Ao lado de Itamar Franco, Rubens Ricupero tem uma das imagens mais emblemáticas do Plano Real. Em 1º de julho de 1994, o então presidente e ministro da Fazenda, respectivamente, esticaram as novas notas para os fotógrafos. Era o início da circulação da nova moeda.
Ricupero assumiu o comando do Ministério da Fazenda com a saída de Fernando Henrique Cardoso, que deixou o cargo para participar da eleição presidencial de 1994. Coube a Ricupero, então, comandar a transição da URV (Unidade Real de Valor) para o real.
“Eu deduzi que ele (Itamar) não queria um economista da equipe nem alguém ligado ao Fernando Henrique. Ele queria alguém que devesse o cargo a ele. Talvez, com a ideia de que poderia influir mais”, afirma.
A passagem de Ricupero pelo Ministério da Fazenda foi curta. E sua saída polêmica. Em setembro, caiu por causa de um áudio vazado numa entrevista para a TV Globo - no que ficou conhecido como “escândalo da parabólica”.
“Eu disse assim: ‘Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura. O que é ruim a gente esconde.’ Eu disse isso, mas ninguém se deu conta que eu estava fazendo o contrário. Eu estava escondendo o que era bom para mim”, diz.
Ao olhar para trás, quase 30 anos depois da sua queda, Ricupero diz que seu deslize foi “imperdoável” e que disse muita bobagem. “Eu estava apenas dando mostra de uma vaidade pueril de criança. Mas eu saí. Pedi desculpas em público e assumi plenamente a responsabilidade.”
A seguir Ricupero relembra a sua passagem pelo Ministério da Fazenda:
Como foi o convite para o sr. ser ministro?
Quando estava se aproximando a eleição, o Fernando Henrique tinha de tomar uma decisão, de sair do governo seis meses antes. Ele se decidiu no fim de março de 1994. Aí o Itamar me chamou e me convidou. No início, eu disse a ele: “Por que o senhor não convida o Edmar Bacha, o Pedro Malan, que são membros da equipe? Eu mal sei o que é essa URV (Unidade Real de Valor). A única coisa que eu sei é o que saiu nos jornais. Eu não tenho muito conhecimento disso.”
E qual foi a resposta do Itamar quando o sr. sugeriu esses nomes?
E ele me respondeu com uma frase dessas que têm de ser interpretadas. Me disse: “Nós examinamos todas as opções. E o senhor é a única alternativa”. Não quer dizer muita coisa, mas eu deduzi que ele não queria um economista da equipe nem alguém ligado ao Fernando Henrique. Ele queria alguém que devesse o cargo a ele. Talvez, com a ideia de que poderia influir mais. Não sei. Não me deu as razões. Eu perguntei a ele o que queria que eu fizesse. Ele disse que queria que aplicasse o plano com a equipe que esta aí. Essa frase foi muito valiosa para mim.
Por quê?
Várias vezes, durante o tempo em que eu fui ministro, ele queria interferir. E ele nunca aceitava conversar com a equipe. Só conversava comigo. Ele era um homem de índole generosa. Ele queria aumentar o salário mínimo. Havia campanha dos militares, dos funcionários civis (por aumento de salários). Ele queria atender a todos esses pedidos. Eu dizia a ele: “Olha, presidente, eu compreendo. Eu sei que o senhor tem razão. Essas pessoas também precisam de aumento, mas nesse momento não dá, porque o Orçamento já está no limite extremo. O senhor se lembra daquilo que me falou?”. Ele disse: “Não. O que eu lhe disse?”. “O senhor me disse que queria que eu aplicasse o plano com a equipe que está aí. Se eu fizer o que o senhor está me mandando agora, eu não vou ter nem plano nem equipe, porque o plano acaba e a equipe vai embora. Eles não vão aceitar uma interferência política”. Aí ele desistia.
Ele fazia muita pressão?
