar parcerias com o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), criar um fundo para gerir os recursos provenientes da venda dos créditos e conseguir a anuência da Funai. O projeto acabou, porém, muito antes do esperado, após desentendimentos na comunidade em relação aos recursos.

Hoje, o assunto voltou a ser discutido entre os suruí. “O projeto deve ser retomado. Apesar do conflito, ele gerou renda e conseguiu fazer com que a gente tivesse a floresta preservada”, diz Neidinha.

Com o desenvolvimento de projetos de crédito carbono em comunidades indígenas praticamente paralisado há mais de um ano, parte do setor pede que a Funai amplie a fiscalização para os projetos voltarem a sair do papel e agilize a criação de critérios que permitam o desenvolvimento do segmento. As atividades em territórios indígenas estão estancadas após surgirem diferentes denúncias de que as empresas estavam cometendo abusos ao trabalhar com povos originários.

O tema é sensível. Há quem defenda que os créditos podem garantir recursos para populações vulneráveis. Mas há os que apontam que os projetos de carbono vão contra o modo de vida das comunidades tradicionais. “Para a gente, é muito preocupante a forma como o debate está chegando. Ele não agrega em nada ao modo de vida dos povos indígenas. A gente vê um crescimento forte da mercantilização da floresta, e isso traz mais problemas do que solução”, diz Kleber Karipuna, coordenador executivo da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Karipuna afirma que, dependendo do conteúdo dos contratos firmados com empresas desenvolvedoras de projetos, pode haver interferência na cultura das populações e no modo como elas usam matérias-primas da floresta. Ele pondera, porém, que as comunidades originárias não conseguirão “fugir” desse mercado. Portanto, a orientação da APIB é que os povos tradicionais aguardem o Projeto de Lei que deverá regular o mercado de carbono, para que haja mais clareza de como o setor vai funcionar. “A gente se alinha e concorda com a nota técnica da Funai no sentido de salvaguardar direitos.”

Em abril, a Funai publicou uma nota orientando as comunidades a não participarem de negociações envolvendo a venda de créditos de carbono até que “haja a definição de critérios e orientações para a inserção das terras indígenas no mercado voluntário de carbono”. A fundação, porém, afirmou que era “desejável” que as populações se preparassem para o debate sobre o assunto.

Ao Estadão, informou ainda aguardar a “tramitação de legislação específica no Congresso Nacional sobre o tema para que possa realizar análises técnicas sobre aspectos legais dos projetos”.

Vista aérea da Amazônia no Pará; projetos de crédito de carbono poderiam ser desenvolvidos em territórios indígenas da região Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Do lado do setor privado, há pedidos para que essa definição saia logo. “Tem muitas empresas trabalhando com comunidades tradicionais – a maioria em fase de consultas – em um clima de insegurança jurídica. Estão em compasso de espera para ter uma clareza do governo brasileiro em relação ao modelo de fiscalização que será colocado em prática e à defesa dos direitos dessas comunidades”, diz Monique Vanni, diretora no Brasil da Wildlife Works Carbon.

A Wildlife Works Carbon é uma empresa americana pioneira no desenvolvimento de projetos de carbono com comunidades tradicionais. Começou sua atuação no continente africano (no Congo e no Quênia). Agora, está trabalhando na Colômbia e pretende avançar no Brasil.

No ano passado, a companhia foi alvo de denúncias de ONGs que apontaram casos de abuso sexual e assédio em larga escala em uma comunidade queniana entre 2011 e 2023. Em novembro, a empresa publicou uma nota em que afirmava que havia demitido o chefe de segurança do projeto Corredor Kasigau, “por má conduta grave, incluindo comportamentos que violaram a política da empresa contra assédio sexual”, e o gerente de recursos humanos, devido à criação de uma “cultura de medo e intimidação que (...) impedia a denúncia de incidentes de assédio sexual”.

No Brasil, a Wildlife Works Carbon tem mantido conversas com algumas comunidades tradicionais. Vanni afirma que os projetos estão em fase de consulta livre, prévia e informada e que a intenção é dar andamento a eles mesmo sem a definição dos critérios por parte da Funai.

“Estamos dentro da lei. Somos assessores dos projetos. A autonomia e a legitimidade (para decidir se os projetos serão desenvolvidos) são das comunidades”, diz a executiva. Ela acrescenta, no entanto, que ajudaria se a Funai publicasse as orientações e colocasse em prática medidas de fiscalização. “A métrica do que é considerado correto não é clara. O risco de judicialização acaba criando empecilhos para a atuação de empresas sérias. Queremos que eles (a Funai) digam quais são os procedimentos, para termos um norte.”

