Real 30 anos: ‘Plano retirou o País da cracolândia monetária’, afirma Gustavo Franco


Economista construiu sua carreira acadêmica estudando hiperinflação e foi para o governo em 1993 como integrante do ministério de FHC. No mesmo ano, migrou para o BC e virou presidente da instituição em 1997. Em Brasília, diz que ‘não se chega com o remédio pronto’.

Por Luiz Guilherme Gerbelli
Foto: Taba Benedicto/Estadão
Entrevista comGustavo FrancoChega ao governo em 1993 como secretário adjunto de Política Econômica. Também foi presidente do BC

O economista Gustavo Franco construiu a sua carreira acadêmica estudando hiperinflação, assunto que se transformou no principal desafio econômico da sua geração, no grande fantasma do País nos anos 1980 e 1990 e que acabou o levando para Brasília.

Com a decisão do PSDB de aceitar o Ministério da Fazenda no governo Itamar, Gustavo Franco, ao lado de Edmar Bacha e Winston Fritsch, fez parte da primeira equipe de Fernando Henrique Cardoso no comando da pasta. Em 1993, foi nomeado secretário adjunto de Política Econômica.

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“Não se chega lá em Brasília com o remédio pronto”, diz ele. “O jeito de fazer é importante. Você chega com ideias gerais, chega com um acervo de experiências de outros países, tem o acervo da nossa própria experiência fracassada de combate à inflação, que é muito valioso.”

No mesmo ano, Franco migra para Banco Central, para assumir o cargo de diretor de Assuntos Internacionais. E, em 1997, assume a presidência da instituição. Fica no cargo até 1999, quando o País decide abandonar a âncora cambial.

“Tem muita coisa para fazer. Não é que o nosso desempenho em inflação seja particularmente ruim. Ruim é o nosso desempenho em matéria de crescimento, mas que não era o assunto do Plano Real”, afirma. “O Plano Real não era um plano de crescimento, de desenvolvimento. Era um plano de saúde para a economia, de retirar o país da cracolândia monetária.”

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'Real foi um plano de saúde econômica', diz Gustavo Franco Foto: Taba Benedicto/Estadão

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Quando chegam ao Ministério da Fazenda já havia uma certeza do que fazer?

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Não se chega lá em Brasília com o remédio pronto. Tem mais. O jeito de fazer é importante. Você chega com ideias gerais, chega com um acervo de experiências de outros países, tem o acervo da nossa própria experiência fracassada de combate à inflação, que é muito valioso. E as novas ideias têm de, então, entrar em operação e muitas delas a gente só vai ver se são boas ou ruins na operação, na hora da implementação. É também o jeito de conduzir depois que você anunciou. Não é um bolo que está pronto e acabou, inclusive, decisões que você teve de tomar, problemas novos, surpresas inesperadas têm o tempo inteiro. E lidar com isso, lidar com o dia a dia do plano de estabilização é a batalha. Você pode planejar uma batalha o quanto quiser, mas, na hora que começar o jogo, vai vir uma coisa que você não esperava.

O sr. se lembra de algum fato importante que veio e não era esperado?

Todos. Não tem nada que seja absolutamente esperado e dê para antecipar. É como o mercado financeiro. Todo dia é um dia diferente. Experimenta adivinhar o que vão ser as ações da Petrobras amanhã ou Ibovespa depois de amanhã. Não. Não tem adivinhação. Você pode ter boas ideias e bons princípios, mas o acaso é muito importante nisso tudo.

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Como era a relação do sr. com o governo Itamar?

Não era próximo, mas o presidente era próximo do ministro Fernando Henrique, que era quem melhor lidava com o presidente, que, como qualquer presidente, estava preocupado com as coisas que preocupam os presidentes. Enfim, nem sempre é fácil. Tem um problema de linguagem, de explicar, além do que ele acaba sendo o centro ou foi, nesse caso, o centro de pressões conceituais. Tivemos debates sobre conversão de salários pela média ou como converter o salário mínimo de cruzeiros reais para real. E problemas, assim, técnicos, mas de grandes implicações populares, por exemplo, fazer ou não fazer um congelamento de preços? Nós éramos radicalmente contra.

Às vezes, os políticos não têm a mesma sensibilidade que nós, técnicos, para distinguir uma ideia péssima de outra boa. Era difícil convencer não apenas o presidente Itamar, mas líderes do PSDB de que o congelamento era uma péssima ideia. Os políticos estão sempre ali, prestando a atenção em tudo o que você está fazendo, criticando ou o fato de não ter congelamento ou a taxa de câmbio ou a taxa de juros. Político está sempre ali querendo que a gente tome decisões políticas, e a gente está querendo tomar decisões técnicas. E é sempre difícil.

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Havia uma preocupação de o plano dar errado?

Sim, todos os dias. Essas coisas não se têm certeza de coisa alguma. E cada dia é um dia diferente. E tem dias que você acorda achando que deu tudo errado. E tem dias que sai tudo certo. É como se fosse todo dia um jogo de basquete, que é 149 a 148 a favor ou 127 a 126 contra. Você não ganha todas, mas ganha muitas. E, às vezes, ganha de goleada. Mas tem dias que você perde. E aí é vamos viver um dia de cada vez. Vamos ganhar o campeonato. Vamos ganhar a guerra. E foi assim.

"É como se fosse todo dia um jogo de basquete, que é 149 a 148 a favor ou 127 a 126 contra", diz Gustavo Franco Foto: Taba Benedicto/Estadão
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Faltou algo no plano na avaliação do sr.?

Sempre que me perguntam eu digo que, sim, faltou uma coisa. Teria feito uma enorme diferença. Era ter feito a revisão Constitucional em 1993. Se tivesse sido feita, teríamos economizado um enorme volume de energia que foi despendido para passar Emendas Constitucionais com quatro votações nas duas casas para fazer, por exemplo, a reforma da Previdência, entre outras coisas. Poderíamos ter feito ali de forma muito mais fácil. Mas as lideranças políticas da ocasião preferiram abreviar e não fazer praticamente a revisão. A Constituição foi feita em 1988 com certa liberalidade - vamos colocar assim - se imaginando que cinco anos depois poderia haver uma revisão para cortar os excessos. Mas aí chegou cinco anos depois e decidiu-se que não iam cortar os excessos.