Muito. As pessoas queriam, por exemplo, o aumento da Polícia Federal. O ministro da Justiça ia falar com ele. Aumento dos militares. Os ministros militares falavam com ele. Eu tinha de fazer o papel do mal, de dizer que não pode, porque não tem dinheiro. Nós tínhamos de ter uma situação do Orçamento que fosse no mínimo mais ou menos equilibrada. O Fundo Monetário (Internacional) foi contra o Plano Real, porque eles queriam que nós fizéssemos um superávit de 2% do PIB. O governo americano pensava a mesma coisa, mas nós não tínhamos condições políticas. Agora, se começássemos a ceder, aí não teríamos condição nenhuma, inclusive, porque os economistas da equipe não aceitariam. Desde o primeiro momento, eu vi que a única chance de o real dar certo, era eu resistir às pressões. Agora, com isso, eu me desgastei muito. Ele (Itamar) reunia, às vezes, cinco, seis ministros contra mim. Todos os ministros militares, ministros da Casa Civil. Então, eu tinha de ficar horas e horas argumentando. Nem posso dizer o que foi a tensão.
E qual foi a sensação do sr. de entrar na equipe com o plano em andamento?
Ingenuamente, eu achei que o plano era como uma planta de uma casa. Tudo já desenhado, com datas. Não era nada disso. Havia algumas ideias gerais, mas muita coisa estava sendo feita. A URV tinha acabado de ser lançada. Num dia, à noite, eu reuni a equipe na minha casa e eu perguntei a eles quando iria ser o Dia D, o dia do lançamento da moeda física. A URV era uma moeda contábil. Não existia no bolso das pessoas. E eles disseram que não tinham pensado nisso. Eu vi que alguns queriam esperar mais de um ano, porque eles queriam que as pessoas se acostumassem com a URV. Eu disse que, se é para esperar um ano, quem vai lançar essa moeda é o Lula. O Lula estava com 40% (das intenções de voto) nas pesquisas, o Fernando Henrique não chegava nem a 16%. O Lula já tinha declarado várias vezes que era contra o real. Então, se ele fosse eleito, acabaria esse plano. Nós teríamos de lançar a moeda, não tem como adiar. E eu perguntei quanto tempo eles precisariam, o mínimo dos mínimos. Eles disseram três meses.
Quando foi isso?
Final de março e começo de abril. Eu fui falar com Itamar. Ele bateu o martelo. Nós marcamos 1º, 2 e 3 de julho (datas de feriado bancário). E aí preparou-se o real. Mas aí eu constatei outra coisa. Pedi a dois colegas que trabalhavam comigo, o Marcos Galvão, agora, embaixador em Pequim, e Gelson Fonseca, um diplomata já aposentado, que fossem ao Rio, a São Paulo, e a Belo Horizonte e conversassem com donos de empresas de opinião pública, os marqueteiros políticos. Pedi que perguntassem qual era a imagem do real, e eles voltaram e me disseram: “Todo mundo tem uma boa impressão. Dessa vez, parece um plano sério. Agora, ninguém sabe o que é essa coisa misteriosa, a URV. Ninguém entende se ela vai ficar, se vai coexistir com a moeda, se, em algum momento, desaparece e entra a moeda, como vai ser a conversão da URV para nova moeda, qual vai ser a taxa, quanto tempo”. Não era propaganda, mas alguém tinha de dizer isso para a população. Inclusive, um desses gurus, o Nizan Guanaes, que eu nem conheço pessoalmente, falou com os meus colegas e disse: “O real precisa ter uma cara. Vocês pegam esse velhinho - eu tinha 57 anos, hoje, tenho 87 -, enquadram na televisão - e ele explica.”
E qual foi a reação do sr.?
Eu disse que achava uma boa ideia, mas que iria falar com o Itamar. Fui falar com o Itamar. Ele achou a ideia muito boa, mas ele disse que “o senhor é que vai ter de ser a cara do real”. Ele tinha razão, porque, se o real tivesse fracassado, a culpa era minha. E aí mudava o ministro da Fazenda. Agora, se fracassasse com a cara dele, era mais complicado.
E como foi lidar com a equipe já montada?
Nunca tive problema. Eu conhecia quase todos da equipe. Um ou outro que eu não conhecia. Eu tinha dado uma declaração, porque falava-se muito do reajuste dos funcionários civis da União. Sou funcionário público aposentado. Naquela época, era funcionário da ativa. Eu disse uma coisa qualquer que dava a entender que eu era favorável a um aumento. A equipe ficou muito aborrecida, porque eles se sentiam um pouco desamparados. Me fizeram sentir isso. Eu pedi desculpas. E, a partir de então, eu nunca mais tive nenhum deslize com eles, porque percebi que o sucesso do real dependia da equipe. Fiquei unha e carne com a equipe. E eles foram muito leais a mim.