Ao Estadão, o Ministério dos Povos Indígenas destacou ser “necessária a consulta aos órgãos indigenistas, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), para garantir que projetos desta magnitude resguardem os direitos dos povos indígenas, como previstos na Constituição Federal (no artigo 231) e na Convenção 169 da OIT”.

Kleber Karipuna, coordenador executivo da APIB, em encontro de populações originárias realizado na Colômbia na semana passada; para ele, o mercado de carbono 'não agrega em nada ao modo de vida dos povos indígenas' Foto: Raul Arboleda/AFP

Diretor da Aliança Brasil Nature-based Solutions (associação que reúne empresas desenvolvedoras de projetos de crédito de carbono), Jerônimo Roveda afirma que, apesar de os créditos de comunidades originárias serem negociados em um mercado voluntário, seria “ideal” ter uma regra para disciplinar o segmento e dar segurança jurídica aos envolvidos. “A existência de projetos em comunidades indígenas é um fato. Se há muita insegurança, é melhor que isso seja disciplinado.”

Roveda reconhece que há regras mínimas, como a realização de consulta prévia, livre e informada, que precisam ser cumpridas independentemente da existência de um protocolo. “Ainda assim, talvez a gente precise de legislação e, principalmente, que os órgãos institucionais tenham mais condições de fiscalizar o que está sendo feito.”

A Systemica, desenvolvedora de projetos de carbono que tem o banco BTG como sócio, tem trabalhado, por ora, na capacitação de povos indígenas. O diretor jurídico, Tiago Ricci, afirma que a empresa já mapeou territórios na Amazônia onde os projetos poderiam ser desenvolvidos, mas destaca que abordagens diretas às populações não são realizadas.

Segundo Ricci, dez comunidades já procuraram a companhia, mas a conversa continua, ainda numa fase inicial, com apenas três delas. “Algumas a gente descarta, seja porque o interlocutor é alguém que não tem representatividade no território, seja porque a área não tem condições para gerar o ativo.” Apenas áreas que estão sob pressão de desmatamento são capazes de produzir créditos.

Ao contrário de Roveda, Ricci não vê a necessidade de criação de um protocolo para que projetos sejam desenvolvidos em comunidades indígenas. Na visão dele, é necessário que a Funai e o Ministério Público sejam envolvidos no processo desde o início – ainda que essas populações sejam autônomas – e que haja “bons arranjos institucionais e de governança”. “Esses territórios são representados por associações? Tem um protocolo de consulta? Quem dá amparo técnico e financeiro para as populações? Se você não trouxer essa governança, provavelmente não dará certo.”

Ricci afirma que projetos anteriores que começaram a ser desenvolvidos com povos indígenas fracassaram devido à tentativa de simplificar o processo de criação desses projetos. No ano passado, houve várias denúncias de que empresas se aproveitavam do fato de grande parte das comunidades tradicionais não entender a complexidade técnica do mercado de carbono.

CEO da Biofílica (companhia da Ambipar na área de crédito de carbono), Plínio Ribeiro também afirma que muitos projetos no Brasil foram feitos sem o devido cuidado. Segundo ele, devido à complexidade do mercado e das populações envolvidas, é natural que a discussão em torno do assunto leve tempo. Ribeiro acrescenta que uma das dificuldades para se desenvolver projetos com comunidades tradicionais é a falta de entendimento sobre o processo ideal que deve ser adotado em uma consulta prévia, livre e informada.

Para a indigenista Neidinha Suruí, mãe da ativista Txai Suruí, o mercado de carbono pode ajudar povos tradicionais a terem renda e reduzir a insegurança alimentar, desde que os proponentes dos projetos sejam indígenas. “O que as empresas podem fazer é apoiar os projetos indígenas, mas nunca serem proponentes. Elas têm de apoiar a proposta que vem do povo.”

'O que as empresas podem fazer é apoiar os projetos indígenas, mas nunca serem proponentes', diz Neidinha Suruí Foto: NEIDINHA SURUI

O povo suruí – hoje formado por cerca de 2.200 pessoas que habitam a Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia e Mato Grosso – foi pioneiro na venda de crédito de carbono no Brasil. Ainda em 1999, o líder indígena e pai de Txai Suruí, Almir Suruí ouviu falar, em um evento em Nova York, que o mercado de carbono se tornaria uma ferramenta importante para a preservação ambiental. Ao voltar ao Brasil, trouxe a ideia para sua comunidade, que levou quase dez anos para implementá-la.

O projeto de carbono da Terra Sete de Setembro foi posto em pé pela própria associação do povo suruí, após fechar parcerias com o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), criar um fundo para gerir os recursos provenientes da venda dos créditos e conseguir a anuência da Funai. O projeto acabou, porém, muito antes do esperado, após desentendimentos na comunidade em relação aos recursos.

