BRASÍLIA – Um estudo inédito da Fundação Getulio Vargas (FGV) sugere acelerar a regulamentação da Nova Lei do Gás para garantir a abertura do mercado, o aumento da concorrência, a ampliação da malha de transporte e a diminuição do preço do gás natural no Brasil. Mas há entraves, como a concentração da Petrobras no setor e falta de coordenação entre os Estados na definição das regras.
O estudo, ao qual o Estadão teve acesso, foi encomendado pelo governo federal em parceria com o Movimento Brasil Competitivo (MBC) e vai ser apresentado nesta segunda-feira, 22, pelo vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin, e pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, na sede Confederação Nacional da Indústria (CNI).
A abertura do mercado, de acordo com o diagnóstico, pode diminuir o preço do gás natural para a indústria e também para consumidores finais. Isso significa, na prática, uma oferta maior e mais barata do produto como fonte de energia na produção de alimentos, componentes químicos, fertilizantes, cerâmicas e até no aquecimento de água nas residências. Além disso, é uma fonte de energia mais limpa para o meio ambiente em comparação com o petróleo.
O gás natural respondeu por 10% do total de oferta de energia no Brasil em 2022, mas ainda está fortemente associado ao petróleo e à Petrobras. De toda a produção, 85% é associada ao petróleo, muitas vezes na exploração do próprio óleo e no abastecimento de usinas termelétricas. A estatal foi responsável por 70% de toda a produção de gás natural no período.
Por um lado, a oferta deve cair pelo declínio natural dos campos de produção e pela diminuição da compra do gás da Bolívia, que vem caindo nos últimos anos e deve zerar até 2030, mas tem potencial de se expandir pela abertura de novas rotas de escoamento do pré-sal que estão previstas na próxima década. O aumento da oferta pode vir do uso de outras fontes, como o biometano, já que o gás natural não é extraído apenas do petróleo.
A demanda não-termelétrica – aquela não associada fortemente ao petróleo –, por sua vez, está estagnada no Brasil em torno de 50 milhões de metros cúbicos por dia nos últimos dez anos, mostra o estudo. O País não tem demanda para consumo de gás natural nas residências, por exemplo. Menos de 10% dos municípios brasileiros contam com uma rede de gasoduto para transportar o produto.
Como o gás natural pode ser substituído em todas as suas utilizações, desde o uso na indústria até nas residências, o produto só fica atrativo se for mais barato – e aí está o entrave para a expansão do mercado.
“Como insumo, o preço é a questão. O mercado de gás natural permite uma participação de um número maior de agentes. Quando tem essa participação maior, a competição permite reduzir preços e isso significaria vantagens competitivas para o Brasil”, afirma a diretora do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da FGV, Joisa Dutra.
De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a barreira de entrada para novos concorrentes no setor caiu 30% no Brasil entre 2018 e 2021, com as mudanças na lei e os desinvestimentos da Petrobras, mas ainda está 50% acima da média dos outros países. Calcula-se que um empresa gasta R$ 25 bilhões a mais para por ano para ter acesso ao gás natural como fonte de energia do que gastaria em outros países como os Estados Unidos.
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O estudo conclui que a principal via para um mercado aberto e competitivo é aprofundar a reestruturação em curso, dando continuidade com a maior celeridade possível à regulamentação dos dispositivos da Nova Lei do Gás.
“O importante é ter acesso a um volume maior de gás natural a preços competitivos. Quanto mais concorrência, as condições tendem a ser melhores”, afirma o conselheiro executivo do Movimento Brasil Competitivo (MBC), Rogério Caiuby. “Temos uma janela de oportunidade enorme para transformar o gás natural em um grande diferencial competitivo do País e vemos disposição tanto do setor público quanto do setor privado.”
Concentração de mercado na Petrobras dificulta redução de preço
O estudo da FGV observa que há uma evolução na abertura do mercado no Brasil, pois a Petrobras tinha antes o domínio total da oferta do gás natural, mas há desafios. Contratos de longo prazo firmados pela empresa com distribuidoras deveriam ser evitados, pois podem refrear a busca por contratações mais vantajosas pelas distribuidoras, reduzindo o espaço para novos entrantes.
A mudança de governo e de gestão da Petrobras é outro ponto de preocupação. Em 2019, sob o governo Jair Bolsonaro, a Petrobras assinou um termo de compromisso com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para reduzir sua concentração no mercado e evitar um monopólio. O acordo previa que a estatal concentrasse suas atividades na exploração e produção do gás natural, deixando de atuar no transporte e na distribuição.
Sob o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a empresa tem focado em aumentar investimentos e reforçado o discurso de que é preciso recuperar planos abandonados no passado. “De fato, não percebemos mais o mesmo ímpeto da Petrobras de focar em desinvestimentos, mas o desejo de uma abertura gradual e moderada do mercado é compartilhado pela empresa e é benéfico para a companhia”, diz a diretora do centro de estudos da FGV, Joisa Dutra.
O estudo levantou 16 ações que dependem de regulamentação da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Brasil (ANP) para serem implementadas. Duas delas ainda não começaram. Uma, prevista para começar em setembro deste ano, diz respeito ao serviço de transporte de gás natural. A regulação vai definir para onde serão expandidas as redes que levam o gás natural para as indústrias e os consumidores e, consequentemente, para o mercado ser ampliado.
O estudo sugere investigação de alternativas mais eficientes para atender o mercado potencial com os recursos disponíveis, tendo em vista a extensão continental do Brasil, a concentração da malha de gasodutos na costa e sua maior densidade na região Sudeste e a dependência de volume mínimo para expansão de gasodutos. Em outras palavras, o gás deve ir para onde há potencial de consumo.
Como o Estadão mostrou, o governo prepara uma regulação para fixar o valor máximo que a Petrobras pode cobrar pelo uso dos sistemas de escoamento e processamento do gás natural – a infraestrutura que faz com que o gás saia do alto-mar e chegue até a costa brasileira. É mais uma queda de braço entre o Ministério de Minas e Energia e a petrolífera. Procurada, a Petrobras ainda não se manifestou.
Outro entrave para a abertura do mercado de gás natural apontado pelo diagnóstico é a falta de coordenação entre os Estados, que têm adotado caminhos diferentes na regulamentação. Um dos conflitos é própria definição do que é um gasoduto de transporte. Seis Estados (Amapá, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e São Paulo) têm dado definições diferentes das determinações da esfera federal.
Além disso, os Estados estão impondo limites diferentes para enquadramento do consumidor livre, aquele que pode escolher o fornecedor do produto. Enquanto São Paulo não impõe limite algum, o Pará diz que um agente livre deve consumir no mínimo 500 mil metros cúbicos por dia de de gás natural.
Conforme o Estadão apurou, o governo vai anunciar um trabalho de coordenação com os Estados para harmonizar a agenda regulatória e também criar indicadores claros para avaliar se as políticas públicas estão ajudando a melhorar os indicadores do mercado, acompanhamento que foi interrompido em 2022.
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