Havia uma discussão de empurrar a conclusão do plano para 1995, diante da possibilidade de vitória do Fernando Henrique?

O plano foi lançado em fevereiro de 1994. Dia 1º de março a URV estava na rua e já em lei, que, quando a URV fosse emitida como dinheiro, se chamaria real. Então, se pode até dizer que o real foi criado ali. E julho era só o cumprimento de uma etapa já prevista. Quanto tempo iria durar essa fase de transição, nenhum de nós sabia dizer. Era preciso esperar para ver a velocidade com que a sociedade brasileira iria assimilar e entender o conceito da URV. E o fato é que foi muito mais rápido do que todos nós estávamos imaginando. O mais otimista de nós não esperaria que fosse tão rápido. E aí, talvez, com 15 dias a gente já tivesse certeza que dava para fazer num período de tempo curto, quem sabe um mês ou dois.

Eu acho que, naquela ocasião, a gente podia, talvez, com algum esforço, ter feito a moeda um pouco antes. Mas tinha uma vantagem de fazer em 1º de julho. Seriam quatro meses inteiros e um final de semestre. Havia uma conveniência enorme de demonstrações financeiras e outras coisas. Um semestre que começava em 1º de julho começava com a moeda nova.

O Fernando Henrique ganha a eleição, mas lida com várias crises internacionais no primeiro mandato. Qual foi o desafio de manter o plano de pé nesse cenário?

Não é o começo da presidência Fernando Henrique que dá início a uma fase nova do plano. É 1º de julho. Eu acho que dá para imaginar o seguinte: no mês de junho de 1994, a variação da URV foi de 50%, o que é 12.500% ao ano. É aí que a gente começa. Quando sai o IPCA de julho, um mês depois da operação da URV, a inflação foi de 6,8%, aproximadamente 120% ao ano. Então, o primeiro momento é o impacto positivo sobre a inflação da URV. Esse mecanismo tão engenhoso e tão celebrado fez essa primeira redução na inflação. Mas 120% ao ano, caramba, 6,8% ao mês é muito. Depois, foi caindo mês a mês. De tal sorte, que a gente pode fazer a conta da inflação dos primeiros 12 meses do real, e quanto deu? 33%.

É uma queda importante…

Então, veja: 12.500%, 120%, 33%. Estamos em meados de 1995, com seis meses dentro da presidência do Fernando Henrique, mas tendo (o real) funcionado seis meses no restante da presidência Itamar Franco com política monetária e cambial, porque não tem mais a URV. Depois de 1º de julho, é reduzir a inflação com a ferramenta convencional de política monetária e política cambial, com o fiscal sempre mais ou menos, como a gente sabe. Mas 33% para os primeiros 12 meses foi excelente comparado com 12.500%. Só que ainda não é o ponto de chegada. Caiu abaixo de 10% ao ano em 1997, meados do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique, quando estavam começando as tempestades internacionais. E nós terminamos 1997 com a inflação abaixo de 5% ao ano, com crise Internacional e tudo. Em 1998, veio mais tempestade internacional e sabe quanto foi o IPCA do ano? 1,6%. Até hoje não teve um ano com a inflação tão baixa.

Cada fase teve a sua estratégia. O primeiro grande golpe sobre a hiperinflação foi a URV e a reforma monetária. Mas a partir daí, foi como se saísse de cena o armamento de alta tecnologia e entrasse a infantaria com suas baionetas, com a taxa de juro e de câmbio e vamos fazer ali o dia a dia. E foi aí que a gente trouxe de 120% para 1,6%. E quando no ano seguinte, começa o sistema de metas de inflação, já andamos todo esse caminho e cortamos a grama alta. Já é um desafio diferente. Não é mais fácil ou menos fácil. É diferente. É aí o que o sistema de metas que começa em 1999 é o que a gente tem até hoje. Esse é o roteiro.

E quando o grande teste da estabilização fica cumprido, então?

O plano de estabilização, de combate a hiper, eu acho que você podia dizer que em 1998 estava quase totalmente cumprido, uma vez que a gente chegou com a inflação igual a dos Estados Unidos, mas ainda permanecia, naquele momento, um desafio que levou outros cinco anos para se vencer. Era o desafio da alternância do poder. Ou seja, em algum momento a oposição vai ganhar a eleição e vai ser governo, porque é assim qualquer democracia. E nesse momento, os críticos do Plano Real iriam ser governo.

É nesse momento que nós teríamos um teste importantíssimo. Foi a eleição de 2002 e o medo que ela trouxe, com o efeito que teve sobre a taxa de câmbio e a inflação, com o que o novo governo eleito faria, se manteria o acordo com FMI (Fundo Monetário Internacional), o superávit primário, o Banco Central e tudo isso. E manteve tudo bonitinho igual estava. Foi o encerramento glorioso do plano, a vitória da estabilização e o sucesso do empreendimento.

Hoje, o cenário é bem diferente, mas não conseguimos entregar uma inflação de 3% como outros países da América Latina e nem chegar naquele 1,6%. Por quê?

Nós estamos numa faixa de variação de inflação que, para quem como eu viveu aqueles tempos de guerra, que diferença faz, né? Claro que é importante cumprir a meta de 3% e não de 3,5%, mas eu sei que é só meio por cento ao ano e sei que, numa certa altura, meio por cento era a inflação de uma manhã. A gente superou a hiperinflação. Vamos festejar isso, mas com a cautela de quem sabe o que foram os piores momentos do alcoolismo. Não vamos por causa disso achar que a gente pode tomar um drinque assim à toa. Não. Calma lá. As pequenas dosagens desse veneno atuam no organismo econômico brasileiro de forma muito complexa. É melhor não correr o risco e, por isso, os economistas são tão zelosos com esse assunto de inflação e se preocupam com variações que parecem tão pequenas feito os números do passado.

