O futuro é aqui: veja como é morar numa cidade onde os carros andam sozinhos, sem motorista


Veículos cobertos de câmeras sem ninguém dentro estão causando engarrafamentos em São Francisco, enfurecendo os moradores e impressionando os turistas

Por Heather Kelly

SÃO FRANCISCO — Quando a densa e icônica neblina cobriu o bairro residencial de Balboa Terrace em uma terça feira recente, cinco SUVs brancas iguais, cobertas de câmeras, pararam onde estavam.

Confusos com a queda na visibilidade, os carros modelo Jaguar I-PACE, elétricos e pertencentes ao Google, tentaram parar e esperar até que o clima melhorasse, criando um breve engarrafamento. Mas não havia com quem gritar. Os carros eram veículos autônomos pilotados por software.

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Era apenas outro dia na vida dos habitantes de São Francisco, que notaram uma súbita alta no número de veículos vazios rodando pela cidade nos meses mais recentes. A Waymo, pertencente ao Google, e a Cruise, da General Motors, são algumas das empresas testando sua tecnologia autônoma na cidade, treinando os carros a compartilhar as ruas com humanos menos previsíveis e a reagir a situações do mundo real. É algo observado também em outras cidades, como Phoenix, Austin e partes de Los Angeles, e as empresas planejam expandir as atividades para mais locais no próximo ano.

Embora os veículos sejam testados aqui desde 2018, recentemente elas receberam permissão para que os veículos rodem nas ruas durante o dia sem motoristas de segurança, pessoas pagas para ficar de prontidão ao volante para o caso de algo dar errado. A Waymo começou um ano atrás, e a Cruise, no fim de 2021, mas vêm aumentando os números constantemente. Isso levou a uma alta nos incidentes, de acordo com os habitantes, que vão desde engarrafamentos até acidentes como a colisão com a traseira de um ônibus.

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Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança Foto: Terry Chea/AP

Morando perto do Vale do Silício, os residentes de São Francisco estão acostumados a serem incluídos nos testes das versões preliminares dos produtos das grandes empresas de tecnologia. Foi aqui que começou o lançamento do Uber e do modelo de aplicativos de corridas, aluguéis expressos do Airbnb, patinetes elétricos sem ponto de devolução e robôs de calçada.

Mas alguns moradores estão começando a questionar este arranjo, particularmente em um momento em que as empresas de veículos autônomos estão de olho em uma próxima fase: oferecer corridas a clientes em mais lugares, 24 horas por dia.

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“As empresas de tecnologia nos enxergam como um lugar muito tolerante em relação às confusões delas”, disse Marita Murphy, 40 anos, que trabalha com produção de áudio na cidade. “Enquanto moradora local, não tenho a sensação de ter controle ou voz nesse processo. Parece que estamos sujeitos à vontade dessas empresas e suas motivações financeiras.”

A Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança. A Cruise está desenvolvendo a tecnologia para oferecer alternativas de transporte mais seguras e ecológicas, disse o porta-voz Drew Pusateri.

No geral, os carros vazios da Cruise e da Waymo se comportam como rigorosos e nervosos alunos de autoescola, sem jamais exceder o limite de velocidade, parando diante das placas e freando ao menor sinal de problemas. Frequentemente, o mais alarmante para as pessoas não é o comportamento do carro, e sim a visão de um veículo vazio, coberto de câmeras e sensores, movendo-se independentemente.

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“É algo inquietante, que nos deixa pouco à vontade. Tem alguma coisa no nosso cérebro que diz, isso não faz sentido”, disse Molly McDermott, professora de uma escola pública de São Francisco na região de Mission District, onde vive há 15 anos. “Não me sinto pronta para uma dose tão grande de futurismo.”

Joyce McKinney vive na calçada oposta a um parque público que funciona como estacionamento improvisado para os carros da Waymo. Ela relata ver até três deles alinhados na rua, estacionados um ao lado do outro. Certa vez, um deles parou no meio da rua e interrompeu o trânsito por 15 minutos. Os carros finalmente voltaram à vida e saíram andando.

Ela diz que, apesar das eventuais falhas, esses carros são como os motoristas locais humanos, ou melhores do que eles. “Sinto-me menos ameaçada pelos carros sem motorista do que pelos conduzidos por outras pessoas.”

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Ela se preocupa principalmente com o que a tecnologia pode significar para a cidade, especialmente depois de ter visto o impacto do setor de corridas particulares.

“Para mim, Uber e Lyft tiveram um impacto muito negativo em São Francisco, e seria péssimo se os carros de motorista da Waymo e da Cruise invadissem esse espaço para se tornar, novamente, um empecilho nas ruas da cidade”, disse McKinney.

