Real 30 anos: ‘Eu achava que era uma loucura ir para o governo Itamar’, afirma Edmar Bacha


No governo de Itamar Franco, Bacha foi o principal negociador do plano desenhado pela equipe econômica com o Congresso e ganhou o apelido de senador. Para colocar o Real de pé, enfrentou a pressa do presidente da República e de aliados políticos

Por Luiz Guilherme Gerbelli e Ricardo Grinbaum
Atualização:
Foto: Pedro Kirilos/Estadão
Entrevista comEdmar BachaFoi assessor do Ministério da Fazenda durante a elaboração do Plano Real

O economista Edmar Bacha diz ter criado uma armadilha para si próprio ao afirmar, depois do fracasso do Plano Cruzado, que só voltaria ao governo como parte do movimento político. Foi o que ocorreu. Na gestão de Itamar Franco, em 1993, retornou ao governo como assessor de Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda, e assumiu um papel de protagonismo na implementação do Real.

“Eu achava que era uma loucura ir para o governo naquela circunstância. Em sete meses, o Itamar já tinha demitido três ministros da Fazenda. Só tinha dois anos de governo e a situação parecia muito precária”, lembra. “Foi quando cheguei em Brasília, e o tucanato estava me esperando. O Mario Covas me disse: ‘Bacha, isso não é uma decisão do Fernando. É uma decisão do partido. Você é o economista do partido. Você vem conosco’.”

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Bacha foi o principal negociador do plano desenhado pela equipe econômica com o Congresso. Já tinha barba e cabelos brancos. Ganhou o apelido de senador. Também enfrentou muita pressão do presidente Itamar Franco e dos políticos do PSDB. Havia a defesa do congelamento de preços e todos tinham pressa de ver o plano lançado com a proximidade da eleição de 1994.

“Os políticos tinham muita pressa. O Itamar também. Quando o Fernando Henrique me levou para conversar com ele, eu expliquei, em geral, o plano. No final, eu pedi um autógrafo para os meus filhos. Ele me deu um autógrafo que dizia mais ou menos assim: ‘Para Júlia e Carlos Eduardo, com os meus cumprimentos e desejando que vocês digam para o seu pai ter muita velocidade para o bem do Brasil’.”, diz.

Na equipe do Plano Real, Bacha enfrentou a pressa dos políticos e a defesa do congelamento de preços Foto: Pedro Kirilos/Estadão
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A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

O Brasil vinha de várias tentativas fracassadas. Qual era o sentimento que vocês tinham naquela época? Havia uma confiança que iria dar certo?

A gente relutou muito. Tem até a história de uma reunião que o Fernando Henrique fez com a equipe econômica e com os advogados em que ele ficou irritado e saiu da reunião dizendo: “Não aguento mais. Os advogados dizem que tudo é inconstitucional, e vocês, economistas, dizem que tudo vai dar errado.” Havia muita incerteza. Não só pelo insucesso dos planos anteriores como pelo fato de que a situação do governo era muito precária. E, além disso, um plano daquele tipo nunca havia sido implementado em lugar nenhum. A gente estava saindo do quadro negro da PUC para a realidade política de Brasília. Sabe-se lá qual seria o resultado.

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O sr. já havia feito parte do governo e disse que só voltaria ao governo como parte de um movimento político. Como foi a sua chegada ao ministério do Fernando Henrique?

Depois do fracasso do Plano Cruzado, prometi a mim mesmo que jamais voltaria para o governo como tecnocrata. Voltaria para o governo como parte de um movimento político. E foi por isso que eu ingressei no PSDB logo que foi fundado. Era membro da comissão executiva. Fui economista da campanha do Covas (Mario Covas foi candidato a presidente na eleição de 1989). E, na verdade, eu achava que era uma loucura ir para o governo naquela circunstância. Em sete meses, o Itamar já tinha demitido três ministros da Fazenda. Só tinha dois anos de governo e a situação parecia muito precária. Foi quando cheguei em Brasília, e o tucanato estava me esperando. O Mario Covas me disse: “Bacha, isso não é uma decisão do Fernando. É uma decisão do partido. Você é o economista do partido. Você vem conosco”. Na verdade, eu armei uma armadilha para mim mesmo, porque eu disse que só voltava como parte de um movimento político, e o movimento político ali estava me dizendo que tinha chegado a hora.

O sr. poderia lembrar do episódio em que discutiram o plano na reunião com o Covas?

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Os economistas tinham muito medo de fazer a mágica. A mágica era a transformação da URV (Unidade Real de Valor) no real. A nossa experiência no Cruzado era de que, quando a gente fazia a mágica, a gente perdia o controle da situação. No Cruzado, uma vez que a gente fez o congelamento, nunca mais os economistas palpitaram no curso dos acontecimentos. E ali havia essa esperança totalmente ingênua dos economistas de que a gente podia levar a URV até o final do mandato do Itamar e só começar a nova moeda quando o Fernando Henrique fosse eleito. Mas a situação política era muito clara. Naquela circunstância, quem iria ser eleito era o Lula, não o Fernando Henrique, mesmo depois do lançamento da URV.

A pressão política era para o lançamento do real tão cedo quanto o possível. Essa reunião de setembro de 1993, quando nós explicamos para o comando do PSDB como é que o plano iria ser, especialmente para o Covas, que era o mais relutante. Ele era candidato a governador de São Paulo. Eu disse para ele que a inflação só iria baixar depois de meados do ano seguinte, ele quis ir embora. Mas, ao final, se convenceu. Se convenceu, assim, em termos, e falou: “Se é isso que vocês têm para fazer, então, eu vou com vocês para o precipício”.

Era essa a sensação geral?

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Os políticos tinham muita pressa. O Itamar também. Quando o Fernando Henrique me levou para conversar com ele, também em setembro, um pouco antes dessa reunião do PSDB, eu expliquei, em geral, o plano para o Itamar. No final, eu pedi um autógrafo para os meus filhos. Ele me deu um autógrafo que dizia mais ou menos assim: “Para Júlia e Carlos Eduardo, com os meus cumprimentos e desejando que vocês digam para o seu pai ter muita velocidade para o bem do Brasil”. Ele pediu muita velocidade, mas esperou nove meses até a criança nascer.

Qual foi o diagnóstico da equipe quando chegam no governo?