Tem muita coisa para fazer. Não é que o nosso desempenho em inflação seja particularmente ruim. Ruim é o nosso desempenho em matéria de crescimento, mas que não era o assunto do Plano Real. O Plano Real não era um plano de crescimento, de desenvolvimento. Era um plano de saúde para a economia, de retirar o país da cracolândia monetária, onde se encontrava, dentro da qual a vida econômica inteligente era impossível. Isso foi feito com sucesso. Agora, a tarefa de fazer o Brasil ser um país de alto crescimento é diferente. Envolve reformas, por exemplo, onde a gente está vendo aí a encrenca que é para fazer cada coisa. É tudo tão difícil. Hoje, em matéria de crescimento, a Ásia dá uma goleada no Brasil. Fracassamos em matéria de política de crescimento por causa de ideias velhas e obsoletas sobre mercado interno, substituição de importação, protecionismo. Essas coisas, que tem sido difícil a gente largar. E as reformas têm a ver com isso, mas espero que nos próximos 30 anos fiquem mais fácil.

Essa é a agenda que o Brasil precisa, então?

Sim, continua sendo. Acho que depois do décimo ano do real, quando já tinha ficado para trás a experiência da vitória sobre a hiperinflação e a mudança de governo, é possível ver que a agenda de reforma está muito viva. Mas ela não é uma agenda abraçada pelo PT, que é o partido que fica a maior parte do tempo nos primeiros 30 anos do real, curiosamente. A gente, no livro, fez a estatística. De 1994 até (o real) fazer 30 anos, foram mais ou menos 11 mil dias. Mais 50% do tempo é o PT (que está no governo). Os primeiros 3,1 mil dias foram Itamar, e Fernando Henrique, FH1 e FH2. Depois, vem 5 mil dias de PT, que é Lula 1, Lula 2, Dilma 1 e Dilma 2. Michel Temer, Jair Bolsonaro, todos foram presidentes com o real nesses 30 anos. E vem o Lula 3, e o PT fica majoritário nesse período todo. Nos primeiros tempos do real, a batalha era contra a hiperinflação. Ganhamos. Mas no segundo momento, seriam as reformas. Essas não foram feitas e, desculpa, eu ponho a conta no PT. Eles foram o governo na maior parte do tempo, e são agora. E o que nós estamos vendo de reformas? Pouca coisa.

Nos últimos 30 anos, cada momento é diferente e tem uma agenda, diz Franco Foto: Taba Benedicto/Estadão

Esse livro ao qual o sr. se referiu é sobre os 30 anos do Plano Real e traz textos assinados pelo sr., pelo Edmar Bacha e pelo Pedro Malan. Qual é o objetivo da publicação?

A gente quis buscar os textos que esses autores escreveram por ocasião dos aniversários do real. Nós tínhamos um registro do que a gente falou no campo de batalha, no calor do momento. Depois de 30 anos, a gente fica muito inteligente olhando para trás. Mas o que você falou lá, quando estava acontecendo? As dúvidas, os medos, as batalhas dos inimigos daquele momento. Isso é superimportante. A gente conseguiu trazer artigos que fizemos ao longo do caminho e separar com nitidez, o que eram as questões do 5º ano, como âncora cambial e taxa de juros. As questões do décimo ano, com mudança de governo. As questões do ano número 15, do número 20 e do 25. Do ano 15, salvo engano, é a crise de 2008. Do 20, é a nova matriz. Do 25, é Jair Bolsonaro. E o 30, que é onde estamos.

Cada momento é diferente. E a cada momento, tem uma agenda. Você ouvirá falar de reformas em todos esses momentos. Algumas reformas tiveram de ser feitas no primeiro momento para o pessoal acreditar no que estava sendo feito, algumas de implicação fiscal. A mais importante ali no início teve a ver com a governança da moeda, a reforma do Conselho Monetário Nacional, a criação do Copom, a nova disciplina da moeda, porque, afinal, a inflação é uma doença da moeda. Não esquecer disso. Essa experiência do real demonstra com clareza. Você pode fazer o diagnóstico que você quiser da natureza da inflação brasileira, dizer que ela é filosófica, estrutural, o escambau, mas o que resolveu foi uma reforma monetária. Então, tem a ver com moeda. O remédio que deu certo foi uma reforma monetária e uma reforma radical da governança da moeda. Não vamos nunca mais, espero eu, mexer nisso.

Como todo esse balanço, há algum arrependimento?

O balanço é superpositivo. Você sempre pode dizer que faria diferença se tivesse bola de cristal, mas a gente não tem. A história real é uma história de pessoas que tomam decisões sempre em condições imperfeitas, sem saber o futuro e em circunstâncias que não são as ideais. Dizer o que eu faria em condições ideais? Não sei, mas as condições ideais, eu posso dizer, elas nunca existem. Você sempre tomará decisões sabendo menos do que você gostaria e acreditando nas suas convicções. O que a gente fez, a gente fez e acho que foi a melhor coisa nas circunstâncias difíceis que a gente viveu.

O economista Gustavo Franco construiu a sua carreira acadêmica estudando hiperinflação, assunto que se transformou no principal desafio econômico da sua geração, no grande fantasma do País nos anos 1980 e 1990 e que acabou o levando para Brasília.

Com a decisão do PSDB de aceitar o Ministério da Fazenda no governo Itamar, Gustavo Franco, ao lado de Edmar Bacha e Winston Fritsch, fez parte da primeira equipe de Fernando Henrique Cardoso no comando da pasta. Em 1993, foi nomeado secretário adjunto de Política Econômica.

“Não se chega lá em Brasília com o remédio pronto”, diz ele. “O jeito de fazer é importante. Você chega com ideias gerais, chega com um acervo de experiências de outros países, tem o acervo da nossa própria experiência fracassada de combate à inflação, que é muito valioso.”

No mesmo ano, Franco migra para Banco Central, para assumir o cargo de diretor de Assuntos Internacionais. E, em 1997, assume a presidência da instituição. Fica no cargo até 1999, quando o País decide abandonar a âncora cambial.

“Tem muita coisa para fazer. Não é que o nosso desempenho em inflação seja particularmente ruim. Ruim é o nosso desempenho em matéria de crescimento, mas que não era o assunto do Plano Real”, afirma. “O Plano Real não era um plano de crescimento, de desenvolvimento. Era um plano de saúde para a economia, de retirar o país da cracolândia monetária.”

'Real foi um plano de saúde econômica', diz Gustavo Franco Foto: Taba Benedicto/Estadão

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Quando chegam ao Ministério da Fazenda já havia uma certeza do que fazer?

