O crescente debate sobre mudanças climáticas está intrinsicamente ligado ao valor de ativos relacionados à natureza. A maré de liderança geopolítica do Brasil nos próximos 20 meses ― envolvendo G-20, Brics+ e Cop Clima 30 ― intensifica o foco sobre o tema. As relações entre clima, natureza, segurança alimentar, mineral e energética serão parte inexorável dos debates que se aproximam. Ao mesmo tempo, cresce a pressão pelo redesenho do sistema multilateral de cooperação internacional, claramente insuficiente para dar conta do mundo que se insinua ou até mesmo para negociar soluções para os atuais conflitos.
Entremeados ― mas não dependentes do desdobramento de negociações e declarações das siglas mencionadas ― setores industriais encontram brechas para reposicionamento de seus modelos de negócios. Alguns empurrados por ameaças reputacionais, tributárias, financeiras e comerciais; outros, no entanto, forjando estratégias relacionadas à economia de baixo carbono ou, de forma mais ampla, à chamada bioage (era da natureza), com ativos ligados à natureza tendo papel central nos negócios.
O jogo das taxações relativas a emissões de gases de efeito estufa, o Regulamento da União Europeia para Produtos Livres de Desmatamento, as crescentes ações de litigância climática ― um novelo jurídico-financeiro bastante confuso e ameaçador ―, são apenas alguns exemplos de que os desdobramentos dos debates climático-ambientais avançam independentemente do multilateralismo.
Em recente viagem dos autores à Ucrânia, o mote United for Nature (Unidos pela Natureza) surgiu como um surpreendente elo entre Brasil e aquele país da Europa Oriental. Ucrânia e o Brasil têm muito em comum. Pode parecer estranho e até inapropriado, mas os dois países vivenciam no seu cotidiano frequentes cenas de violência. O Brasil tem orgulho de se apresentar para o mundo como um país onde a paz predomina. No entanto, as estatísticas de mortes violentas e as cenas de vítimas de tiroteios fazem nosso conceito de paz virar peça de ficção.
Não se trata aqui de comparar duas situações de natureza claramente distinta. A guerra é, do ponto de vista sociológico, uma experiência coletiva. A violência no Brasil, não. Ninguém tem como dar um by-pass na experiência da guerra. No nosso país, grupos economicamente favorecidos se protegem da violência morando em condomínios fechados ou utilizando carros blindados.
Na Ucrânia, não. Cidades históricas e belíssimas, como Kyiv e Odesa (na grafia do idioma ucraniano), estão visivelmente impactadas física e emocionalmente. Não houve um só dia em nossa estadia na região sem que as sirenes nos conduzissem a abrigos antibombas. Todos os cidadãos estão sendo igualmente impactados, não há famílias sem perda de familiares ou amigos próximos e as incertezas sobre o futuro redefinem o sentido da palavra esperança. Ficam então apenas a imagem e a proposta de reflexão sobre os desafios comuns, na busca, quem sabe, por diferentes conceitos de paz.
A Ucrânia contabiliza mais de 60 guerras na luta por sua independência e desde 2014 enfrenta a violência russa contra um conjunto complexo de elementos. A sua adesão à União Europeia e a possível entrada na Otan são os mais debatidos no Ocidente, mas o contexto local é bem mais amplo, envolvendo a consolidação da democracia, o combate à corrupção e à oligarquia político-econômica que arrasou o país desde o final da União Soviética, além da consolidação de um conceito de nação independente assentada em elementos étnicos e históricos.
A cronologia da formação da nação ucraniana se assenta em torno de cidades milenares como Kyiv, no controle de vias de acesso que unem os mares Báltico e Negro, no domínio das estepes com as terras mais produtivas do planeta, entre outras riquezas econômicas, sociais e culturais.