O Facebook tornou famoso o lema “Mover-se com rapidez e quebrar algumas coisas”, mas essa clássica abordagem das startups de tecnologia representa uma equação diferente em se tratando de carros sem motorista.

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Não houve votação para decidir se os carros poderiam ser testados em São Francisco. As grandes empresas de tecnologia e do setor automobilístico receberam permissão das agências estaduais, incluindo o California Department of Motor Vehicles, e há limites para o quanto a cidade pode regulamentar os programas de teste.

“Não estamos falando de uma cidade que teme a tecnologia”, disse Aaron Peskin, presidente da câmara de vereadores de São Francisco. “Quem quiser usar São Francisco como tubo de ensaio deveria começar pedindo permissão e cooperação em vez de pedir desculpas, que têm caracterizado o uso que as empresas de tecnologia fazem de São Francisco.”

A cidade aprovou leis em resposta a empresas como Airbnb, limitando o número de lares que podem ser usados para aluguéis de curto prazo para garantir a disponibilidade de habitações acessíveis. Depois que os patinetes elétricos foram lançados, eles foram espalhados livremente pela cidade até serem alvo de regulamentação.

A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros Foto: John G. Mabanglo/Efe/Epa

Em janeiro, a secretaria de transportes de São Francisco redigiu uma carta de 23 páginas às agências estaduais descrevendo as preocupações da cidade com os veículos autônomos e protestando contra os planos de expansão das empresas. A Cruise deseja expandir seu serviço de corridas pagas para toda a cidade, sem restrições de horário.

Peskin disse que as empresas têm cooperado menos com as autoridades locais, preocupadas com a segurança, a transparência, a privacidade e a conveniência.

“Isso pode levar a um mundo mais seguro de transportes menos congestionados. E pode também produzir um pesadelo distópico”, disse Peskin.

Pusateri, porta-voz da Cruise, disse que a empresa lamenta as eventuais inconveniências, mas apresenta como contexto os ferimentos e mortes causados por carros pilotados por humanos em São Francisco. A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros. As habilidades de pilotagem dos carros são aprimoradas a cada nova versão do seu software, de acordo com David Margines, diretor do grupo de produtos da Waymo.

O inesperado parece ser um dos maiores problemas para os carros autônomos, e o culpado pela maioria dos acidentes mais notórios envolvendo esses veículos. Os carros podem se confundir, congelar e até sofrer uma pane ao encontrar um cenário novo que não seja contemplado na sua programação.

Depois que uma série de perigosas tempestades atingiu a área em março, ao menos um carro da Waymo ficou encalhado diante de uma árvore caída, parando no meio de um cruzamento. Mais recentemente, um carro da Cruise bateu na traseira de um ônibus municipal articulado, formado por duas seções e bem mais longo do que um ônibus comum. A GM disse ter atualizado seus 300 carros, reprogramando-os para melhor compreenderem os ônibus.

Mais perigosas são as dificuldades deles em locais de emergência. No local de um incêndio, um bombeiro teve que quebrar a janela de um carro da Cruise para impedi-lo de passar por cima de uma mangueira. Em outro caso parecido, um carro passou por cima de uma mangueira em uso, de acordo com a carta da secretaria de transportes de São Francisco.

O maior temor de todos é uma fatalidade, algo que deve voltar a ocorrer quase com certeza no futuro. Em 2018, um carro autônomo do Uber com um motorista de segurança distraído ao volante atropelou e matou Elaine Herzberg, 49 anos, enquanto ela atravessava a rua empurrando sua bicicleta à noite em Tempe, Arizona.

O sistema do carro não levou em conta a possibilidade de alguém atravessar a rua fora da faixa de pedestres, de acordo com investigadores do departamento nacional de segurança nos transportes. O Uber encerrou seu programa de veículos autônomos em 2020 e atualmente trabalha com empresas automobilísticas de fora.

Adaptação a um mundo de carros robôs

Se os carros estão aprendendo a lidar com as idiossincrasias do comportamento humano, os humanos estão aprendendo a lidar com esses carros.

“Esses sistemas autônomos não podem ser sociais, então nós precisamos ser ainda mais sociais e ceder”, disse a antropóloga Sally Applin, que estuda a interseção entre pessoas, algoritmos e ética. “Às vezes me pergunto se seria sequer possível ensinar a um carro todas as interações que ele poderia ter.”

A falta de contato olho no olho pode ser inquietante para os pedestres, bem como para os pais que tentam ensinar aos filhos a importância de chamar a atenção do motorista antes de atravessar na sua frente. Acenar, olhar, sorrir e gesticular com a cabeça são geralmente inúteis com os carros autônomos. É necessário substituí-los por uma confiança cega na capacidade do sistema do carro de nos ver.