O diagnóstico a gente já tinha. As maneiras de lidar com essa inflação foram objetivo dos debates que tivemos na PUC no início dos anos 80. E desse debate saíram as duas grandes teses. A tese do Chico Lopes, do chamado choque heterodoxo, que foi aplicada no Plano Cruzado. E a tese do André Lara e do Persio Arida, da reforma monetária, que foi a que a gente, com diversas modificações, aplicou no Plano Real. Em meados de agosto de 1993, a gente já sabia o que fazer. A questão só era o medo que tínhamos de fazer o plano e perder o controle sobre a situação, perder o controle para o Itamar. Em fevereiro, já tinha tido um problema sério quando foi lançada a MP da URV. Antes do lançamento, o pessoal do Itamar queria modificar tudo. E o Fernando Henrique teve de bater a mão na mesa e dizer: “Ou é assim ou vou embora”. E de novo, na MP do lançamento do Real, o Ricupero teve de bater a mão na mesa, dizendo que tinha de ser do jeito que a gente tinha feito, não do jeito que o pessoal lá do Palácio do Planalto queria. A questão era, quando a gente entregasse o produto, como iria manter o controle nos cinco meses finais do governo Itamar, mas ele se comportou razoavelmente bem.

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O Itamar queria muito congelamento de preço?

Todo mundo queria congelamento. Não era só ele, não. Essa foi uma batalha interna que a gente teve dentro no governo desde o princípio.

Em depoimentos anteriores, o sr. chegou a dizer que imaginou que o Fernando Henrique iria pedir demissão nessa conversa com o Itamar. O que houve nesse encontro?

É engraçado que o Fernando Henrique não conta isso nas memórias dele. Jamais vamos saber. Mas você pode imaginar o que ele falou para o Itamar.

Mas no seu caso, já estava fazendo as malas? Já tinha desistido?

Eu achei que o Fernando Henrique iria chegar lá e dizer que iria embora. E o Itamar iria falar: “Então, está bom. Vou colocar aqui um ‘Itamarinho’”. A história é engraçada, porque tem uma série de acontecimentos implausíveis. Eu acho que duas semanas antes de o Persio e o André entrarem (no governo), tivemos um jantar em São Paulo e eu falei que a situação estava horrível. Eles disseram: “Você se mete em cada uma. Nós dois não vamos nos meter nisso, nem pensar.”

E como era a relação com o Itamar?

Comigo a relação era especial. Em 1974, quando eu estava na UnB, eu assessorava os deputados e os senadores do MDB contra a política econômica da ditadura. Franco Montoro, Itamar. Foi quando eu produzi a fábula de Belíndia (combinação de um país com características de Bélgica e Índia). Então, além de sermos ambos mineiros, eu já tinha essa relação com o Itamar lá de 1974. Tanto que eu pude pedir o autógrafo que ele deu muito carinhosamente. Ele sabia que era difícil conversar conosco. Nunca houve uma troca, exceto por essa reunião que fui só eu, ele e o Fernando Henrique. Nunca houve uma interação forte assim da equipe econômica com Itamar. Era tudo intermediado. Primeiro, pelo Fernando Henrique e, depois, pelo Ricupero.

Como funcionava a decisão da equipe econômica?

Não tinha hierarquia. Estávamos acostumados a discutir muito entre nós na PUC, sem hierarquia. Agora, tinha um bom administrador, que era o Clovis Carvalho. O Clóvis Carvalho que organizava as reuniões, mas ele não era economista. O Clóvis só administrava o processo de forma muito eficaz. Foi ótimo ter o Clóvis lá. Ele era bem mestre-escola nesse sentido, de toda semana tinha dever de casa para ser apresentado na semana seguinte. No final, era por consenso. Nem por consenso. Como o Clóvis dizia, era por consentimento. Ele dizia: “Vocês podem não concordar, mas vocês têm de consentir”.

Sucesso do Plano Real só foi garantido porque elegeu Fernando Henrique, avalia Bacha Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Na opinião do sr., o que foi decisivo para o plano dar certo?

Eu acho que o sucesso do plano, de fato, foi só garantido porque ele elegeu o Fernando Henrique. E eleito, o Fernando Henrique, nos quatro anos seguintes, tratou de manter a estabilidade. O André Lara sempre falava que fazer a inflação cair de súbito a gente sabe como fazer. A gente não sabe como mantê-la baixa. E isso só pode acontecer porque o Fernando Henrique foi eleito e implementou (as medidas necessárias) durante seus quatro anos, com muita dificuldade, porque a situação internacional foi muito ruim, com a crise do México, depois a crise da Coreia do Sul e da Rússia. Foi com muita dificuldade, como eu disse, que ele conseguiu implementar as políticas todas necessárias para sustentação do plano.

O sr. era o nome da equipe econômica que mais negociava com o Congresso. Ficou conhecido como ‘senador’. Como era esse processo?

A gente tinha, de saída, os votos do PSDB e do PFL (atual União Brasil). O PSDB tinha o candidato (a presidente), que era Fernando Henrique. E o PFL tinha um vice candidato, o Marco Maciel. Mas isso era só 25% dos votos no Congresso. Precisava de mais 25% E quem tinha os outros 20%? O MDB (antigo PMDB). O MDB tinha um candidato a presidente, que era o Quércia, que levou 4% votos. A negociação foi basicamente com o MDB, porque o PT olhou aquilo e falou: “Sou contra”. O pessoal mais à direita, junto com o Bolsonaro, olhou aquilo e falou: “Sou contra”. Se a gente conseguisse levar o MDB inteiro, a gente tinha 50% (dos votos). Então, houve essa negociação com o MDB, da qual a gente teve de fazer diversas concessões que não foram boas para o plano.

Por exemplo?

Nós tivemos de indexar os salários por um ano, até junho de 1995, e criar um índice de preços, o IPC-r (calculado durante o período de julho de 1994 a junho de 1995). E, obviamente, não sei se já ouviram falar na maldição dos índices. A maldição é a seguinte: toda vez que o governo inventa um novo índice, o novo índice dá mais alto que o antigo. O IPC-r deu 6% em julho, deu 5% em agosto. Foi um horror. A negociação com o Congresso teve um trade off. Você trocou um plano que era muito bom, do jeito que a gente mandou para o Congresso, por um plano bom. Mas tivemos o apoio do Congresso. Pudemos dizer que (o plano) tinha apoio, não é uma coisa tecnocrática. Tinha o apoio dos representantes do povo.

O sr. descreve um período de muitas crises, negociações e problemas. Houve algum momento que o sr. achou que o plano fosse naufragar?