United for Nature remete ao fato de que os dois países, Brasil e Ucrânia, enfrentam possivelmente os maiores desastres ambientais do planeta. O desmatamento na Amazônia, com a degradação ambiental que se sucede, e os danos climáticos e ambientais decorrentes da guerra na Ucrânia, desafiam o mundo tanto nas frentes de governança climática-ambiental como nas ações de reparação e recuperação das funções ecológicas básicas das regiões afetadas. No Brasil, a perda da cobertura vegetal (e consequentemente da biodiversidade) levou o tema ao campo geopolítico global, associado às discussões sobre mudanças climáticas.
A Ucrânia, por sua vez, tem dado inequívoca exposição ao conceito de ecocídio, a intencional destruição do capital natural decorrente da guerra com a Rússia. Dados oficiais do Ministério do Meio Ambiente ucraniano, formalmente apresentados ao sistema multilateral da ONU, indicam que mais de 800 mil hectares de áreas florestais com expressiva biodiversidade para padrões europeus (cerca de 600 espécies animais e 750 vegetais) estão em risco nas zonas ocupadas. A mortalidade de golfinhos e cetáceos no Mar Negro em conflito atinge milhares de animais. A destruição de mananciais e reservas hídricas atinge até o momento mais de 700 pontos, em especial a barragem de Kakhovka, com mais de 60 mil hectares de florestas inundadas.
Mais de 17 milhões de hectares (cerca de 30% do território do país) estão tomados por minas e contaminação química, impondo um desafio de remoção e de descontaminação que pode levar de 70 a 100 anos. Estima-se que as emissões de GHG derivadas de ações de agressão da guerra já tenham atingido 150 milhões de toneladas ― e mais 50 milhões de toneladas são estimadas para atividades de reconstrução. Apenas para grosseira comparação, considerando uma média de 700 mil hectares de desmatamento por ano (últimos 10 anos), o Brasil emite mais de 1,5 bilhão de toneladas brutas de carbono por ano.
Em recente reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos, a Ucrânia reapresentou a proposta de paz divulgada na reunião do G-20 em novembro do ano passado. Sem entrar no contexto geopolítico da proposta, vale aqui ressaltar a parte do documento dedicada ao capital natural, algo inédito nesse tipo de declaração.
Os objetivos contidos no item 8 da Fórmula da Paz incluem a destruição ambientalmente cuidadosa das minas terrestres; a elaboração, com suporte internacional, de uma agenda de recuperação ambiental e transição econômica de baixo carbono para o país; a avaliação internacional dos danos ambientais causados pela guerra; e a responsabilização da Rússia pelos danos causados.
Entre as ações, se sugere a criação de uma plataforma de avaliação dos danos ambientais causados pela guerra, fundamentada no estabelecimento de métodos padronizados de avaliação, com sistemática de documentação internacionalmente reconhecida. Essa plataforma deve também apontar medidas e métodos de restauração, além de mecanismos de reparação ou compensação (quando a reparação não for possível).
De maneira geral, os pontos elencados nesse capítulo da Fórmula da Paz estão alinhados com a demanda global para que o valor do capital natural seja considerado não só em tratativas críticas como é o caso desse conflito, mas também em situações de paz. Fica evidente a urgente necessidade de esforços para a consolidação de métodos de avaliação, mensuração, contabilização, responsabilização e inserção em mecanismos multilaterais (incluindo os dedicados às mudanças climáticas e biodiversidade).
Mas não é apenas no campo dos desastres ambientais e sociais que o Brasil se aproxima da Ucrânia. Ambos os países estão entre os maiores produtores de commodities alimentares e minerais do planeta. Têm relevância estratégica na segurança alimentar, mineral e energética, em especial considerando reservas de minerais críticos para estoque de energia elétrica (baterias).
Nesse campo, se descortinam oportunidades de colaboração empresarial envolvendo a produção de biocombustíveis derivados da atividade agroindustrial, tecnologias de motorização pesada, silvicultura e restauração florestal, recuperação de solos, mineração e gestão de resíduos minerais, produção/industrialização de proteína animal, logística e distribuição de alimentos, gestão de resíduos sólidos e economia circular (a reciclagem de plásticos, metais e papel tem grande relevância na reconstrução “verde” do país).
