BRASÍLIA - A economista Selene Peres Peres Nunes, uma das autoras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e secretária de Economia de Goiás, afirma que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode sofrer perdas na economia e nas eleições de 2026 se continuar fazendo “puxadinhos” nas contas públicas. De acordo com a especialista, o presidente pode repetir o segundo mandato de Dilma Rousseff (PT), que cometeu pedaladas fiscais, perdeu apoio político e sofreu impeachment.
Selene ganhou o apelido de “mãe da LRF” após atuar na elaboração na lei quando era assessora econômica do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão do governo Fernando Henrique Cardoso. Para a economista, o arcabouço fiscal do governo Lula tira a credibilidade da LRF ao estabelecer uma meta de resultado primário (receitas e despesas) com intervalos de tolerância que, na prática, admitem déficits públicos e fazem o governo escapar das medidas de ajuste.
A LRF completou 24 anos neste mês e o País enfrenta um novo período com as contas públicas no vermelho e o desafio de controlar o endividamento. A especialista defende uma meta com base nas despesas efetivamente contratadas, e não apenas no dinheiro que sai do caixa, como é hoje, para acabar com o irrealismo orçamentário e as burlas no Orçamento.
Confira os principais trechos da entrevista:
Quais foram os avanços da Lei de Responsabilidade Fiscal?
A Lei de Responsabilidade abriu luzes sobre as contas públicas. Passamos a ter metas e medidas para correção de desvios. Existe uma tendência de redução do endividamento dos Estados e municípios e maior controle sobre as despesas de pessoal. Eu me lembro de um debate lá na Câmara, um deputado falou assim: “Minha senhora, a senhora acha realmente que é possível cumprir esses dispositivos e colocar as contas à disposição na internet? A gente envia é no papel.” Hoje, temos uma exploração de transparência e isso só foi possível por causa da LRF.
E quais os desafios?
Às vezes a gente dá três passinhos para frente, mas dá um passinho para trás porque a nossa resistência em avançar e aceitar que as contas públicas têm de ser equilibradas é muito grande. O teto de gastos foi uma boa técnica como tratamento de choque, mas o desenho era ruim e não era possível sustentá-lo por 20 anos. E aí os puxadinhos foram crescendo. O novo governo, muito traumatizado ainda pelo impeachment, resolveu mudar o teto e pegou um caminho que foi tentar desconstruir a sistemática das metas fiscais da LRF criando um arcabouço fiscal.
Por que o arcabouço desconstrói a LRF?
O arcabouço está, de uma forma muito pouco transparente, fixando uma meta, mas com bandas. Na prática, se você estabelece uma banda inferior, a sua meta para valer vai ser a banda inferior porque é ela que dispara os mecanismos da LRF. Essa questão começou a ser discutida e o governo rapidamente se apressou e mudou a meta para não ter de ser questionado por descumprimento. Tudo isso vai tirando a credibilidade da política fiscal.
O governo aposta em aumento de arrecadação e que o PIB vai crescer para estabilizar a dívida. Dá para manter assim?
Vai crescer magicamente, né? O governo continua achando que gasto é vida e tem dificuldade de perceber que a economia com desequilíbrio fiscal gera inflação, essa inflação se comunica com juros e você passa a ter taxas mais elevados. Quando os juros sobem, cai o investimento e isso rebate no crescimento econômico. O desequilíbrio fiscal é nocivo ao crescimento econômico.
O que precisa ser feito?
O foco deveria ser na adoção das medidas. Deveríamos discutir quais são as reformas estruturais que o País necessita, discutir reforma administrativa, quais são as privatizações necessárias, qual é a reforma da Previdência que vai precisar ser feita. Não vamos resolver um desequilíbrio estrutural de grandes proporções, que torna a dívida pública explosiva, com meta fiscal e contingenciamento.
É preciso mexer no cálculo da meta?
É um erro se apurar resultado primário por caixa porque o cálculo é apenas suplementar. Deveria ser apurado por competência, até porque você não pode adiar despesas, dar calote em fornecedores ou adiar salários e ter o benefício de adiar o resultado primário. Tem uma trajetória crescente de restos a pagar para gerar resultado primário e isso é muito ruim. Toda despesa tem de estar na meta. O meu pedido é que não percam tempo discutindo qual é o puxadinho que vão fazer na meta.
De puxadinho em puxadinho, o governo pode ir gastando e aprovando o Orçamento. Qual é o risco disso?
Você pode tentar pedalar, mas a transparência se impõe. As instituições reagem. Vimos uma reação do Tribunal de Contas da União muito forte no passado ao rejeitar as contas da Dilma. Existe um risco de o mercado avaliar de maneira cada vez pior o governo e isso afetar as condições de financiamento da dívida pública. Então, os juros sobem e isso afeta a economia como um todo. E aí vem o aspecto político da situação. Ninguém gosta de conviver com o aumento de preços, com uma economia que tem baixo crescimento econômico, e isso pode afetar o pleito de 2026.
O terceiro mandato de Lula pode repetir Dilma 2?
Na gestão fiscal, está bem parecido. Se persistir nessa trajetória e começar a procurar puxadinho, a gente pode chegar a isso. Ainda falta um tempo, mas, mesmo que não seja pelo TCU ou por mudanças institucionais mais pesadas, pode ser pela própria via eleitoral.
As transferências para Estados e municípios aumentaram, mas o controle diminuiu. Quais são as consequências?
As transferências têm crescido muito a reboque das emendas parlamentares. Agora existe o fenômeno das emendas pix e temos um problema de fragmentação do gasto. O governo federal faz um planejamento, vem o Congresso e agrega emendas, mas são emendas que muitas vezes não estão conectadas com os objetivos da política pública. Isso vai gerando um problema crescente de controle, qualidade do gasto e transparência. É óbvio que o Congresso precisa ter uma participação no Orçamento, mas essa questão precisa ser equacionada.
Quais são os efeitos colaterais da tragédia no Rio Grande do Sul e do socorro da União?
A situação emergencial tem de ser resolvida, a União tem de botar dinheiro com crédito extraordinário e ponto. As medidas de longo prazo, como questões climáticas, também têm de ser tratadas em outro momento. E existe um problema estrutural na maneira como se corrige a dívida dos Estados. Hoje, a correção é IPCA mais 4%, que basicamente leva para a Selic. Não há medida estrutural que faça isso caber na conta. O Rio Grande do Sul sem a tragédia já estava com dificuldades. São vidas que se perderam, a economia acabou, junto com a capacidade de geração de receitas. Só suspender a dívida por três anos não adianta, porque o Estado precisa se recompor e inclusive rever esses juros lá na frente.