As empresas de veículos dizem que já trabalharam para ensinar os carros a reconhecer gestos manuais, como aqueles que um guarda de trânsito faria.

Anna Limkin, que vive em São Francisco no bairro de Noe Valley, não consegue confiar tanto na tecnologia. “Ainda não temos uma tecnologia capaz de replicar os sentidos que usamos e que nos permitem escapar, limitar ou evitar um acidente”, disse ela.

Por outro lado, há quem busque testar os limites das capacidades desses carros, pulando diante deles para ver se de fato param.

Os humanos estão longe de ser motoristas perfeitos. Em 2021, foram 37 mortes no trânsito em São Francisco, e o número vem aumentando quase todos os anos desde 2017.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros Foto: Peter DaSilva/Reuters

Para alguns moradores, os carros automatizados, programados para seguir as regras do trânsito, são um alívio.

Andrew Harding não tem carro e vai para o trabalho usando bicicleta ou transporte público. Ele se mudou com a família para São Francisco vindo de Atlanta no ano passado, motivado principalmente pela percepção de que a cidade se adequa ao seu estilo de vida sem carro. O técnico de arquitetura de 47 anos diz que teve experiências positivas compartilhando as ruas com carros da Waymo e da Cruise, programados para manter a devida distância em relação aos ciclistas ao ultrapassá-los, ou a reduzir a velocidade e permanecer atrás deles.

“Só eles obedecem o limite de velocidade na região de Sunset, só eles respeitam o espaço dos ciclistas”, disse Harding, referindo-se à sua experiência. “O que mata é a velocidade. Por isso, mantenho a positividade em relação ao experimento.”

Se os moradores locais os estranham ou se já se acostumaram com eles, para os turistas na Baía de São Francisco a ideia de carros que se pilotam sozinhos sem nenhum humano impressiona, e eles procuram passear neles como parte do passeio.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros. O serviço da Waymo, chamado Waymo One, é gratuito por enquanto; já a Cruise cobra tarifas semelhantes às do Uber.

“É a ideia de viajar em um carro do futuro, algo que vimos no noticiário. Quando soube disso, pensei que seria um passeio bacana”, disse Omar Saeed, 29 anos, que veio de Ohio passar férias em São Francisco em abril. “Eu queria ver como seria a reação do carro diante de um obstáculo. A ideia era brincar com ele e testar um pouco suas habilidades.”

Depois de ver no TikTok alguém explicando como fazer para andar em um carro da Cruise, ele se inscreveu no aplicativo e foi aprovado quatro dias depois. A Cruise tem permissão para oferecer corridas pagas somente das 22h às 5h30. Ele disse que, apesar do passeio divertido, a impressão era de que o carro ainda estava em fase de aprendizado.

Ele disse que encarou a experiência como algo diferente do que a maioria enxerga:

“Para mim, foi como um passeio em um parque de diversões.”/Tradução de Augusto Calil

SÃO FRANCISCO — Quando a densa e icônica neblina cobriu o bairro residencial de Balboa Terrace em uma terça feira recente, cinco SUVs brancas iguais, cobertas de câmeras, pararam onde estavam.

Confusos com a queda na visibilidade, os carros modelo Jaguar I-PACE, elétricos e pertencentes ao Google, tentaram parar e esperar até que o clima melhorasse, criando um breve engarrafamento. Mas não havia com quem gritar. Os carros eram veículos autônomos pilotados por software.

Era apenas outro dia na vida dos habitantes de São Francisco, que notaram uma súbita alta no número de veículos vazios rodando pela cidade nos meses mais recentes. A Waymo, pertencente ao Google, e a Cruise, da General Motors, são algumas das empresas testando sua tecnologia autônoma na cidade, treinando os carros a compartilhar as ruas com humanos menos previsíveis e a reagir a situações do mundo real. É algo observado também em outras cidades, como Phoenix, Austin e partes de Los Angeles, e as empresas planejam expandir as atividades para mais locais no próximo ano.

Embora os veículos sejam testados aqui desde 2018, recentemente elas receberam permissão para que os veículos rodem nas ruas durante o dia sem motoristas de segurança, pessoas pagas para ficar de prontidão ao volante para o caso de algo dar errado. A Waymo começou um ano atrás, e a Cruise, no fim de 2021, mas vêm aumentando os números constantemente. Isso levou a uma alta nos incidentes, de acordo com os habitantes, que vão desde engarrafamentos até acidentes como a colisão com a traseira de um ônibus.

Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança Foto: Terry Chea/AP

Morando perto do Vale do Silício, os residentes de São Francisco estão acostumados a serem incluídos nos testes das versões preliminares dos produtos das grandes empresas de tecnologia. Foi aqui que começou o lançamento do Uber e do modelo de aplicativos de corridas, aluguéis expressos do Airbnb, patinetes elétricos sem ponto de devolução e robôs de calçada.

Mas alguns moradores estão começando a questionar este arranjo, particularmente em um momento em que as empresas de veículos autônomos estão de olho em uma próxima fase: oferecer corridas a clientes em mais lugares, 24 horas por dia.

“As empresas de tecnologia nos enxergam como um lugar muito tolerante em relação às confusões delas”, disse Marita Murphy, 40 anos, que trabalha com produção de áudio na cidade. “Enquanto moradora local, não tenho a sensação de ter controle ou voz nesse processo. Parece que estamos sujeitos à vontade dessas empresas e suas motivações financeiras.”

A Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança. A Cruise está desenvolvendo a tecnologia para oferecer alternativas de transporte mais seguras e ecológicas, disse o porta-voz Drew Pusateri.

No geral, os carros vazios da Cruise e da Waymo se comportam como rigorosos e nervosos alunos de autoescola, sem jamais exceder o limite de velocidade, parando diante das placas e freando ao menor sinal de problemas. Frequentemente, o mais alarmante para as pessoas não é o comportamento do carro, e sim a visão de um veículo vazio, coberto de câmeras e sensores, movendo-se independentemente.

“É algo inquietante, que nos deixa pouco à vontade. Tem alguma coisa no nosso cérebro que diz, isso não faz sentido”, disse Molly McDermott, professora de uma escola pública de São Francisco na região de Mission District, onde vive há 15 anos. “Não me sinto pronta para uma dose tão grande de futurismo.”

Joyce McKinney vive na calçada oposta a um parque público que funciona como estacionamento improvisado para os carros da Waymo. Ela relata ver até três deles alinhados na rua, estacionados um ao lado do outro. Certa vez, um deles parou no meio da rua e interrompeu o trânsito por 15 minutos. Os carros finalmente voltaram à vida e saíram andando.

Ela diz que, apesar das eventuais falhas, esses carros são como os motoristas locais humanos, ou melhores do que eles. “Sinto-me menos ameaçada pelos carros sem motorista do que pelos conduzidos por outras pessoas.”

Ela se preocupa principalmente com o que a tecnologia pode significar para a cidade, especialmente depois de ter visto o impacto do setor de corridas particulares.

“Para mim, Uber e Lyft tiveram um impacto muito negativo em São Francisco, e seria péssimo se os carros de motorista da Waymo e da Cruise invadissem esse espaço para se tornar, novamente, um empecilho nas ruas da cidade”, disse McKinney.

O Facebook tornou famoso o lema “Mover-se com rapidez e quebrar algumas coisas”, mas essa clássica abordagem das startups de tecnologia representa uma equação diferente em se tratando de carros sem motorista.

Não houve votação para decidir se os carros poderiam ser testados em São Francisco. As grandes empresas de tecnologia e do setor automobilístico receberam permissão das agências estaduais, incluindo o California Department of Motor Vehicles, e há limites para o quanto a cidade pode regulamentar os programas de teste.

“Não estamos falando de uma cidade que teme a tecnologia”, disse Aaron Peskin, presidente da câmara de vereadores de São Francisco. “Quem quiser usar São Francisco como tubo de ensaio deveria começar pedindo permissão e cooperação em vez de pedir desculpas, que têm caracterizado o uso que as empresas de tecnologia fazem de São Francisco.”

A cidade aprovou leis em resposta a empresas como Airbnb, limitando o número de lares que podem ser usados para aluguéis de curto prazo para garantir a disponibilidade de habitações acessíveis. Depois que os patinetes elétricos foram lançados, eles foram espalhados livremente pela cidade até serem alvo de regulamentação.

A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros Foto: John G. Mabanglo/Efe/Epa

Em janeiro, a secretaria de transportes de São Francisco redigiu uma carta de 23 páginas às agências estaduais descrevendo as preocupações da cidade com os veículos autônomos e protestando contra os planos de expansão das empresas. A Cruise deseja expandir seu serviço de corridas pagas para toda a cidade, sem restrições de horário.

Peskin disse que as empresas têm cooperado menos com as autoridades locais, preocupadas com a segurança, a transparência, a privacidade e a conveniência.

“Isso pode levar a um mundo mais seguro de transportes menos congestionados. E pode também produzir um pesadelo distópico”, disse Peskin.

Pusateri, porta-voz da Cruise, disse que a empresa lamenta as eventuais inconveniências, mas apresenta como contexto os ferimentos e mortes causados por carros pilotados por humanos em São Francisco. A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros. As habilidades de pilotagem dos carros são aprimoradas a cada nova versão do seu software, de acordo com David Margines, diretor do grupo de produtos da Waymo.