Os primeiros seis meses do plano foram complicados, porque a inflação não baixou do jeito que a gente esperava. Houve a indexação de salários e o câmbio se valorizou muito, ao contrário do que a gente esperava, de manter em um (um dólar para um real). O dólar foi para 0,83 real. E isso criou problemas no lado das exportações. O crédito também se expandiu muito. Quando chegou em dezembro, a situação era ruim porque tinha um problema de excesso de demanda na economia e a inflação não tinha caído tanto. Precisava praticar uma política de contenção monetária e fiscal muito forte, além de manter a âncora cambial. Tivemos de subir os juros muito naquele período. Foram para valores inacreditavelmente altos para poder sustentar aquela situação. Então, foi apenas a determinação do Fernando Henrique, com todo o conjunto de reformas estruturais que ele promoveu, no setor financeiro e as privatizações. Foram reformas fundamentais para a sustentação do plano a médio prazo e que, inclusive, permitiu que, quando o Real flutuou, em janeiro de 99, aquela flutuação não significasse a volta da inflação. Aquele momento ali também foi muito crítico.

E quando a estabilidade ficou clara?

A estabilidade só ficou clara em 2003. Em 2002, teve a crise com a transição do medo do Lula. O que o Lula vai fazer quando entrar? O câmbio foi lá para o alto, a inflação também subiu muito, seguindo o câmbio. Mas aí o Lula se comportou, pelo menos nos dois primeiros anos. Foi aí que que houve uma certa percepção de que, mesmo sem Fernando Henrique, o plano estava consolidado, a estabilidade estava consolidada.

E, agora, qual deve ser o novo Plano Real do Brasil?

A gente conseguiu resolver dois problemas que foram a alta de preços e a dívida externa. E a gente deu uma boa melhorada na distribuição de renda, mas ela continua ainda muito ruim. Tem muito o que fazer nisso. Agora, o que a gente não conseguiu foi colocar essa economia numa trajetória de crescimento sustentado. O Brasil tem patinado. Desde a Dilma, a gente não está conseguindo quase nada em termos de crescimento de renda per capita. Eu acho que o Brasil continua a ter um problema de crescimento. Além da questão de crescimento com justiça social, há o problema do crescimento com sustentabilidade. Veja essa crise aí no Rio Grande do Sul. São questões que estão ainda na mesa.

Brasil precisa ter educação de melhor qualidade, um governo eficiente e abrir a economia para o mundo, afirma Bacha Foto: Pedro Kirilos/Estadão

E qual seria o caminho para o Brasil?

Ter uma educação de melhor qualidade, um governo eficiente e abrir a economia para o mundo. Que tal essa receitinha?

Não estamos perto...

Não.

Hoje, o Brasil ainda é Belíndia? Qual seria a imagem para o Brasil?

Eu acho que é Belíndia ainda. Nós temos uma distribuição de renda muito ruim ainda. A estabilidade deu poder de compra ao salário do trabalhador. Depois, os programas de transferências de renda ajudaram. Mas a desigualdade continua sendo um problema muito fundamental da nossa sociedade. É muito difícil imaginar que a gente vai conseguir sustentar a democracia brasileira com tanta desigualdade.

Por quê?

A desigualdade cria um apelo do populismo que é quase irresistível. Na questão da estabilidade, a gente ganhou essa guerra, mas queriam fazer era controle de preços. Foi o que a Dilma tentou fazer para não ter de fazer a coisa mais dura. Nós temos esse problema. O Delfim (Netto, ex-ministro da Fazenda) uma vez disse que, de certo, ele fez desse país uma Belíndia e, quanto nós fomos governo, fizemos desse país uma Ingana, impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana. E é verdade. Nós aumentamos extraordinariamente a carga tributária desde o Plano Real. São 10 pontos de porcentagem do PIB e o governo continua não conseguindo entregar serviços públicos de qualidade, como de educação, saúde, infraestrutura e segurança. Essa é uma problemática séria. Como é que nós vamos fazer um governo eficiente?

A nossa indústria também continua olhando para o próprio umbigo, totalmente relutante em sair para fora e deixar produtos importados entrarem na economia do País. Temos uma indústria que produz a preços elevados e continua atrás do governo. Isso eu acho muito errado. É a força dos interesses dessa elite empresarial que nós temos de explorar monopolisticamente ou oligopolisticamente o mercado nacional e não deixa ter concorrência com produtos importados. Só rico pode ter acesso a produto importado quando vai para fora (do País). Isso mostra como esse País ainda é uma Belíndia. É muito difícil do jeito que a coisa está indo, com essa alternativa entre Bolsonaro e Lula, perceber como é que a gente vai ter uma liderança tão esclarecida como o Fernando Henrique para enfrentar esses enormes desafios que o País tem para frente.

Há espaço para uma terceira via?

Eu espero que haja, porque é aí que nós estamos. Obviamente, o PSDB desapareceu. Tem o Leite (Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul), tem a governadora de Pernambuco (Raquel Lyra). Mas é muito pouco. Tem de formar uma composição com outros partidos para poder criar uma alternativa.

O economista Edmar Bacha diz ter criado uma armadilha para si próprio ao afirmar, depois do fracasso do Plano Cruzado, que só voltaria ao governo como parte do movimento político. Foi o que ocorreu. Na gestão de Itamar Franco, em 1993, retornou ao governo como assessor de Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda, e assumiu um papel de protagonismo na implementação do Real.

“Eu achava que era uma loucura ir para o governo naquela circunstância. Em sete meses, o Itamar já tinha demitido três ministros da Fazenda. Só tinha dois anos de governo e a situação parecia muito precária”, lembra. “Foi quando cheguei em Brasília, e o tucanato estava me esperando. O Mario Covas me disse: ‘Bacha, isso não é uma decisão do Fernando. É uma decisão do partido. Você é o economista do partido. Você vem conosco’.”

Bacha foi o principal negociador do plano desenhado pela equipe econômica com o Congresso. Já tinha barba e cabelos brancos. Ganhou o apelido de senador. Também enfrentou muita pressão do presidente Itamar Franco e dos políticos do PSDB. Havia a defesa do congelamento de preços e todos tinham pressa de ver o plano lançado com a proximidade da eleição de 1994.

“Os políticos tinham muita pressa. O Itamar também. Quando o Fernando Henrique me levou para conversar com ele, eu expliquei, em geral, o plano. No final, eu pedi um autógrafo para os meus filhos. Ele me deu um autógrafo que dizia mais ou menos assim: ‘Para Júlia e Carlos Eduardo, com os meus cumprimentos e desejando que vocês digam para o seu pai ter muita velocidade para o bem do Brasil’.”, diz.

Na equipe do Plano Real, Bacha enfrentou a pressa dos políticos e a defesa do congelamento de preços Foto: Pedro Kirilos/Estadão

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

O Brasil vinha de várias tentativas fracassadas. Qual era o sentimento que vocês tinham naquela época? Havia uma confiança que iria dar certo?