O que pensou em 1º de julho, data do lançamento da moeda?
Eu acordei de madrugada. Quis ser um dos primeiros a chegar ao Palácio. Eu fui falar com o chefe da Casa Militar. Eu disse a ele: “General, eu vou pedir ao senhor um favor. Na hora que o senhor descer para esperar, o presidente - ele entrava pela garagem -, eu quero ir com o senhor. Eu quero preveni-lo, porque tem gente que vai ficar na sala de espera para encher a cabeça dele de coisas para mudar. Ainda dá tempo de fazer uma nova edição do Diário”. Eu tinha essa experiência. O Palácio é muito traiçoeiro. Eu fui e fiquei lá. Quando ele (Itamar) veio, eu o chamei para um lado e disse: “O senhor vai encontrar na sua sala fulano, sicrano e beltrano. Eles vão lhe dizer tal coisa. Tudo isso é falso. O senhor, por favor, não aceite, porque nada disso vai contribuir. Ao contrário, vai atrapalhar muita coisa”. Quando ele subiu, já estava vacinado. O pessoal foi lá e não adiantou nada. Então, eu estava aliviado. Eu fui com ele para a agência da Caixa Econômica, do Palácio do Planalto, onde trocamos as primeiras moedas. Tem as fotografias da época.
A saída do sr. do ministério foi bastante traumática. Poderia relembrar?
Eu acabei caindo por culpa minha naquele episódio da parabólica. Me subiu à cabeça. Naquele dia, eu estava preocupado, porque a moeda tinha entrado em vigor há dois meses, e a inflação tinha caído, mas não tanto como se esperava. A inflação tinha sido o dobro do que a equipe tinha estimado. Naquele dia fatídico, 1º de setembro de 1994, resolvi fazer uma grande ofensiva para convencer a opinião pública que aquele problema da inflação, no início, era uma ilusão. Era um problema de metodologia. Todos os índices de medição da inflação no Brasil faziam a coleta de preços do dia 15 ao dia 15. Como a moeda foi lançada no dia 1º (de julho), todos os índices já vinham com 15 dias do passado. E aquilo se perpetuava. Não era um momento real, tanto assim que nós ficamos alarmados, porque houve um número tão grande de compras de eletrodomésticos. Começou a faltar produto. Eu queria convencer as pessoas que aquilo ia cair. E aí é que eu me perdi.
Por quê?
Eu fiquei achando que aquilo dependia de mim. Me envaideci muito. Fui a Pernambuco, e as pessoas vinham me beijar a mão. Eu fiquei assustado. Nesse dia (1º de setembro), eu acordei de madrugada. Dei 24 entrevistas para rádio, rádio sertaneja, televisão, revistas, correspondentes estrangeiros. Fiquei o dia inteiro dando entrevista. Não fiz outra coisa. Nem almocei nem jantei. No fim do dia, estava exausto. Era uma sexta-feira, um dia de fim de seca, um calor daqueles terríveis em Brasília. Eu estava no meu gabinete com a luz apagada. Tinha só uma luzinha vermelha na câmera. Eu não sabia que estava captando. Era uma entrevista para aquele programa, para o último jornal da Globo, aquele do final do dia. E estava esperando, e estava conversando. Não estava dando entrevista. Durante 19 minutos, eu só disse asneiras, bobagens de todo tipo, de que eu era o tal. Mas tudo isso era bobagem. Não era nada de grave. Era vaidade boba.
Mas uma hora eu cometi um deslize que foi imperdoável. O repórter me perguntou: “O senhor não acha que essa moeda já fracassou como as outras?. A taxa de inflação saiu um pouco mais alta”. Eu disse: “Olha, eu tenho certeza que não, porque os preços que já foram coletados nos 15 dias e os indicativos que vem agora mostram que a inflação está caindo de uma maneira drástica. Alguns economistas até acham que é capaz de dar alguma coisa perto do zero. Só que eu não posso dizer isso”. Eu tinha uma combinação com a equipe, de que só (falar) quando eu tiver todos os dados do mês fechados. Se a gente começa a dar os dados da semana, depois tem de ser dados diários. Eu disse assim: “Eu não tenho escrúpulos. O que é bom a gente fatura. O que é ruim a gente esconde”. Eu disse isso, mas ninguém se deu conta que eu estava fazendo o contrário. Eu estava escondendo o que era bom para mim, porque ele disse vamos dar isso, porque vai ser um furo da reportagem’. Eu disse eu não tenho escrúpulo, mas tem o problema da equipe. Eu tenho de conversar com eles. Vou falar com eles, depois eu te digo.