O inesperado parece ser um dos maiores problemas para os carros autônomos, e o culpado pela maioria dos acidentes mais notórios envolvendo esses veículos. Os carros podem se confundir, congelar e até sofrer uma pane ao encontrar um cenário novo que não seja contemplado na sua programação.

Depois que uma série de perigosas tempestades atingiu a área em março, ao menos um carro da Waymo ficou encalhado diante de uma árvore caída, parando no meio de um cruzamento. Mais recentemente, um carro da Cruise bateu na traseira de um ônibus municipal articulado, formado por duas seções e bem mais longo do que um ônibus comum. A GM disse ter atualizado seus 300 carros, reprogramando-os para melhor compreenderem os ônibus.

Mais perigosas são as dificuldades deles em locais de emergência. No local de um incêndio, um bombeiro teve que quebrar a janela de um carro da Cruise para impedi-lo de passar por cima de uma mangueira. Em outro caso parecido, um carro passou por cima de uma mangueira em uso, de acordo com a carta da secretaria de transportes de São Francisco.

O maior temor de todos é uma fatalidade, algo que deve voltar a ocorrer quase com certeza no futuro. Em 2018, um carro autônomo do Uber com um motorista de segurança distraído ao volante atropelou e matou Elaine Herzberg, 49 anos, enquanto ela atravessava a rua empurrando sua bicicleta à noite em Tempe, Arizona.

O sistema do carro não levou em conta a possibilidade de alguém atravessar a rua fora da faixa de pedestres, de acordo com investigadores do departamento nacional de segurança nos transportes. O Uber encerrou seu programa de veículos autônomos em 2020 e atualmente trabalha com empresas automobilísticas de fora.

Adaptação a um mundo de carros robôs

Se os carros estão aprendendo a lidar com as idiossincrasias do comportamento humano, os humanos estão aprendendo a lidar com esses carros.

“Esses sistemas autônomos não podem ser sociais, então nós precisamos ser ainda mais sociais e ceder”, disse a antropóloga Sally Applin, que estuda a interseção entre pessoas, algoritmos e ética. “Às vezes me pergunto se seria sequer possível ensinar a um carro todas as interações que ele poderia ter.”

A falta de contato olho no olho pode ser inquietante para os pedestres, bem como para os pais que tentam ensinar aos filhos a importância de chamar a atenção do motorista antes de atravessar na sua frente. Acenar, olhar, sorrir e gesticular com a cabeça são geralmente inúteis com os carros autônomos. É necessário substituí-los por uma confiança cega na capacidade do sistema do carro de nos ver.

As empresas de veículos dizem que já trabalharam para ensinar os carros a reconhecer gestos manuais, como aqueles que um guarda de trânsito faria.

Anna Limkin, que vive em São Francisco no bairro de Noe Valley, não consegue confiar tanto na tecnologia. “Ainda não temos uma tecnologia capaz de replicar os sentidos que usamos e que nos permitem escapar, limitar ou evitar um acidente”, disse ela.

Por outro lado, há quem busque testar os limites das capacidades desses carros, pulando diante deles para ver se de fato param.

Os humanos estão longe de ser motoristas perfeitos. Em 2021, foram 37 mortes no trânsito em São Francisco, e o número vem aumentando quase todos os anos desde 2017.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros Foto: Peter DaSilva/Reuters

Para alguns moradores, os carros automatizados, programados para seguir as regras do trânsito, são um alívio.

Andrew Harding não tem carro e vai para o trabalho usando bicicleta ou transporte público. Ele se mudou com a família para São Francisco vindo de Atlanta no ano passado, motivado principalmente pela percepção de que a cidade se adequa ao seu estilo de vida sem carro. O técnico de arquitetura de 47 anos diz que teve experiências positivas compartilhando as ruas com carros da Waymo e da Cruise, programados para manter a devida distância em relação aos ciclistas ao ultrapassá-los, ou a reduzir a velocidade e permanecer atrás deles.

“Só eles obedecem o limite de velocidade na região de Sunset, só eles respeitam o espaço dos ciclistas”, disse Harding, referindo-se à sua experiência. “O que mata é a velocidade. Por isso, mantenho a positividade em relação ao experimento.”

Se os moradores locais os estranham ou se já se acostumaram com eles, para os turistas na Baía de São Francisco a ideia de carros que se pilotam sozinhos sem nenhum humano impressiona, e eles procuram passear neles como parte do passeio.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros. O serviço da Waymo, chamado Waymo One, é gratuito por enquanto; já a Cruise cobra tarifas semelhantes às do Uber.