A gente relutou muito. Tem até a história de uma reunião que o Fernando Henrique fez com a equipe econômica e com os advogados em que ele ficou irritado e saiu da reunião dizendo: “Não aguento mais. Os advogados dizem que tudo é inconstitucional, e vocês, economistas, dizem que tudo vai dar errado.” Havia muita incerteza. Não só pelo insucesso dos planos anteriores como pelo fato de que a situação do governo era muito precária. E, além disso, um plano daquele tipo nunca havia sido implementado em lugar nenhum. A gente estava saindo do quadro negro da PUC para a realidade política de Brasília. Sabe-se lá qual seria o resultado.

O sr. já havia feito parte do governo e disse que só voltaria ao governo como parte de um movimento político. Como foi a sua chegada ao ministério do Fernando Henrique?

Depois do fracasso do Plano Cruzado, prometi a mim mesmo que jamais voltaria para o governo como tecnocrata. Voltaria para o governo como parte de um movimento político. E foi por isso que eu ingressei no PSDB logo que foi fundado. Era membro da comissão executiva. Fui economista da campanha do Covas (Mario Covas foi candidato a presidente na eleição de 1989). E, na verdade, eu achava que era uma loucura ir para o governo naquela circunstância. Em sete meses, o Itamar já tinha demitido três ministros da Fazenda. Só tinha dois anos de governo e a situação parecia muito precária. Foi quando cheguei em Brasília, e o tucanato estava me esperando. O Mario Covas me disse: “Bacha, isso não é uma decisão do Fernando. É uma decisão do partido. Você é o economista do partido. Você vem conosco”. Na verdade, eu armei uma armadilha para mim mesmo, porque eu disse que só voltava como parte de um movimento político, e o movimento político ali estava me dizendo que tinha chegado a hora.

O sr. poderia lembrar do episódio em que discutiram o plano na reunião com o Covas?

Os economistas tinham muito medo de fazer a mágica. A mágica era a transformação da URV (Unidade Real de Valor) no real. A nossa experiência no Cruzado era de que, quando a gente fazia a mágica, a gente perdia o controle da situação. No Cruzado, uma vez que a gente fez o congelamento, nunca mais os economistas palpitaram no curso dos acontecimentos. E ali havia essa esperança totalmente ingênua dos economistas de que a gente podia levar a URV até o final do mandato do Itamar e só começar a nova moeda quando o Fernando Henrique fosse eleito. Mas a situação política era muito clara. Naquela circunstância, quem iria ser eleito era o Lula, não o Fernando Henrique, mesmo depois do lançamento da URV.

A pressão política era para o lançamento do real tão cedo quanto o possível. Essa reunião de setembro de 1993, quando nós explicamos para o comando do PSDB como é que o plano iria ser, especialmente para o Covas, que era o mais relutante. Ele era candidato a governador de São Paulo. Eu disse para ele que a inflação só iria baixar depois de meados do ano seguinte, ele quis ir embora. Mas, ao final, se convenceu. Se convenceu, assim, em termos, e falou: “Se é isso que vocês têm para fazer, então, eu vou com vocês para o precipício”.

Era essa a sensação geral?

Os políticos tinham muita pressa. O Itamar também. Quando o Fernando Henrique me levou para conversar com ele, também em setembro, um pouco antes dessa reunião do PSDB, eu expliquei, em geral, o plano para o Itamar. No final, eu pedi um autógrafo para os meus filhos. Ele me deu um autógrafo que dizia mais ou menos assim: “Para Júlia e Carlos Eduardo, com os meus cumprimentos e desejando que vocês digam para o seu pai ter muita velocidade para o bem do Brasil”. Ele pediu muita velocidade, mas esperou nove meses até a criança nascer.

Qual foi o diagnóstico da equipe quando chegam no governo?

O diagnóstico a gente já tinha. As maneiras de lidar com essa inflação foram objetivo dos debates que tivemos na PUC no início dos anos 80. E desse debate saíram as duas grandes teses. A tese do Chico Lopes, do chamado choque heterodoxo, que foi aplicada no Plano Cruzado. E a tese do André Lara e do Persio Arida, da reforma monetária, que foi a que a gente, com diversas modificações, aplicou no Plano Real. Em meados de agosto de 1993, a gente já sabia o que fazer. A questão só era o medo que tínhamos de fazer o plano e perder o controle sobre a situação, perder o controle para o Itamar. Em fevereiro, já tinha tido um problema sério quando foi lançada a MP da URV. Antes do lançamento, o pessoal do Itamar queria modificar tudo. E o Fernando Henrique teve de bater a mão na mesa e dizer: “Ou é assim ou vou embora”. E de novo, na MP do lançamento do Real, o Ricupero teve de bater a mão na mesa, dizendo que tinha de ser do jeito que a gente tinha feito, não do jeito que o pessoal lá do Palácio do Planalto queria. A questão era, quando a gente entregasse o produto, como iria manter o controle nos cinco meses finais do governo Itamar, mas ele se comportou razoavelmente bem.

O Itamar queria muito congelamento de preço?

Todo mundo queria congelamento. Não era só ele, não. Essa foi uma batalha interna que a gente teve dentro no governo desde o princípio.

Em depoimentos anteriores, o sr. chegou a dizer que imaginou que o Fernando Henrique iria pedir demissão nessa conversa com o Itamar. O que houve nesse encontro?

É engraçado que o Fernando Henrique não conta isso nas memórias dele. Jamais vamos saber. Mas você pode imaginar o que ele falou para o Itamar.

Mas no seu caso, já estava fazendo as malas? Já tinha desistido?

Eu achei que o Fernando Henrique iria chegar lá e dizer que iria embora. E o Itamar iria falar: “Então, está bom. Vou colocar aqui um ‘Itamarinho’”. A história é engraçada, porque tem uma série de acontecimentos implausíveis. Eu acho que duas semanas antes de o Persio e o André entrarem (no governo), tivemos um jantar em São Paulo e eu falei que a situação estava horrível. Eles disseram: “Você se mete em cada uma. Nós dois não vamos nos meter nisso, nem pensar.”

E como era a relação com o Itamar?