Hoje, o assunto voltou a ser discutido entre os suruí. “O projeto deve ser retomado. Apesar do conflito, ele gerou renda e conseguiu fazer com que a gente tivesse a floresta preservada”, diz Neidinha.

Com o desenvolvimento de projetos de crédito carbono em comunidades indígenas praticamente paralisado há mais de um ano, parte do setor pede que a Funai amplie a fiscalização para os projetos voltarem a sair do papel e agilize a criação de critérios que permitam o desenvolvimento do segmento. As atividades em territórios indígenas estão estancadas após surgirem diferentes denúncias de que as empresas estavam cometendo abusos ao trabalhar com povos originários.

O tema é sensível. Há quem defenda que os créditos podem garantir recursos para populações vulneráveis. Mas há os que apontam que os projetos de carbono vão contra o modo de vida das comunidades tradicionais. “Para a gente, é muito preocupante a forma como o debate está chegando. Ele não agrega em nada ao modo de vida dos povos indígenas. A gente vê um crescimento forte da mercantilização da floresta, e isso traz mais problemas do que solução”, diz Kleber Karipuna, coordenador executivo da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Karipuna afirma que, dependendo do conteúdo dos contratos firmados com empresas desenvolvedoras de projetos, pode haver interferência na cultura das populações e no modo como elas usam matérias-primas da floresta. Ele pondera, porém, que as comunidades originárias não conseguirão “fugir” desse mercado. Portanto, a orientação da APIB é que os povos tradicionais aguardem o Projeto de Lei que deverá regular o mercado de carbono, para que haja mais clareza de como o setor vai funcionar. “A gente se alinha e concorda com a nota técnica da Funai no sentido de salvaguardar direitos.”

Em abril, a Funai publicou uma nota orientando as comunidades a não participarem de negociações envolvendo a venda de créditos de carbono até que “haja a definição de critérios e orientações para a inserção das terras indígenas no mercado voluntário de carbono”. A fundação, porém, afirmou que era “desejável” que as populações se preparassem para o debate sobre o assunto.

Ao Estadão, informou ainda aguardar a “tramitação de legislação específica no Congresso Nacional sobre o tema para que possa realizar análises técnicas sobre aspectos legais dos projetos”.

Vista aérea da Amazônia no Pará; projetos de crédito de carbono poderiam ser desenvolvidos em territórios indígenas da região Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Do lado do setor privado, há pedidos para que essa definição saia logo. “Tem muitas empresas trabalhando com comunidades tradicionais – a maioria em fase de consultas – em um clima de insegurança jurídica. Estão em compasso de espera para ter uma clareza do governo brasileiro em relação ao modelo de fiscalização que será colocado em prática e à defesa dos direitos dessas comunidades”, diz Monique Vanni, diretora no Brasil da Wildlife Works Carbon.

A Wildlife Works Carbon é uma empresa americana pioneira no desenvolvimento de projetos de carbono com comunidades tradicionais. Começou sua atuação no continente africano (no Congo e no Quênia). Agora, está trabalhando na Colômbia e pretende avançar no Brasil.

No ano passado, a companhia foi alvo de denúncias de ONGs que apontaram casos de abuso sexual e assédio em larga escala em uma comunidade queniana entre 2011 e 2023. Em novembro, a empresa publicou uma nota em que afirmava que havia demitido o chefe de segurança do projeto Corredor Kasigau, “por má conduta grave, incluindo comportamentos que violaram a política da empresa contra assédio sexual”, e o gerente de recursos humanos, devido à criação de uma “cultura de medo e intimidação que (...) impedia a denúncia de incidentes de assédio sexual”.

No Brasil, a Wildlife Works Carbon tem mantido conversas com algumas comunidades tradicionais. Vanni afirma que os projetos estão em fase de consulta livre, prévia e informada e que a intenção é dar andamento a eles mesmo sem a definição dos critérios por parte da Funai.

“Estamos dentro da lei. Somos assessores dos projetos. A autonomia e a legitimidade (para decidir se os projetos serão desenvolvidos) são das comunidades”, diz a executiva. Ela acrescenta, no entanto, que ajudaria se a Funai publicasse as orientações e colocasse em prática medidas de fiscalização. “A métrica do que é considerado correto não é clara. O risco de judicialização acaba criando empecilhos para a atuação de empresas sérias. Queremos que eles (a Funai) digam quais são os procedimentos, para termos um norte.”

Ao Estadão, o Ministério dos Povos Indígenas destacou ser “necessária a consulta aos órgãos indigenistas, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), para garantir que projetos desta magnitude resguardem os direitos dos povos indígenas, como previstos na Constituição Federal (no artigo 231) e na Convenção 169 da OIT”.