“É a ideia de viajar em um carro do futuro, algo que vimos no noticiário. Quando soube disso, pensei que seria um passeio bacana”, disse Omar Saeed, 29 anos, que veio de Ohio passar férias em São Francisco em abril. “Eu queria ver como seria a reação do carro diante de um obstáculo. A ideia era brincar com ele e testar um pouco suas habilidades.”

Depois de ver no TikTok alguém explicando como fazer para andar em um carro da Cruise, ele se inscreveu no aplicativo e foi aprovado quatro dias depois. A Cruise tem permissão para oferecer corridas pagas somente das 22h às 5h30. Ele disse que, apesar do passeio divertido, a impressão era de que o carro ainda estava em fase de aprendizado.

Ele disse que encarou a experiência como algo diferente do que a maioria enxerga:

“Para mim, foi como um passeio em um parque de diversões.”/Tradução de Augusto Calil

SÃO FRANCISCO — Quando a densa e icônica neblina cobriu o bairro residencial de Balboa Terrace em uma terça feira recente, cinco SUVs brancas iguais, cobertas de câmeras, pararam onde estavam.

Confusos com a queda na visibilidade, os carros modelo Jaguar I-PACE, elétricos e pertencentes ao Google, tentaram parar e esperar até que o clima melhorasse, criando um breve engarrafamento. Mas não havia com quem gritar. Os carros eram veículos autônomos pilotados por software.

Era apenas outro dia na vida dos habitantes de São Francisco, que notaram uma súbita alta no número de veículos vazios rodando pela cidade nos meses mais recentes. A Waymo, pertencente ao Google, e a Cruise, da General Motors, são algumas das empresas testando sua tecnologia autônoma na cidade, treinando os carros a compartilhar as ruas com humanos menos previsíveis e a reagir a situações do mundo real. É algo observado também em outras cidades, como Phoenix, Austin e partes de Los Angeles, e as empresas planejam expandir as atividades para mais locais no próximo ano.

Embora os veículos sejam testados aqui desde 2018, recentemente elas receberam permissão para que os veículos rodem nas ruas durante o dia sem motoristas de segurança, pessoas pagas para ficar de prontidão ao volante para o caso de algo dar errado. A Waymo começou um ano atrás, e a Cruise, no fim de 2021, mas vêm aumentando os números constantemente. Isso levou a uma alta nos incidentes, de acordo com os habitantes, que vão desde engarrafamentos até acidentes como a colisão com a traseira de um ônibus.

Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança Foto: Terry Chea/AP

Morando perto do Vale do Silício, os residentes de São Francisco estão acostumados a serem incluídos nos testes das versões preliminares dos produtos das grandes empresas de tecnologia. Foi aqui que começou o lançamento do Uber e do modelo de aplicativos de corridas, aluguéis expressos do Airbnb, patinetes elétricos sem ponto de devolução e robôs de calçada.

Mas alguns moradores estão começando a questionar este arranjo, particularmente em um momento em que as empresas de veículos autônomos estão de olho em uma próxima fase: oferecer corridas a clientes em mais lugares, 24 horas por dia.

“As empresas de tecnologia nos enxergam como um lugar muito tolerante em relação às confusões delas”, disse Marita Murphy, 40 anos, que trabalha com produção de áudio na cidade. “Enquanto moradora local, não tenho a sensação de ter controle ou voz nesse processo. Parece que estamos sujeitos à vontade dessas empresas e suas motivações financeiras.”

A Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança. A Cruise está desenvolvendo a tecnologia para oferecer alternativas de transporte mais seguras e ecológicas, disse o porta-voz Drew Pusateri.

No geral, os carros vazios da Cruise e da Waymo se comportam como rigorosos e nervosos alunos de autoescola, sem jamais exceder o limite de velocidade, parando diante das placas e freando ao menor sinal de problemas. Frequentemente, o mais alarmante para as pessoas não é o comportamento do carro, e sim a visão de um veículo vazio, coberto de câmeras e sensores, movendo-se independentemente.

“É algo inquietante, que nos deixa pouco à vontade. Tem alguma coisa no nosso cérebro que diz, isso não faz sentido”, disse Molly McDermott, professora de uma escola pública de São Francisco na região de Mission District, onde vive há 15 anos. “Não me sinto pronta para uma dose tão grande de futurismo.”

Joyce McKinney vive na calçada oposta a um parque público que funciona como estacionamento improvisado para os carros da Waymo. Ela relata ver até três deles alinhados na rua, estacionados um ao lado do outro. Certa vez, um deles parou no meio da rua e interrompeu o trânsito por 15 minutos. Os carros finalmente voltaram à vida e saíram andando.