Comigo a relação era especial. Em 1974, quando eu estava na UnB, eu assessorava os deputados e os senadores do MDB contra a política econômica da ditadura. Franco Montoro, Itamar. Foi quando eu produzi a fábula de Belíndia (combinação de um país com características de Bélgica e Índia). Então, além de sermos ambos mineiros, eu já tinha essa relação com o Itamar lá de 1974. Tanto que eu pude pedir o autógrafo que ele deu muito carinhosamente. Ele sabia que era difícil conversar conosco. Nunca houve uma troca, exceto por essa reunião que fui só eu, ele e o Fernando Henrique. Nunca houve uma interação forte assim da equipe econômica com Itamar. Era tudo intermediado. Primeiro, pelo Fernando Henrique e, depois, pelo Ricupero.

Como funcionava a decisão da equipe econômica?

Não tinha hierarquia. Estávamos acostumados a discutir muito entre nós na PUC, sem hierarquia. Agora, tinha um bom administrador, que era o Clovis Carvalho. O Clóvis Carvalho que organizava as reuniões, mas ele não era economista. O Clóvis só administrava o processo de forma muito eficaz. Foi ótimo ter o Clóvis lá. Ele era bem mestre-escola nesse sentido, de toda semana tinha dever de casa para ser apresentado na semana seguinte. No final, era por consenso. Nem por consenso. Como o Clóvis dizia, era por consentimento. Ele dizia: “Vocês podem não concordar, mas vocês têm de consentir”.

Sucesso do Plano Real só foi garantido porque elegeu Fernando Henrique, avalia Bacha Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Na opinião do sr., o que foi decisivo para o plano dar certo?

Eu acho que o sucesso do plano, de fato, foi só garantido porque ele elegeu o Fernando Henrique. E eleito, o Fernando Henrique, nos quatro anos seguintes, tratou de manter a estabilidade. O André Lara sempre falava que fazer a inflação cair de súbito a gente sabe como fazer. A gente não sabe como mantê-la baixa. E isso só pode acontecer porque o Fernando Henrique foi eleito e implementou (as medidas necessárias) durante seus quatro anos, com muita dificuldade, porque a situação internacional foi muito ruim, com a crise do México, depois a crise da Coreia do Sul e da Rússia. Foi com muita dificuldade, como eu disse, que ele conseguiu implementar as políticas todas necessárias para sustentação do plano.

O sr. era o nome da equipe econômica que mais negociava com o Congresso. Ficou conhecido como ‘senador’. Como era esse processo?

A gente tinha, de saída, os votos do PSDB e do PFL (atual União Brasil). O PSDB tinha o candidato (a presidente), que era Fernando Henrique. E o PFL tinha um vice candidato, o Marco Maciel. Mas isso era só 25% dos votos no Congresso. Precisava de mais 25% E quem tinha os outros 20%? O MDB (antigo PMDB). O MDB tinha um candidato a presidente, que era o Quércia, que levou 4% votos. A negociação foi basicamente com o MDB, porque o PT olhou aquilo e falou: “Sou contra”. O pessoal mais à direita, junto com o Bolsonaro, olhou aquilo e falou: “Sou contra”. Se a gente conseguisse levar o MDB inteiro, a gente tinha 50% (dos votos). Então, houve essa negociação com o MDB, da qual a gente teve de fazer diversas concessões que não foram boas para o plano.

Por exemplo?

Nós tivemos de indexar os salários por um ano, até junho de 1995, e criar um índice de preços, o IPC-r (calculado durante o período de julho de 1994 a junho de 1995). E, obviamente, não sei se já ouviram falar na maldição dos índices. A maldição é a seguinte: toda vez que o governo inventa um novo índice, o novo índice dá mais alto que o antigo. O IPC-r deu 6% em julho, deu 5% em agosto. Foi um horror. A negociação com o Congresso teve um trade off. Você trocou um plano que era muito bom, do jeito que a gente mandou para o Congresso, por um plano bom. Mas tivemos o apoio do Congresso. Pudemos dizer que (o plano) tinha apoio, não é uma coisa tecnocrática. Tinha o apoio dos representantes do povo.

O sr. descreve um período de muitas crises, negociações e problemas. Houve algum momento que o sr. achou que o plano fosse naufragar?

Os primeiros seis meses do plano foram complicados, porque a inflação não baixou do jeito que a gente esperava. Houve a indexação de salários e o câmbio se valorizou muito, ao contrário do que a gente esperava, de manter em um (um dólar para um real). O dólar foi para 0,83 real. E isso criou problemas no lado das exportações. O crédito também se expandiu muito. Quando chegou em dezembro, a situação era ruim porque tinha um problema de excesso de demanda na economia e a inflação não tinha caído tanto. Precisava praticar uma política de contenção monetária e fiscal muito forte, além de manter a âncora cambial. Tivemos de subir os juros muito naquele período. Foram para valores inacreditavelmente altos para poder sustentar aquela situação. Então, foi apenas a determinação do Fernando Henrique, com todo o conjunto de reformas estruturais que ele promoveu, no setor financeiro e as privatizações. Foram reformas fundamentais para a sustentação do plano a médio prazo e que, inclusive, permitiu que, quando o Real flutuou, em janeiro de 99, aquela flutuação não significasse a volta da inflação. Aquele momento ali também foi muito crítico.

E quando a estabilidade ficou clara?

A estabilidade só ficou clara em 2003. Em 2002, teve a crise com a transição do medo do Lula. O que o Lula vai fazer quando entrar? O câmbio foi lá para o alto, a inflação também subiu muito, seguindo o câmbio. Mas aí o Lula se comportou, pelo menos nos dois primeiros anos. Foi aí que que houve uma certa percepção de que, mesmo sem Fernando Henrique, o plano estava consolidado, a estabilidade estava consolidada.

E, agora, qual deve ser o novo Plano Real do Brasil?

A gente conseguiu resolver dois problemas que foram a alta de preços e a dívida externa. E a gente deu uma boa melhorada na distribuição de renda, mas ela continua ainda muito ruim. Tem muito o que fazer nisso. Agora, o que a gente não conseguiu foi colocar essa economia numa trajetória de crescimento sustentado. O Brasil tem patinado. Desde a Dilma, a gente não está conseguindo quase nada em termos de crescimento de renda per capita. Eu acho que o Brasil continua a ter um problema de crescimento. Além da questão de crescimento com justiça social, há o problema do crescimento com sustentabilidade. Veja essa crise aí no Rio Grande do Sul. São questões que estão ainda na mesa.

Brasil precisa ter educação de melhor qualidade, um governo eficiente e abrir a economia para o mundo, afirma Bacha Foto: Pedro Kirilos/Estadão

E qual seria o caminho para o Brasil?

Ter uma educação de melhor qualidade, um governo eficiente e abrir a economia para o mundo. Que tal essa receitinha?

Não estamos perto...

Não.

Hoje, o Brasil ainda é Belíndia? Qual seria a imagem para o Brasil?