Não se chega lá em Brasília com o remédio pronto. Tem mais. O jeito de fazer é importante. Você chega com ideias gerais, chega com um acervo de experiências de outros países, tem o acervo da nossa própria experiência fracassada de combate à inflação, que é muito valioso. E as novas ideias têm de, então, entrar em operação e muitas delas a gente só vai ver se são boas ou ruins na operação, na hora da implementação. É também o jeito de conduzir depois que você anunciou. Não é um bolo que está pronto e acabou, inclusive, decisões que você teve de tomar, problemas novos, surpresas inesperadas têm o tempo inteiro. E lidar com isso, lidar com o dia a dia do plano de estabilização é a batalha. Você pode planejar uma batalha o quanto quiser, mas, na hora que começar o jogo, vai vir uma coisa que você não esperava.

O sr. se lembra de algum fato importante que veio e não era esperado?

Todos. Não tem nada que seja absolutamente esperado e dê para antecipar. É como o mercado financeiro. Todo dia é um dia diferente. Experimenta adivinhar o que vão ser as ações da Petrobras amanhã ou Ibovespa depois de amanhã. Não. Não tem adivinhação. Você pode ter boas ideias e bons princípios, mas o acaso é muito importante nisso tudo.

Como era a relação do sr. com o governo Itamar?

Não era próximo, mas o presidente era próximo do ministro Fernando Henrique, que era quem melhor lidava com o presidente, que, como qualquer presidente, estava preocupado com as coisas que preocupam os presidentes. Enfim, nem sempre é fácil. Tem um problema de linguagem, de explicar, além do que ele acaba sendo o centro ou foi, nesse caso, o centro de pressões conceituais. Tivemos debates sobre conversão de salários pela média ou como converter o salário mínimo de cruzeiros reais para real. E problemas, assim, técnicos, mas de grandes implicações populares, por exemplo, fazer ou não fazer um congelamento de preços? Nós éramos radicalmente contra.

Às vezes, os políticos não têm a mesma sensibilidade que nós, técnicos, para distinguir uma ideia péssima de outra boa. Era difícil convencer não apenas o presidente Itamar, mas líderes do PSDB de que o congelamento era uma péssima ideia. Os políticos estão sempre ali, prestando a atenção em tudo o que você está fazendo, criticando ou o fato de não ter congelamento ou a taxa de câmbio ou a taxa de juros. Político está sempre ali querendo que a gente tome decisões políticas, e a gente está querendo tomar decisões técnicas. E é sempre difícil.

Havia uma preocupação de o plano dar errado?

Sim, todos os dias. Essas coisas não se têm certeza de coisa alguma. E cada dia é um dia diferente. E tem dias que você acorda achando que deu tudo errado. E tem dias que sai tudo certo. É como se fosse todo dia um jogo de basquete, que é 149 a 148 a favor ou 127 a 126 contra. Você não ganha todas, mas ganha muitas. E, às vezes, ganha de goleada. Mas tem dias que você perde. E aí é vamos viver um dia de cada vez. Vamos ganhar o campeonato. Vamos ganhar a guerra. E foi assim.

"É como se fosse todo dia um jogo de basquete, que é 149 a 148 a favor ou 127 a 126 contra", diz Gustavo Franco Foto: Taba Benedicto/Estadão

Faltou algo no plano na avaliação do sr.?

Sempre que me perguntam eu digo que, sim, faltou uma coisa. Teria feito uma enorme diferença. Era ter feito a revisão Constitucional em 1993. Se tivesse sido feita, teríamos economizado um enorme volume de energia que foi despendido para passar Emendas Constitucionais com quatro votações nas duas casas para fazer, por exemplo, a reforma da Previdência, entre outras coisas. Poderíamos ter feito ali de forma muito mais fácil. Mas as lideranças políticas da ocasião preferiram abreviar e não fazer praticamente a revisão. A Constituição foi feita em 1988 com certa liberalidade - vamos colocar assim - se imaginando que cinco anos depois poderia haver uma revisão para cortar os excessos. Mas aí chegou cinco anos depois e decidiu-se que não iam cortar os excessos.

Havia uma discussão de empurrar a conclusão do plano para 1995, diante da possibilidade de vitória do Fernando Henrique?

O plano foi lançado em fevereiro de 1994. Dia 1º de março a URV estava na rua e já em lei, que, quando a URV fosse emitida como dinheiro, se chamaria real. Então, se pode até dizer que o real foi criado ali. E julho era só o cumprimento de uma etapa já prevista. Quanto tempo iria durar essa fase de transição, nenhum de nós sabia dizer. Era preciso esperar para ver a velocidade com que a sociedade brasileira iria assimilar e entender o conceito da URV. E o fato é que foi muito mais rápido do que todos nós estávamos imaginando. O mais otimista de nós não esperaria que fosse tão rápido. E aí, talvez, com 15 dias a gente já tivesse certeza que dava para fazer num período de tempo curto, quem sabe um mês ou dois.

Eu acho que, naquela ocasião, a gente podia, talvez, com algum esforço, ter feito a moeda um pouco antes. Mas tinha uma vantagem de fazer em 1º de julho. Seriam quatro meses inteiros e um final de semestre. Havia uma conveniência enorme de demonstrações financeiras e outras coisas. Um semestre que começava em 1º de julho começava com a moeda nova.

O Fernando Henrique ganha a eleição, mas lida com várias crises internacionais no primeiro mandato. Qual foi o desafio de manter o plano de pé nesse cenário?

Não é o começo da presidência Fernando Henrique que dá início a uma fase nova do plano. É 1º de julho. Eu acho que dá para imaginar o seguinte: no mês de junho de 1994, a variação da URV foi de 50%, o que é 12.500% ao ano. É aí que a gente começa. Quando sai o IPCA de julho, um mês depois da operação da URV, a inflação foi de 6,8%, aproximadamente 120% ao ano. Então, o primeiro momento é o impacto positivo sobre a inflação da URV. Esse mecanismo tão engenhoso e tão celebrado fez essa primeira redução na inflação. Mas 120% ao ano, caramba, 6,8% ao mês é muito. Depois, foi caindo mês a mês. De tal sorte, que a gente pode fazer a conta da inflação dos primeiros 12 meses do real, e quanto deu? 33%.