E o que sr. pensa hoje em dia sobre o episódio?
Eu não tenho explicação. Hoje em dia, quando eu vejo aquilo, eu não me reconheço. Eu nunca fui assim. Ainda bem que eu também não disse palavrão nenhum, porque eu nunca digo palavrão. Mas eu disse muita bobagem. Muita bobagem. E acho que as pessoas ficaram chocadas quando viram. Eu fui para casa e aí veio me ver o meu colega, que era o meu braço direito, o Sergio Amaral. Ele faleceu há pouco tempo. E ele me contou o que tinha acontecido. Eu me senti péssimo
E como foi com o Itamar?
No dia seguinte, eu telefonei ao Itamar. Ele não sabia de nada. Eu contei a ele. No início, ele achou que não era tão importante, de que não era tão grave. Eu disse que estava colocando o cargo nas mãos dele e que não podia ficar mais, porque eu perdi a credibilidade, apesar de que eu não estava confessando nenhum crime. Não estava mentindo. Eu estava apenas dando mostra de uma vaidade pueril de criança. Mas eu saí. Pedi desculpas em público e assumi plenamente a responsabilidade. Nunca em minha vida tentei passar a culpa. Deveria haver mais gente no Brasil capaz de assumir a responsabilidade, pedir desculpas e assumir as consequências dos erros.
Sai da vida pública. Depois, eu refiz a minha vida, porque eu fui para a Unctad, mas eu fui eleito pela assembleia da ONU. Não fui nomeado pelo governo brasileiro. Fiquei lá 10 anos na ONU. Eu era subsecretário da ONU e secretário-geral da Unctad. Só voltei ao Brasil em 2005. Nunca mais quis ter nada a ver com a vida pública.
E qual é o balanço do Plano Real que o sr. faz?
Se nós não estamos no ponto em que está a Argentina é por causa do Plano Real. Eu fui um dos muitos que contribuíram. É uma luta que não termina nunca, porque a gente vê, por exemplo, esse governo, às vezes, tem aquela tentação (de gastar). Na época da Dilma, a inflação chegou de novo a quase 12%. A gente tem de segurar isso com todo o esforço. Eu aplaudo o ministro da Fazenda (Fernando Haddad), que é um homem corajoso. Está fazendo um belo trabalho. Está sendo solapado pelo próprio partido. Por que nós somos diferentes da Argentina? Porque nós temos moeda. Eles ainda têm de fazer todo esse esforço. Segundo, nós não temos estrangulamento externo. Temos reservas e um número grande do saldo comercial. Eu acho que nós temos uma base para seguir em frente. Nós não chegamos lá. Eu acho que ficou faltando a segunda metade, que é a parte fiscal.
Por que a parte fiscal é tão difícil de ser resolvida?
Nós não conseguimos incutir nas pessoas a responsabilidade fiscal. A gente vê nos políticos a tendência de aprovar medidas desastrosas. Essa do quinquênio é inacreditável. É o pessoal que mais ganha no Brasil e ainda quer ter um quinquênio. É quase de desesperar, de chorar. Num país com tanta pobreza, tanta dificuldade, as pessoas querem se locupletar com salários ultrajantes. Nós ainda não aprendemos o mínimo da responsabilidade fiscal.
O Brasil precisaria de um novo Plano Real para as contas públicas?
Nesse caso, eu não sei se seria um plano Real. Eu acho que se o Brasil não aprender isso, se o Legislativo e o Judiciário, junto com o Executivo, não tiverem a noção de que você não pode indefinidamente aumentar a dívida pública, nós nunca vamos sair desse voo de galinha que nós estamos. O primeiro desafio é o desafio orçamentário, da responsabilidade fiscal. O segundo desafio é escapar da chamada armadilha dos países de renda média. O Brasil está preso nessa armadilha. Só sai se crescer 30 anos numa velocidade de cruzeiro, mas não vai crescer se voltar a política Dilma Rousseff. Ele vai crescer com responsabilidade e é, claro, que também com consciência social e atento aos que precisam mais.