Eu acho que é Belíndia ainda. Nós temos uma distribuição de renda muito ruim ainda. A estabilidade deu poder de compra ao salário do trabalhador. Depois, os programas de transferências de renda ajudaram. Mas a desigualdade continua sendo um problema muito fundamental da nossa sociedade. É muito difícil imaginar que a gente vai conseguir sustentar a democracia brasileira com tanta desigualdade.

Por quê?

A desigualdade cria um apelo do populismo que é quase irresistível. Na questão da estabilidade, a gente ganhou essa guerra, mas queriam fazer era controle de preços. Foi o que a Dilma tentou fazer para não ter de fazer a coisa mais dura. Nós temos esse problema. O Delfim (Netto, ex-ministro da Fazenda) uma vez disse que, de certo, ele fez desse país uma Belíndia e, quanto nós fomos governo, fizemos desse país uma Ingana, impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana. E é verdade. Nós aumentamos extraordinariamente a carga tributária desde o Plano Real. São 10 pontos de porcentagem do PIB e o governo continua não conseguindo entregar serviços públicos de qualidade, como de educação, saúde, infraestrutura e segurança. Essa é uma problemática séria. Como é que nós vamos fazer um governo eficiente?

A nossa indústria também continua olhando para o próprio umbigo, totalmente relutante em sair para fora e deixar produtos importados entrarem na economia do País. Temos uma indústria que produz a preços elevados e continua atrás do governo. Isso eu acho muito errado. É a força dos interesses dessa elite empresarial que nós temos de explorar monopolisticamente ou oligopolisticamente o mercado nacional e não deixa ter concorrência com produtos importados. Só rico pode ter acesso a produto importado quando vai para fora (do País). Isso mostra como esse País ainda é uma Belíndia. É muito difícil do jeito que a coisa está indo, com essa alternativa entre Bolsonaro e Lula, perceber como é que a gente vai ter uma liderança tão esclarecida como o Fernando Henrique para enfrentar esses enormes desafios que o País tem para frente.

Há espaço para uma terceira via?

Eu espero que haja, porque é aí que nós estamos. Obviamente, o PSDB desapareceu. Tem o Leite (Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul), tem a governadora de Pernambuco (Raquel Lyra). Mas é muito pouco. Tem de formar uma composição com outros partidos para poder criar uma alternativa.

O economista Edmar Bacha diz ter criado uma armadilha para si próprio ao afirmar, depois do fracasso do Plano Cruzado, que só voltaria ao governo como parte do movimento político. Foi o que ocorreu. Na gestão de Itamar Franco, em 1993, retornou ao governo como assessor de Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda, e assumiu um papel de protagonismo na implementação do Real.

“Eu achava que era uma loucura ir para o governo naquela circunstância. Em sete meses, o Itamar já tinha demitido três ministros da Fazenda. Só tinha dois anos de governo e a situação parecia muito precária”, lembra. “Foi quando cheguei em Brasília, e o tucanato estava me esperando. O Mario Covas me disse: ‘Bacha, isso não é uma decisão do Fernando. É uma decisão do partido. Você é o economista do partido. Você vem conosco’.”

Bacha foi o principal negociador do plano desenhado pela equipe econômica com o Congresso. Já tinha barba e cabelos brancos. Ganhou o apelido de senador. Também enfrentou muita pressão do presidente Itamar Franco e dos políticos do PSDB. Havia a defesa do congelamento de preços e todos tinham pressa de ver o plano lançado com a proximidade da eleição de 1994.

“Os políticos tinham muita pressa. O Itamar também. Quando o Fernando Henrique me levou para conversar com ele, eu expliquei, em geral, o plano. No final, eu pedi um autógrafo para os meus filhos. Ele me deu um autógrafo que dizia mais ou menos assim: ‘Para Júlia e Carlos Eduardo, com os meus cumprimentos e desejando que vocês digam para o seu pai ter muita velocidade para o bem do Brasil’.”, diz.

Na equipe do Plano Real, Bacha enfrentou a pressa dos políticos e a defesa do congelamento de preços Foto: Pedro Kirilos/Estadão

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

O Brasil vinha de várias tentativas fracassadas. Qual era o sentimento que vocês tinham naquela época? Havia uma confiança que iria dar certo?

A gente relutou muito. Tem até a história de uma reunião que o Fernando Henrique fez com a equipe econômica e com os advogados em que ele ficou irritado e saiu da reunião dizendo: “Não aguento mais. Os advogados dizem que tudo é inconstitucional, e vocês, economistas, dizem que tudo vai dar errado.” Havia muita incerteza. Não só pelo insucesso dos planos anteriores como pelo fato de que a situação do governo era muito precária. E, além disso, um plano daquele tipo nunca havia sido implementado em lugar nenhum. A gente estava saindo do quadro negro da PUC para a realidade política de Brasília. Sabe-se lá qual seria o resultado.

O sr. já havia feito parte do governo e disse que só voltaria ao governo como parte de um movimento político. Como foi a sua chegada ao ministério do Fernando Henrique?

Depois do fracasso do Plano Cruzado, prometi a mim mesmo que jamais voltaria para o governo como tecnocrata. Voltaria para o governo como parte de um movimento político. E foi por isso que eu ingressei no PSDB logo que foi fundado. Era membro da comissão executiva. Fui economista da campanha do Covas (Mario Covas foi candidato a presidente na eleição de 1989). E, na verdade, eu achava que era uma loucura ir para o governo naquela circunstância. Em sete meses, o Itamar já tinha demitido três ministros da Fazenda. Só tinha dois anos de governo e a situação parecia muito precária. Foi quando cheguei em Brasília, e o tucanato estava me esperando. O Mario Covas me disse: “Bacha, isso não é uma decisão do Fernando. É uma decisão do partido. Você é o economista do partido. Você vem conosco”. Na verdade, eu armei uma armadilha para mim mesmo, porque eu disse que só voltava como parte de um movimento político, e o movimento político ali estava me dizendo que tinha chegado a hora.

O sr. poderia lembrar do episódio em que discutiram o plano na reunião com o Covas?

Os economistas tinham muito medo de fazer a mágica. A mágica era a transformação da URV (Unidade Real de Valor) no real. A nossa experiência no Cruzado era de que, quando a gente fazia a mágica, a gente perdia o controle da situação. No Cruzado, uma vez que a gente fez o congelamento, nunca mais os economistas palpitaram no curso dos acontecimentos. E ali havia essa esperança totalmente ingênua dos economistas de que a gente podia levar a URV até o final do mandato do Itamar e só começar a nova moeda quando o Fernando Henrique fosse eleito. Mas a situação política era muito clara. Naquela circunstância, quem iria ser eleito era o Lula, não o Fernando Henrique, mesmo depois do lançamento da URV.