É uma queda importante…

Então, veja: 12.500%, 120%, 33%. Estamos em meados de 1995, com seis meses dentro da presidência do Fernando Henrique, mas tendo (o real) funcionado seis meses no restante da presidência Itamar Franco com política monetária e cambial, porque não tem mais a URV. Depois de 1º de julho, é reduzir a inflação com a ferramenta convencional de política monetária e política cambial, com o fiscal sempre mais ou menos, como a gente sabe. Mas 33% para os primeiros 12 meses foi excelente comparado com 12.500%. Só que ainda não é o ponto de chegada. Caiu abaixo de 10% ao ano em 1997, meados do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique, quando estavam começando as tempestades internacionais. E nós terminamos 1997 com a inflação abaixo de 5% ao ano, com crise Internacional e tudo. Em 1998, veio mais tempestade internacional e sabe quanto foi o IPCA do ano? 1,6%. Até hoje não teve um ano com a inflação tão baixa.

Cada fase teve a sua estratégia. O primeiro grande golpe sobre a hiperinflação foi a URV e a reforma monetária. Mas a partir daí, foi como se saísse de cena o armamento de alta tecnologia e entrasse a infantaria com suas baionetas, com a taxa de juro e de câmbio e vamos fazer ali o dia a dia. E foi aí que a gente trouxe de 120% para 1,6%. E quando no ano seguinte, começa o sistema de metas de inflação, já andamos todo esse caminho e cortamos a grama alta. Já é um desafio diferente. Não é mais fácil ou menos fácil. É diferente. É aí o que o sistema de metas que começa em 1999 é o que a gente tem até hoje. Esse é o roteiro.

E quando o grande teste da estabilização fica cumprido, então?

O plano de estabilização, de combate a hiper, eu acho que você podia dizer que em 1998 estava quase totalmente cumprido, uma vez que a gente chegou com a inflação igual a dos Estados Unidos, mas ainda permanecia, naquele momento, um desafio que levou outros cinco anos para se vencer. Era o desafio da alternância do poder. Ou seja, em algum momento a oposição vai ganhar a eleição e vai ser governo, porque é assim qualquer democracia. E nesse momento, os críticos do Plano Real iriam ser governo.

É nesse momento que nós teríamos um teste importantíssimo. Foi a eleição de 2002 e o medo que ela trouxe, com o efeito que teve sobre a taxa de câmbio e a inflação, com o que o novo governo eleito faria, se manteria o acordo com FMI (Fundo Monetário Internacional), o superávit primário, o Banco Central e tudo isso. E manteve tudo bonitinho igual estava. Foi o encerramento glorioso do plano, a vitória da estabilização e o sucesso do empreendimento.

Hoje, o cenário é bem diferente, mas não conseguimos entregar uma inflação de 3% como outros países da América Latina e nem chegar naquele 1,6%. Por quê?

Nós estamos numa faixa de variação de inflação que, para quem como eu viveu aqueles tempos de guerra, que diferença faz, né? Claro que é importante cumprir a meta de 3% e não de 3,5%, mas eu sei que é só meio por cento ao ano e sei que, numa certa altura, meio por cento era a inflação de uma manhã. A gente superou a hiperinflação. Vamos festejar isso, mas com a cautela de quem sabe o que foram os piores momentos do alcoolismo. Não vamos por causa disso achar que a gente pode tomar um drinque assim à toa. Não. Calma lá. As pequenas dosagens desse veneno atuam no organismo econômico brasileiro de forma muito complexa. É melhor não correr o risco e, por isso, os economistas são tão zelosos com esse assunto de inflação e se preocupam com variações que parecem tão pequenas feito os números do passado.

Tem muita coisa para fazer. Não é que o nosso desempenho em inflação seja particularmente ruim. Ruim é o nosso desempenho em matéria de crescimento, mas que não era o assunto do Plano Real. O Plano Real não era um plano de crescimento, de desenvolvimento. Era um plano de saúde para a economia, de retirar o país da cracolândia monetária, onde se encontrava, dentro da qual a vida econômica inteligente era impossível. Isso foi feito com sucesso. Agora, a tarefa de fazer o Brasil ser um país de alto crescimento é diferente. Envolve reformas, por exemplo, onde a gente está vendo aí a encrenca que é para fazer cada coisa. É tudo tão difícil. Hoje, em matéria de crescimento, a Ásia dá uma goleada no Brasil. Fracassamos em matéria de política de crescimento por causa de ideias velhas e obsoletas sobre mercado interno, substituição de importação, protecionismo. Essas coisas, que tem sido difícil a gente largar. E as reformas têm a ver com isso, mas espero que nos próximos 30 anos fiquem mais fácil.

Essa é a agenda que o Brasil precisa, então?

Sim, continua sendo. Acho que depois do décimo ano do real, quando já tinha ficado para trás a experiência da vitória sobre a hiperinflação e a mudança de governo, é possível ver que a agenda de reforma está muito viva. Mas ela não é uma agenda abraçada pelo PT, que é o partido que fica a maior parte do tempo nos primeiros 30 anos do real, curiosamente. A gente, no livro, fez a estatística. De 1994 até (o real) fazer 30 anos, foram mais ou menos 11 mil dias. Mais 50% do tempo é o PT (que está no governo). Os primeiros 3,1 mil dias foram Itamar, e Fernando Henrique, FH1 e FH2. Depois, vem 5 mil dias de PT, que é Lula 1, Lula 2, Dilma 1 e Dilma 2. Michel Temer, Jair Bolsonaro, todos foram presidentes com o real nesses 30 anos. E vem o Lula 3, e o PT fica majoritário nesse período todo. Nos primeiros tempos do real, a batalha era contra a hiperinflação. Ganhamos. Mas no segundo momento, seriam as reformas. Essas não foram feitas e, desculpa, eu ponho a conta no PT. Eles foram o governo na maior parte do tempo, e são agora. E o que nós estamos vendo de reformas? Pouca coisa.

Nos últimos 30 anos, cada momento é diferente e tem uma agenda, diz Franco Foto: Taba Benedicto/Estadão

Esse livro ao qual o sr. se referiu é sobre os 30 anos do Plano Real e traz textos assinados pelo sr., pelo Edmar Bacha e pelo Pedro Malan. Qual é o objetivo da publicação?