O Brasil detém amplo conhecimento e avançadas tecnologias na área da recuperação de desastres socioambientais, com empresas especializadas em várias frentes destinadas a recompor ambientes naturais e associados à produção agrícola e mineral. Além disso, poucos países detêm sofisticação tecnológica na produção de alimentos ligada à agenda climática como o Brasil. Agricultura de precisão, sistemas de monitoramento do uso da terra e de mensuração de carbono, inclusive no solo, são capacidades tecnológicas bastante bem estabelecidas em nosso país.
A Ucrânia por sua vez, tem se destacado no campo da informática e da inteligência artificial. O sistema de digitalização do capital natural do país, voltado para a reconstrução, além da mensuração e monetização dos danos, têm provido o mundo de instrumentos inovadores neste campo. São mais de 3.600 casos relatados e analisados, com indicação de valores detalhados para danos relacionados a poluentes e dejetos no solo (incluindo minas), poluição do ar e da água, e perda de ativos naturais (florestas, fauna, flora em geral). A estimativa de perdas atinge US$ 57 bilhões.
O Brasil, um dos maiores detentores da biodiversidade e do patrimônio natural do planeta, tem grande interesse no uso da digitalização do seu capital natural, ponto de partida para a metrificação, valoração e consolidação de instrumentos para contabilizar ativos da natureza. A colaboração nessa frente pode ser surpreendentemente positiva, considerando, por exemplo, o vasto trabalho de catalogação da biodiversidade brasileira realizado pelo Cria (Centro de Referência em Informação Ambiental), superando 15 milhões de registros e 4,5 milhões de imagens na rede colaborativa speciesLink.
Este texto busca dar foco ao campo do capital natural que, de alguma forma, aproxima os dois países. A guerra impôs desafios relevantes para acesso a fertilizantes produzidos na Bielorrússia e Rússia, com impacto direto nos custos de produção de alimentos no Brasil. Pelo potencial da abordagem ambiental e econômica no campo dos ativos naturais ― conservação, produção de alimentos e energia, inclusão social, ou mais genericamente, bioeconomia ― várias oportunidades de colaboração se descortinam. O tripé natureza-clima-segurança seguirá cada vez mais pautando a vida contemporânea da humanidade.
Os autores não veem espaço para neutralidade e declarações não condenatórias de crimes de guerra claramente identificados, do sofrimento humano em escala avassaladora e de violações múltiplas de direitos humanos. Ucrânia e Brasil são países que ainda enfrentam grandes desafios na consolidação de suas democracias e no combate à corrupção, e que precisam lidar com suas dores, perdas, cicatrizes e profundas desigualdades.
Trata-se de um caldo complexo com desdobramentos geopolíticos e econômicos relevantes. Uma maior aproximação entre os países pode proporcionar oportunidades de diálogo, de conhecimento, de reconhecimento e de negócios não só neste período crítico, mas também na fase de reconstrução daquele país, alicerçadas em recursos financeiros e tecnológicos significativos de países com interesses estratégicos no potencial de recursos naturais e humanos da Ucrânia.
A reconstrução da Ucrânia será verde e orientada pela sua reinserção no mundo. Essas são as diretrizes que orientam a sua ambição climática (a ser apresentada na Cop-30) e o recém-divulgado documento An Environmental Compact for Ukraine – A Green Future: Recommendations for Accountability and Recovery (Um Pacto Ambiental pela Ucrânia – Um Futuro Verde: Recomendações para Responsabilização e Recuperação). O Brasil parece buscar fazer escolhas nessa mesma direção com base em instrumentos próprios como o Plano de Transformação Ecológica e a recém-lançada Política da Nova Indústria no Brasil. Que possam, então, estar de volta ao mundo tendo a paz, a democracia, a natureza e o futuro como incondicionais aliados, talvez experimentando uma caipirinha com a deliciosa Borscht (e não, não se trata de uma simples “sopa” de beterraba).