A pressão política era para o lançamento do real tão cedo quanto o possível. Essa reunião de setembro de 1993, quando nós explicamos para o comando do PSDB como é que o plano iria ser, especialmente para o Covas, que era o mais relutante. Ele era candidato a governador de São Paulo. Eu disse para ele que a inflação só iria baixar depois de meados do ano seguinte, ele quis ir embora. Mas, ao final, se convenceu. Se convenceu, assim, em termos, e falou: “Se é isso que vocês têm para fazer, então, eu vou com vocês para o precipício”.

Era essa a sensação geral?

Os políticos tinham muita pressa. O Itamar também. Quando o Fernando Henrique me levou para conversar com ele, também em setembro, um pouco antes dessa reunião do PSDB, eu expliquei, em geral, o plano para o Itamar. No final, eu pedi um autógrafo para os meus filhos. Ele me deu um autógrafo que dizia mais ou menos assim: “Para Júlia e Carlos Eduardo, com os meus cumprimentos e desejando que vocês digam para o seu pai ter muita velocidade para o bem do Brasil”. Ele pediu muita velocidade, mas esperou nove meses até a criança nascer.

Qual foi o diagnóstico da equipe quando chegam no governo?

O diagnóstico a gente já tinha. As maneiras de lidar com essa inflação foram objetivo dos debates que tivemos na PUC no início dos anos 80. E desse debate saíram as duas grandes teses. A tese do Chico Lopes, do chamado choque heterodoxo, que foi aplicada no Plano Cruzado. E a tese do André Lara e do Persio Arida, da reforma monetária, que foi a que a gente, com diversas modificações, aplicou no Plano Real. Em meados de agosto de 1993, a gente já sabia o que fazer. A questão só era o medo que tínhamos de fazer o plano e perder o controle sobre a situação, perder o controle para o Itamar. Em fevereiro, já tinha tido um problema sério quando foi lançada a MP da URV. Antes do lançamento, o pessoal do Itamar queria modificar tudo. E o Fernando Henrique teve de bater a mão na mesa e dizer: “Ou é assim ou vou embora”. E de novo, na MP do lançamento do Real, o Ricupero teve de bater a mão na mesa, dizendo que tinha de ser do jeito que a gente tinha feito, não do jeito que o pessoal lá do Palácio do Planalto queria. A questão era, quando a gente entregasse o produto, como iria manter o controle nos cinco meses finais do governo Itamar, mas ele se comportou razoavelmente bem.

O Itamar queria muito congelamento de preço?

Todo mundo queria congelamento. Não era só ele, não. Essa foi uma batalha interna que a gente teve dentro no governo desde o princípio.

Em depoimentos anteriores, o sr. chegou a dizer que imaginou que o Fernando Henrique iria pedir demissão nessa conversa com o Itamar. O que houve nesse encontro?

É engraçado que o Fernando Henrique não conta isso nas memórias dele. Jamais vamos saber. Mas você pode imaginar o que ele falou para o Itamar.

Mas no seu caso, já estava fazendo as malas? Já tinha desistido?

Eu achei que o Fernando Henrique iria chegar lá e dizer que iria embora. E o Itamar iria falar: “Então, está bom. Vou colocar aqui um ‘Itamarinho’”. A história é engraçada, porque tem uma série de acontecimentos implausíveis. Eu acho que duas semanas antes de o Persio e o André entrarem (no governo), tivemos um jantar em São Paulo e eu falei que a situação estava horrível. Eles disseram: “Você se mete em cada uma. Nós dois não vamos nos meter nisso, nem pensar.”

E como era a relação com o Itamar?

Comigo a relação era especial. Em 1974, quando eu estava na UnB, eu assessorava os deputados e os senadores do MDB contra a política econômica da ditadura. Franco Montoro, Itamar. Foi quando eu produzi a fábula de Belíndia (combinação de um país com características de Bélgica e Índia). Então, além de sermos ambos mineiros, eu já tinha essa relação com o Itamar lá de 1974. Tanto que eu pude pedir o autógrafo que ele deu muito carinhosamente. Ele sabia que era difícil conversar conosco. Nunca houve uma troca, exceto por essa reunião que fui só eu, ele e o Fernando Henrique. Nunca houve uma interação forte assim da equipe econômica com Itamar. Era tudo intermediado. Primeiro, pelo Fernando Henrique e, depois, pelo Ricupero.

Como funcionava a decisão da equipe econômica?

Não tinha hierarquia. Estávamos acostumados a discutir muito entre nós na PUC, sem hierarquia. Agora, tinha um bom administrador, que era o Clovis Carvalho. O Clóvis Carvalho que organizava as reuniões, mas ele não era economista. O Clóvis só administrava o processo de forma muito eficaz. Foi ótimo ter o Clóvis lá. Ele era bem mestre-escola nesse sentido, de toda semana tinha dever de casa para ser apresentado na semana seguinte. No final, era por consenso. Nem por consenso. Como o Clóvis dizia, era por consentimento. Ele dizia: “Vocês podem não concordar, mas vocês têm de consentir”.

Sucesso do Plano Real só foi garantido porque elegeu Fernando Henrique, avalia Bacha Foto: Pedro Kirilos/Estadão

Na opinião do sr., o que foi decisivo para o plano dar certo?

Eu acho que o sucesso do plano, de fato, foi só garantido porque ele elegeu o Fernando Henrique. E eleito, o Fernando Henrique, nos quatro anos seguintes, tratou de manter a estabilidade. O André Lara sempre falava que fazer a inflação cair de súbito a gente sabe como fazer. A gente não sabe como mantê-la baixa. E isso só pode acontecer porque o Fernando Henrique foi eleito e implementou (as medidas necessárias) durante seus quatro anos, com muita dificuldade, porque a situação internacional foi muito ruim, com a crise do México, depois a crise da Coreia do Sul e da Rússia. Foi com muita dificuldade, como eu disse, que ele conseguiu implementar as políticas todas necessárias para sustentação do plano.

O sr. era o nome da equipe econômica que mais negociava com o Congresso. Ficou conhecido como ‘senador’. Como era esse processo?