A gente quis buscar os textos que esses autores escreveram por ocasião dos aniversários do real. Nós tínhamos um registro do que a gente falou no campo de batalha, no calor do momento. Depois de 30 anos, a gente fica muito inteligente olhando para trás. Mas o que você falou lá, quando estava acontecendo? As dúvidas, os medos, as batalhas dos inimigos daquele momento. Isso é superimportante. A gente conseguiu trazer artigos que fizemos ao longo do caminho e separar com nitidez, o que eram as questões do 5º ano, como âncora cambial e taxa de juros. As questões do décimo ano, com mudança de governo. As questões do ano número 15, do número 20 e do 25. Do ano 15, salvo engano, é a crise de 2008. Do 20, é a nova matriz. Do 25, é Jair Bolsonaro. E o 30, que é onde estamos.

Cada momento é diferente. E a cada momento, tem uma agenda. Você ouvirá falar de reformas em todos esses momentos. Algumas reformas tiveram de ser feitas no primeiro momento para o pessoal acreditar no que estava sendo feito, algumas de implicação fiscal. A mais importante ali no início teve a ver com a governança da moeda, a reforma do Conselho Monetário Nacional, a criação do Copom, a nova disciplina da moeda, porque, afinal, a inflação é uma doença da moeda. Não esquecer disso. Essa experiência do real demonstra com clareza. Você pode fazer o diagnóstico que você quiser da natureza da inflação brasileira, dizer que ela é filosófica, estrutural, o escambau, mas o que resolveu foi uma reforma monetária. Então, tem a ver com moeda. O remédio que deu certo foi uma reforma monetária e uma reforma radical da governança da moeda. Não vamos nunca mais, espero eu, mexer nisso.

Como todo esse balanço, há algum arrependimento?

O balanço é superpositivo. Você sempre pode dizer que faria diferença se tivesse bola de cristal, mas a gente não tem. A história real é uma história de pessoas que tomam decisões sempre em condições imperfeitas, sem saber o futuro e em circunstâncias que não são as ideais. Dizer o que eu faria em condições ideais? Não sei, mas as condições ideais, eu posso dizer, elas nunca existem. Você sempre tomará decisões sabendo menos do que você gostaria e acreditando nas suas convicções. O que a gente fez, a gente fez e acho que foi a melhor coisa nas circunstâncias difíceis que a gente viveu.

O economista Gustavo Franco construiu a sua carreira acadêmica estudando hiperinflação, assunto que se transformou no principal desafio econômico da sua geração, no grande fantasma do País nos anos 1980 e 1990 e que acabou o levando para Brasília.

Com a decisão do PSDB de aceitar o Ministério da Fazenda no governo Itamar, Gustavo Franco, ao lado de Edmar Bacha e Winston Fritsch, fez parte da primeira equipe de Fernando Henrique Cardoso no comando da pasta. Em 1993, foi nomeado secretário adjunto de Política Econômica.

“Não se chega lá em Brasília com o remédio pronto”, diz ele. “O jeito de fazer é importante. Você chega com ideias gerais, chega com um acervo de experiências de outros países, tem o acervo da nossa própria experiência fracassada de combate à inflação, que é muito valioso.”

No mesmo ano, Franco migra para Banco Central, para assumir o cargo de diretor de Assuntos Internacionais. E, em 1997, assume a presidência da instituição. Fica no cargo até 1999, quando o País decide abandonar a âncora cambial.

“Tem muita coisa para fazer. Não é que o nosso desempenho em inflação seja particularmente ruim. Ruim é o nosso desempenho em matéria de crescimento, mas que não era o assunto do Plano Real”, afirma. “O Plano Real não era um plano de crescimento, de desenvolvimento. Era um plano de saúde para a economia, de retirar o país da cracolândia monetária.”

'Real foi um plano de saúde econômica', diz Gustavo Franco Foto: Taba Benedicto/Estadão

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Quando chegam ao Ministério da Fazenda já havia uma certeza do que fazer?

Não se chega lá em Brasília com o remédio pronto. Tem mais. O jeito de fazer é importante. Você chega com ideias gerais, chega com um acervo de experiências de outros países, tem o acervo da nossa própria experiência fracassada de combate à inflação, que é muito valioso. E as novas ideias têm de, então, entrar em operação e muitas delas a gente só vai ver se são boas ou ruins na operação, na hora da implementação. É também o jeito de conduzir depois que você anunciou. Não é um bolo que está pronto e acabou, inclusive, decisões que você teve de tomar, problemas novos, surpresas inesperadas têm o tempo inteiro. E lidar com isso, lidar com o dia a dia do plano de estabilização é a batalha. Você pode planejar uma batalha o quanto quiser, mas, na hora que começar o jogo, vai vir uma coisa que você não esperava.

O sr. se lembra de algum fato importante que veio e não era esperado?

Todos. Não tem nada que seja absolutamente esperado e dê para antecipar. É como o mercado financeiro. Todo dia é um dia diferente. Experimenta adivinhar o que vão ser as ações da Petrobras amanhã ou Ibovespa depois de amanhã. Não. Não tem adivinhação. Você pode ter boas ideias e bons princípios, mas o acaso é muito importante nisso tudo.

Como era a relação do sr. com o governo Itamar?

Não era próximo, mas o presidente era próximo do ministro Fernando Henrique, que era quem melhor lidava com o presidente, que, como qualquer presidente, estava preocupado com as coisas que preocupam os presidentes. Enfim, nem sempre é fácil. Tem um problema de linguagem, de explicar, além do que ele acaba sendo o centro ou foi, nesse caso, o centro de pressões conceituais. Tivemos debates sobre conversão de salários pela média ou como converter o salário mínimo de cruzeiros reais para real. E problemas, assim, técnicos, mas de grandes implicações populares, por exemplo, fazer ou não fazer um congelamento de preços? Nós éramos radicalmente contra.

Às vezes, os políticos não têm a mesma sensibilidade que nós, técnicos, para distinguir uma ideia péssima de outra boa. Era difícil convencer não apenas o presidente Itamar, mas líderes do PSDB de que o congelamento era uma péssima ideia. Os políticos estão sempre ali, prestando a atenção em tudo o que você está fazendo, criticando ou o fato de não ter congelamento ou a taxa de câmbio ou a taxa de juros. Político está sempre ali querendo que a gente tome decisões políticas, e a gente está querendo tomar decisões técnicas. E é sempre difícil.