Ela diz que, apesar das eventuais falhas, esses carros são como os motoristas locais humanos, ou melhores do que eles. “Sinto-me menos ameaçada pelos carros sem motorista do que pelos conduzidos por outras pessoas.”

Ela se preocupa principalmente com o que a tecnologia pode significar para a cidade, especialmente depois de ter visto o impacto do setor de corridas particulares.

“Para mim, Uber e Lyft tiveram um impacto muito negativo em São Francisco, e seria péssimo se os carros de motorista da Waymo e da Cruise invadissem esse espaço para se tornar, novamente, um empecilho nas ruas da cidade”, disse McKinney.

O Facebook tornou famoso o lema “Mover-se com rapidez e quebrar algumas coisas”, mas essa clássica abordagem das startups de tecnologia representa uma equação diferente em se tratando de carros sem motorista.

Não houve votação para decidir se os carros poderiam ser testados em São Francisco. As grandes empresas de tecnologia e do setor automobilístico receberam permissão das agências estaduais, incluindo o California Department of Motor Vehicles, e há limites para o quanto a cidade pode regulamentar os programas de teste.

“Não estamos falando de uma cidade que teme a tecnologia”, disse Aaron Peskin, presidente da câmara de vereadores de São Francisco. “Quem quiser usar São Francisco como tubo de ensaio deveria começar pedindo permissão e cooperação em vez de pedir desculpas, que têm caracterizado o uso que as empresas de tecnologia fazem de São Francisco.”

A cidade aprovou leis em resposta a empresas como Airbnb, limitando o número de lares que podem ser usados para aluguéis de curto prazo para garantir a disponibilidade de habitações acessíveis. Depois que os patinetes elétricos foram lançados, eles foram espalhados livremente pela cidade até serem alvo de regulamentação.

A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros Foto: John G. Mabanglo/Efe/Epa

Em janeiro, a secretaria de transportes de São Francisco redigiu uma carta de 23 páginas às agências estaduais descrevendo as preocupações da cidade com os veículos autônomos e protestando contra os planos de expansão das empresas. A Cruise deseja expandir seu serviço de corridas pagas para toda a cidade, sem restrições de horário.

Peskin disse que as empresas têm cooperado menos com as autoridades locais, preocupadas com a segurança, a transparência, a privacidade e a conveniência.

“Isso pode levar a um mundo mais seguro de transportes menos congestionados. E pode também produzir um pesadelo distópico”, disse Peskin.

Pusateri, porta-voz da Cruise, disse que a empresa lamenta as eventuais inconveniências, mas apresenta como contexto os ferimentos e mortes causados por carros pilotados por humanos em São Francisco. A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros. As habilidades de pilotagem dos carros são aprimoradas a cada nova versão do seu software, de acordo com David Margines, diretor do grupo de produtos da Waymo.

O inesperado parece ser um dos maiores problemas para os carros autônomos, e o culpado pela maioria dos acidentes mais notórios envolvendo esses veículos. Os carros podem se confundir, congelar e até sofrer uma pane ao encontrar um cenário novo que não seja contemplado na sua programação.

Depois que uma série de perigosas tempestades atingiu a área em março, ao menos um carro da Waymo ficou encalhado diante de uma árvore caída, parando no meio de um cruzamento. Mais recentemente, um carro da Cruise bateu na traseira de um ônibus municipal articulado, formado por duas seções e bem mais longo do que um ônibus comum. A GM disse ter atualizado seus 300 carros, reprogramando-os para melhor compreenderem os ônibus.

Mais perigosas são as dificuldades deles em locais de emergência. No local de um incêndio, um bombeiro teve que quebrar a janela de um carro da Cruise para impedi-lo de passar por cima de uma mangueira. Em outro caso parecido, um carro passou por cima de uma mangueira em uso, de acordo com a carta da secretaria de transportes de São Francisco.

O maior temor de todos é uma fatalidade, algo que deve voltar a ocorrer quase com certeza no futuro. Em 2018, um carro autônomo do Uber com um motorista de segurança distraído ao volante atropelou e matou Elaine Herzberg, 49 anos, enquanto ela atravessava a rua empurrando sua bicicleta à noite em Tempe, Arizona.

O sistema do carro não levou em conta a possibilidade de alguém atravessar a rua fora da faixa de pedestres, de acordo com investigadores do departamento nacional de segurança nos transportes. O Uber encerrou seu programa de veículos autônomos em 2020 e atualmente trabalha com empresas automobilísticas de fora.

Adaptação a um mundo de carros robôs

Se os carros estão aprendendo a lidar com as idiossincrasias do comportamento humano, os humanos estão aprendendo a lidar com esses carros.