A gente tinha, de saída, os votos do PSDB e do PFL (atual União Brasil). O PSDB tinha o candidato (a presidente), que era Fernando Henrique. E o PFL tinha um vice candidato, o Marco Maciel. Mas isso era só 25% dos votos no Congresso. Precisava de mais 25% E quem tinha os outros 20%? O MDB (antigo PMDB). O MDB tinha um candidato a presidente, que era o Quércia, que levou 4% votos. A negociação foi basicamente com o MDB, porque o PT olhou aquilo e falou: “Sou contra”. O pessoal mais à direita, junto com o Bolsonaro, olhou aquilo e falou: “Sou contra”. Se a gente conseguisse levar o MDB inteiro, a gente tinha 50% (dos votos). Então, houve essa negociação com o MDB, da qual a gente teve de fazer diversas concessões que não foram boas para o plano.

Por exemplo?

Nós tivemos de indexar os salários por um ano, até junho de 1995, e criar um índice de preços, o IPC-r (calculado durante o período de julho de 1994 a junho de 1995). E, obviamente, não sei se já ouviram falar na maldição dos índices. A maldição é a seguinte: toda vez que o governo inventa um novo índice, o novo índice dá mais alto que o antigo. O IPC-r deu 6% em julho, deu 5% em agosto. Foi um horror. A negociação com o Congresso teve um trade off. Você trocou um plano que era muito bom, do jeito que a gente mandou para o Congresso, por um plano bom. Mas tivemos o apoio do Congresso. Pudemos dizer que (o plano) tinha apoio, não é uma coisa tecnocrática. Tinha o apoio dos representantes do povo.

O sr. descreve um período de muitas crises, negociações e problemas. Houve algum momento que o sr. achou que o plano fosse naufragar?

Os primeiros seis meses do plano foram complicados, porque a inflação não baixou do jeito que a gente esperava. Houve a indexação de salários e o câmbio se valorizou muito, ao contrário do que a gente esperava, de manter em um (um dólar para um real). O dólar foi para 0,83 real. E isso criou problemas no lado das exportações. O crédito também se expandiu muito. Quando chegou em dezembro, a situação era ruim porque tinha um problema de excesso de demanda na economia e a inflação não tinha caído tanto. Precisava praticar uma política de contenção monetária e fiscal muito forte, além de manter a âncora cambial. Tivemos de subir os juros muito naquele período. Foram para valores inacreditavelmente altos para poder sustentar aquela situação. Então, foi apenas a determinação do Fernando Henrique, com todo o conjunto de reformas estruturais que ele promoveu, no setor financeiro e as privatizações. Foram reformas fundamentais para a sustentação do plano a médio prazo e que, inclusive, permitiu que, quando o Real flutuou, em janeiro de 99, aquela flutuação não significasse a volta da inflação. Aquele momento ali também foi muito crítico.

E quando a estabilidade ficou clara?

A estabilidade só ficou clara em 2003. Em 2002, teve a crise com a transição do medo do Lula. O que o Lula vai fazer quando entrar? O câmbio foi lá para o alto, a inflação também subiu muito, seguindo o câmbio. Mas aí o Lula se comportou, pelo menos nos dois primeiros anos. Foi aí que que houve uma certa percepção de que, mesmo sem Fernando Henrique, o plano estava consolidado, a estabilidade estava consolidada.

E, agora, qual deve ser o novo Plano Real do Brasil?

A gente conseguiu resolver dois problemas que foram a alta de preços e a dívida externa. E a gente deu uma boa melhorada na distribuição de renda, mas ela continua ainda muito ruim. Tem muito o que fazer nisso. Agora, o que a gente não conseguiu foi colocar essa economia numa trajetória de crescimento sustentado. O Brasil tem patinado. Desde a Dilma, a gente não está conseguindo quase nada em termos de crescimento de renda per capita. Eu acho que o Brasil continua a ter um problema de crescimento. Além da questão de crescimento com justiça social, há o problema do crescimento com sustentabilidade. Veja essa crise aí no Rio Grande do Sul. São questões que estão ainda na mesa.

Brasil precisa ter educação de melhor qualidade, um governo eficiente e abrir a economia para o mundo, afirma Bacha Foto: Pedro Kirilos/Estadão

E qual seria o caminho para o Brasil?

Ter uma educação de melhor qualidade, um governo eficiente e abrir a economia para o mundo. Que tal essa receitinha?

Não estamos perto...

Não.

Hoje, o Brasil ainda é Belíndia? Qual seria a imagem para o Brasil?

Eu acho que é Belíndia ainda. Nós temos uma distribuição de renda muito ruim ainda. A estabilidade deu poder de compra ao salário do trabalhador. Depois, os programas de transferências de renda ajudaram. Mas a desigualdade continua sendo um problema muito fundamental da nossa sociedade. É muito difícil imaginar que a gente vai conseguir sustentar a democracia brasileira com tanta desigualdade.

Por quê?

A desigualdade cria um apelo do populismo que é quase irresistível. Na questão da estabilidade, a gente ganhou essa guerra, mas queriam fazer era controle de preços. Foi o que a Dilma tentou fazer para não ter de fazer a coisa mais dura. Nós temos esse problema. O Delfim (Netto, ex-ministro da Fazenda) uma vez disse que, de certo, ele fez desse país uma Belíndia e, quanto nós fomos governo, fizemos desse país uma Ingana, impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana. E é verdade. Nós aumentamos extraordinariamente a carga tributária desde o Plano Real. São 10 pontos de porcentagem do PIB e o governo continua não conseguindo entregar serviços públicos de qualidade, como de educação, saúde, infraestrutura e segurança. Essa é uma problemática séria. Como é que nós vamos fazer um governo eficiente?

A nossa indústria também continua olhando para o próprio umbigo, totalmente relutante em sair para fora e deixar produtos importados entrarem na economia do País. Temos uma indústria que produz a preços elevados e continua atrás do governo. Isso eu acho muito errado. É a força dos interesses dessa elite empresarial que nós temos de explorar monopolisticamente ou oligopolisticamente o mercado nacional e não deixa ter concorrência com produtos importados. Só rico pode ter acesso a produto importado quando vai para fora (do País). Isso mostra como esse País ainda é uma Belíndia. É muito difícil do jeito que a coisa está indo, com essa alternativa entre Bolsonaro e Lula, perceber como é que a gente vai ter uma liderança tão esclarecida como o Fernando Henrique para enfrentar esses enormes desafios que o País tem para frente.

Há espaço para uma terceira via?

Eu espero que haja, porque é aí que nós estamos. Obviamente, o PSDB desapareceu. Tem o Leite (Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul), tem a governadora de Pernambuco (Raquel Lyra). Mas é muito pouco. Tem de formar uma composição com outros partidos para poder criar uma alternativa.

Entrevista por Luiz Guilherme Gerbelli
Ricardo Grinbaum

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