Havia uma preocupação de o plano dar errado?

Sim, todos os dias. Essas coisas não se têm certeza de coisa alguma. E cada dia é um dia diferente. E tem dias que você acorda achando que deu tudo errado. E tem dias que sai tudo certo. É como se fosse todo dia um jogo de basquete, que é 149 a 148 a favor ou 127 a 126 contra. Você não ganha todas, mas ganha muitas. E, às vezes, ganha de goleada. Mas tem dias que você perde. E aí é vamos viver um dia de cada vez. Vamos ganhar o campeonato. Vamos ganhar a guerra. E foi assim.

"É como se fosse todo dia um jogo de basquete, que é 149 a 148 a favor ou 127 a 126 contra", diz Gustavo Franco Foto: Taba Benedicto/Estadão

Faltou algo no plano na avaliação do sr.?

Sempre que me perguntam eu digo que, sim, faltou uma coisa. Teria feito uma enorme diferença. Era ter feito a revisão Constitucional em 1993. Se tivesse sido feita, teríamos economizado um enorme volume de energia que foi despendido para passar Emendas Constitucionais com quatro votações nas duas casas para fazer, por exemplo, a reforma da Previdência, entre outras coisas. Poderíamos ter feito ali de forma muito mais fácil. Mas as lideranças políticas da ocasião preferiram abreviar e não fazer praticamente a revisão. A Constituição foi feita em 1988 com certa liberalidade - vamos colocar assim - se imaginando que cinco anos depois poderia haver uma revisão para cortar os excessos. Mas aí chegou cinco anos depois e decidiu-se que não iam cortar os excessos.

Havia uma discussão de empurrar a conclusão do plano para 1995, diante da possibilidade de vitória do Fernando Henrique?

O plano foi lançado em fevereiro de 1994. Dia 1º de março a URV estava na rua e já em lei, que, quando a URV fosse emitida como dinheiro, se chamaria real. Então, se pode até dizer que o real foi criado ali. E julho era só o cumprimento de uma etapa já prevista. Quanto tempo iria durar essa fase de transição, nenhum de nós sabia dizer. Era preciso esperar para ver a velocidade com que a sociedade brasileira iria assimilar e entender o conceito da URV. E o fato é que foi muito mais rápido do que todos nós estávamos imaginando. O mais otimista de nós não esperaria que fosse tão rápido. E aí, talvez, com 15 dias a gente já tivesse certeza que dava para fazer num período de tempo curto, quem sabe um mês ou dois.

Eu acho que, naquela ocasião, a gente podia, talvez, com algum esforço, ter feito a moeda um pouco antes. Mas tinha uma vantagem de fazer em 1º de julho. Seriam quatro meses inteiros e um final de semestre. Havia uma conveniência enorme de demonstrações financeiras e outras coisas. Um semestre que começava em 1º de julho começava com a moeda nova.

O Fernando Henrique ganha a eleição, mas lida com várias crises internacionais no primeiro mandato. Qual foi o desafio de manter o plano de pé nesse cenário?

Não é o começo da presidência Fernando Henrique que dá início a uma fase nova do plano. É 1º de julho. Eu acho que dá para imaginar o seguinte: no mês de junho de 1994, a variação da URV foi de 50%, o que é 12.500% ao ano. É aí que a gente começa. Quando sai o IPCA de julho, um mês depois da operação da URV, a inflação foi de 6,8%, aproximadamente 120% ao ano. Então, o primeiro momento é o impacto positivo sobre a inflação da URV. Esse mecanismo tão engenhoso e tão celebrado fez essa primeira redução na inflação. Mas 120% ao ano, caramba, 6,8% ao mês é muito. Depois, foi caindo mês a mês. De tal sorte, que a gente pode fazer a conta da inflação dos primeiros 12 meses do real, e quanto deu? 33%.

É uma queda importante…

Então, veja: 12.500%, 120%, 33%. Estamos em meados de 1995, com seis meses dentro da presidência do Fernando Henrique, mas tendo (o real) funcionado seis meses no restante da presidência Itamar Franco com política monetária e cambial, porque não tem mais a URV. Depois de 1º de julho, é reduzir a inflação com a ferramenta convencional de política monetária e política cambial, com o fiscal sempre mais ou menos, como a gente sabe. Mas 33% para os primeiros 12 meses foi excelente comparado com 12.500%. Só que ainda não é o ponto de chegada. Caiu abaixo de 10% ao ano em 1997, meados do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique, quando estavam começando as tempestades internacionais. E nós terminamos 1997 com a inflação abaixo de 5% ao ano, com crise Internacional e tudo. Em 1998, veio mais tempestade internacional e sabe quanto foi o IPCA do ano? 1,6%. Até hoje não teve um ano com a inflação tão baixa.

Cada fase teve a sua estratégia. O primeiro grande golpe sobre a hiperinflação foi a URV e a reforma monetária. Mas a partir daí, foi como se saísse de cena o armamento de alta tecnologia e entrasse a infantaria com suas baionetas, com a taxa de juro e de câmbio e vamos fazer ali o dia a dia. E foi aí que a gente trouxe de 120% para 1,6%. E quando no ano seguinte, começa o sistema de metas de inflação, já andamos todo esse caminho e cortamos a grama alta. Já é um desafio diferente. Não é mais fácil ou menos fácil. É diferente. É aí o que o sistema de metas que começa em 1999 é o que a gente tem até hoje. Esse é o roteiro.

E quando o grande teste da estabilização fica cumprido, então?

O plano de estabilização, de combate a hiper, eu acho que você podia dizer que em 1998 estava quase totalmente cumprido, uma vez que a gente chegou com a inflação igual a dos Estados Unidos, mas ainda permanecia, naquele momento, um desafio que levou outros cinco anos para se vencer. Era o desafio da alternância do poder. Ou seja, em algum momento a oposição vai ganhar a eleição e vai ser governo, porque é assim qualquer democracia. E nesse momento, os críticos do Plano Real iriam ser governo.