Kleber Karipuna, coordenador executivo da APIB, em encontro de populações originárias realizado na Colômbia na semana passada; para ele, o mercado de carbono 'não agrega em nada ao modo de vida dos povos indígenas' Foto: Raul Arboleda/AFP

Diretor da Aliança Brasil Nature-based Solutions (associação que reúne empresas desenvolvedoras de projetos de crédito de carbono), Jerônimo Roveda afirma que, apesar de os créditos de comunidades originárias serem negociados em um mercado voluntário, seria “ideal” ter uma regra para disciplinar o segmento e dar segurança jurídica aos envolvidos. “A existência de projetos em comunidades indígenas é um fato. Se há muita insegurança, é melhor que isso seja disciplinado.”

Roveda reconhece que há regras mínimas, como a realização de consulta prévia, livre e informada, que precisam ser cumpridas independentemente da existência de um protocolo. “Ainda assim, talvez a gente precise de legislação e, principalmente, que os órgãos institucionais tenham mais condições de fiscalizar o que está sendo feito.”

A Systemica, desenvolvedora de projetos de carbono que tem o banco BTG como sócio, tem trabalhado, por ora, na capacitação de povos indígenas. O diretor jurídico, Tiago Ricci, afirma que a empresa já mapeou territórios na Amazônia onde os projetos poderiam ser desenvolvidos, mas destaca que abordagens diretas às populações não são realizadas.

Segundo Ricci, dez comunidades já procuraram a companhia, mas a conversa continua, ainda numa fase inicial, com apenas três delas. “Algumas a gente descarta, seja porque o interlocutor é alguém que não tem representatividade no território, seja porque a área não tem condições para gerar o ativo.” Apenas áreas que estão sob pressão de desmatamento são capazes de produzir créditos.

Ao contrário de Roveda, Ricci não vê a necessidade de criação de um protocolo para que projetos sejam desenvolvidos em comunidades indígenas. Na visão dele, é necessário que a Funai e o Ministério Público sejam envolvidos no processo desde o início – ainda que essas populações sejam autônomas – e que haja “bons arranjos institucionais e de governança”. “Esses territórios são representados por associações? Tem um protocolo de consulta? Quem dá amparo técnico e financeiro para as populações? Se você não trouxer essa governança, provavelmente não dará certo.”

Ricci afirma que projetos anteriores que começaram a ser desenvolvidos com povos indígenas fracassaram devido à tentativa de simplificar o processo de criação desses projetos. No ano passado, houve várias denúncias de que empresas se aproveitavam do fato de grande parte das comunidades tradicionais não entender a complexidade técnica do mercado de carbono.

CEO da Biofílica (companhia da Ambipar na área de crédito de carbono), Plínio Ribeiro também afirma que muitos projetos no Brasil foram feitos sem o devido cuidado. Segundo ele, devido à complexidade do mercado e das populações envolvidas, é natural que a discussão em torno do assunto leve tempo. Ribeiro acrescenta que uma das dificuldades para se desenvolver projetos com comunidades tradicionais é a falta de entendimento sobre o processo ideal que deve ser adotado em uma consulta prévia, livre e informada.

Para a indigenista Neidinha Suruí, mãe da ativista Txai Suruí, o mercado de carbono pode ajudar povos tradicionais a terem renda e reduzir a insegurança alimentar, desde que os proponentes dos projetos sejam indígenas. “O que as empresas podem fazer é apoiar os projetos indígenas, mas nunca serem proponentes. Elas têm de apoiar a proposta que vem do povo.”

'O que as empresas podem fazer é apoiar os projetos indígenas, mas nunca serem proponentes', diz Neidinha Suruí Foto: NEIDINHA SURUI

O povo suruí – hoje formado por cerca de 2.200 pessoas que habitam a Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia e Mato Grosso – foi pioneiro na venda de crédito de carbono no Brasil. Ainda em 1999, o líder indígena e pai de Txai Suruí, Almir Suruí ouviu falar, em um evento em Nova York, que o mercado de carbono se tornaria uma ferramenta importante para a preservação ambiental. Ao voltar ao Brasil, trouxe a ideia para sua comunidade, que levou quase dez anos para implementá-la.

O projeto de carbono da Terra Sete de Setembro foi posto em pé pela própria associação do povo suruí, após fechar parcerias com o Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), criar um fundo para gerir os recursos provenientes da venda dos créditos e conseguir a anuência da Funai. O projeto acabou, porém, muito antes do esperado, após desentendimentos na comunidade em relação aos recursos.

Hoje, o assunto voltou a ser discutido entre os suruí. “O projeto deve ser retomado. Apesar do conflito, ele gerou renda e conseguiu fazer com que a gente tivesse a floresta preservada”, diz Neidinha.

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