É nesse momento que nós teríamos um teste importantíssimo. Foi a eleição de 2002 e o medo que ela trouxe, com o efeito que teve sobre a taxa de câmbio e a inflação, com o que o novo governo eleito faria, se manteria o acordo com FMI (Fundo Monetário Internacional), o superávit primário, o Banco Central e tudo isso. E manteve tudo bonitinho igual estava. Foi o encerramento glorioso do plano, a vitória da estabilização e o sucesso do empreendimento.

Hoje, o cenário é bem diferente, mas não conseguimos entregar uma inflação de 3% como outros países da América Latina e nem chegar naquele 1,6%. Por quê?

Nós estamos numa faixa de variação de inflação que, para quem como eu viveu aqueles tempos de guerra, que diferença faz, né? Claro que é importante cumprir a meta de 3% e não de 3,5%, mas eu sei que é só meio por cento ao ano e sei que, numa certa altura, meio por cento era a inflação de uma manhã. A gente superou a hiperinflação. Vamos festejar isso, mas com a cautela de quem sabe o que foram os piores momentos do alcoolismo. Não vamos por causa disso achar que a gente pode tomar um drinque assim à toa. Não. Calma lá. As pequenas dosagens desse veneno atuam no organismo econômico brasileiro de forma muito complexa. É melhor não correr o risco e, por isso, os economistas são tão zelosos com esse assunto de inflação e se preocupam com variações que parecem tão pequenas feito os números do passado.

Tem muita coisa para fazer. Não é que o nosso desempenho em inflação seja particularmente ruim. Ruim é o nosso desempenho em matéria de crescimento, mas que não era o assunto do Plano Real. O Plano Real não era um plano de crescimento, de desenvolvimento. Era um plano de saúde para a economia, de retirar o país da cracolândia monetária, onde se encontrava, dentro da qual a vida econômica inteligente era impossível. Isso foi feito com sucesso. Agora, a tarefa de fazer o Brasil ser um país de alto crescimento é diferente. Envolve reformas, por exemplo, onde a gente está vendo aí a encrenca que é para fazer cada coisa. É tudo tão difícil. Hoje, em matéria de crescimento, a Ásia dá uma goleada no Brasil. Fracassamos em matéria de política de crescimento por causa de ideias velhas e obsoletas sobre mercado interno, substituição de importação, protecionismo. Essas coisas, que tem sido difícil a gente largar. E as reformas têm a ver com isso, mas espero que nos próximos 30 anos fiquem mais fácil.

Essa é a agenda que o Brasil precisa, então?

Sim, continua sendo. Acho que depois do décimo ano do real, quando já tinha ficado para trás a experiência da vitória sobre a hiperinflação e a mudança de governo, é possível ver que a agenda de reforma está muito viva. Mas ela não é uma agenda abraçada pelo PT, que é o partido que fica a maior parte do tempo nos primeiros 30 anos do real, curiosamente. A gente, no livro, fez a estatística. De 1994 até (o real) fazer 30 anos, foram mais ou menos 11 mil dias. Mais 50% do tempo é o PT (que está no governo). Os primeiros 3,1 mil dias foram Itamar, e Fernando Henrique, FH1 e FH2. Depois, vem 5 mil dias de PT, que é Lula 1, Lula 2, Dilma 1 e Dilma 2. Michel Temer, Jair Bolsonaro, todos foram presidentes com o real nesses 30 anos. E vem o Lula 3, e o PT fica majoritário nesse período todo. Nos primeiros tempos do real, a batalha era contra a hiperinflação. Ganhamos. Mas no segundo momento, seriam as reformas. Essas não foram feitas e, desculpa, eu ponho a conta no PT. Eles foram o governo na maior parte do tempo, e são agora. E o que nós estamos vendo de reformas? Pouca coisa.

Nos últimos 30 anos, cada momento é diferente e tem uma agenda, diz Franco Foto: Taba Benedicto/Estadão

Esse livro ao qual o sr. se referiu é sobre os 30 anos do Plano Real e traz textos assinados pelo sr., pelo Edmar Bacha e pelo Pedro Malan. Qual é o objetivo da publicação?

A gente quis buscar os textos que esses autores escreveram por ocasião dos aniversários do real. Nós tínhamos um registro do que a gente falou no campo de batalha, no calor do momento. Depois de 30 anos, a gente fica muito inteligente olhando para trás. Mas o que você falou lá, quando estava acontecendo? As dúvidas, os medos, as batalhas dos inimigos daquele momento. Isso é superimportante. A gente conseguiu trazer artigos que fizemos ao longo do caminho e separar com nitidez, o que eram as questões do 5º ano, como âncora cambial e taxa de juros. As questões do décimo ano, com mudança de governo. As questões do ano número 15, do número 20 e do 25. Do ano 15, salvo engano, é a crise de 2008. Do 20, é a nova matriz. Do 25, é Jair Bolsonaro. E o 30, que é onde estamos.

Cada momento é diferente. E a cada momento, tem uma agenda. Você ouvirá falar de reformas em todos esses momentos. Algumas reformas tiveram de ser feitas no primeiro momento para o pessoal acreditar no que estava sendo feito, algumas de implicação fiscal. A mais importante ali no início teve a ver com a governança da moeda, a reforma do Conselho Monetário Nacional, a criação do Copom, a nova disciplina da moeda, porque, afinal, a inflação é uma doença da moeda. Não esquecer disso. Essa experiência do real demonstra com clareza. Você pode fazer o diagnóstico que você quiser da natureza da inflação brasileira, dizer que ela é filosófica, estrutural, o escambau, mas o que resolveu foi uma reforma monetária. Então, tem a ver com moeda. O remédio que deu certo foi uma reforma monetária e uma reforma radical da governança da moeda. Não vamos nunca mais, espero eu, mexer nisso.

Como todo esse balanço, há algum arrependimento?

O balanço é superpositivo. Você sempre pode dizer que faria diferença se tivesse bola de cristal, mas a gente não tem. A história real é uma história de pessoas que tomam decisões sempre em condições imperfeitas, sem saber o futuro e em circunstâncias que não são as ideais. Dizer o que eu faria em condições ideais? Não sei, mas as condições ideais, eu posso dizer, elas nunca existem. Você sempre tomará decisões sabendo menos do que você gostaria e acreditando nas suas convicções. O que a gente fez, a gente fez e acho que foi a melhor coisa nas circunstâncias difíceis que a gente viveu.

Entrevista por Luiz Guilherme Gerbelli

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