“Esses sistemas autônomos não podem ser sociais, então nós precisamos ser ainda mais sociais e ceder”, disse a antropóloga Sally Applin, que estuda a interseção entre pessoas, algoritmos e ética. “Às vezes me pergunto se seria sequer possível ensinar a um carro todas as interações que ele poderia ter.”

A falta de contato olho no olho pode ser inquietante para os pedestres, bem como para os pais que tentam ensinar aos filhos a importância de chamar a atenção do motorista antes de atravessar na sua frente. Acenar, olhar, sorrir e gesticular com a cabeça são geralmente inúteis com os carros autônomos. É necessário substituí-los por uma confiança cega na capacidade do sistema do carro de nos ver.

As empresas de veículos dizem que já trabalharam para ensinar os carros a reconhecer gestos manuais, como aqueles que um guarda de trânsito faria.

Anna Limkin, que vive em São Francisco no bairro de Noe Valley, não consegue confiar tanto na tecnologia. “Ainda não temos uma tecnologia capaz de replicar os sentidos que usamos e que nos permitem escapar, limitar ou evitar um acidente”, disse ela.

Por outro lado, há quem busque testar os limites das capacidades desses carros, pulando diante deles para ver se de fato param.

Os humanos estão longe de ser motoristas perfeitos. Em 2021, foram 37 mortes no trânsito em São Francisco, e o número vem aumentando quase todos os anos desde 2017.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros Foto: Peter DaSilva/Reuters

Para alguns moradores, os carros automatizados, programados para seguir as regras do trânsito, são um alívio.

Andrew Harding não tem carro e vai para o trabalho usando bicicleta ou transporte público. Ele se mudou com a família para São Francisco vindo de Atlanta no ano passado, motivado principalmente pela percepção de que a cidade se adequa ao seu estilo de vida sem carro. O técnico de arquitetura de 47 anos diz que teve experiências positivas compartilhando as ruas com carros da Waymo e da Cruise, programados para manter a devida distância em relação aos ciclistas ao ultrapassá-los, ou a reduzir a velocidade e permanecer atrás deles.

“Só eles obedecem o limite de velocidade na região de Sunset, só eles respeitam o espaço dos ciclistas”, disse Harding, referindo-se à sua experiência. “O que mata é a velocidade. Por isso, mantenho a positividade em relação ao experimento.”

Se os moradores locais os estranham ou se já se acostumaram com eles, para os turistas na Baía de São Francisco a ideia de carros que se pilotam sozinhos sem nenhum humano impressiona, e eles procuram passear neles como parte do passeio.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros. O serviço da Waymo, chamado Waymo One, é gratuito por enquanto; já a Cruise cobra tarifas semelhantes às do Uber.

“É a ideia de viajar em um carro do futuro, algo que vimos no noticiário. Quando soube disso, pensei que seria um passeio bacana”, disse Omar Saeed, 29 anos, que veio de Ohio passar férias em São Francisco em abril. “Eu queria ver como seria a reação do carro diante de um obstáculo. A ideia era brincar com ele e testar um pouco suas habilidades.”

Depois de ver no TikTok alguém explicando como fazer para andar em um carro da Cruise, ele se inscreveu no aplicativo e foi aprovado quatro dias depois. A Cruise tem permissão para oferecer corridas pagas somente das 22h às 5h30. Ele disse que, apesar do passeio divertido, a impressão era de que o carro ainda estava em fase de aprendizado.

Ele disse que encarou a experiência como algo diferente do que a maioria enxerga:

“Para mim, foi como um passeio em um parque de diversões.”/Tradução de Augusto Calil

SÃO FRANCISCO — Quando a densa e icônica neblina cobriu o bairro residencial de Balboa Terrace em uma terça feira recente, cinco SUVs brancas iguais, cobertas de câmeras, pararam onde estavam.

Confusos com a queda na visibilidade, os carros modelo Jaguar I-PACE, elétricos e pertencentes ao Google, tentaram parar e esperar até que o clima melhorasse, criando um breve engarrafamento. Mas não havia com quem gritar. Os carros eram veículos autônomos pilotados por software.

Era apenas outro dia na vida dos habitantes de São Francisco, que notaram uma súbita alta no número de veículos vazios rodando pela cidade nos meses mais recentes. A Waymo, pertencente ao Google, e a Cruise, da General Motors, são algumas das empresas testando sua tecnologia autônoma na cidade, treinando os carros a compartilhar as ruas com humanos menos previsíveis e a reagir a situações do mundo real. É algo observado também em outras cidades, como Phoenix, Austin e partes de Los Angeles, e as empresas planejam expandir as atividades para mais locais no próximo ano.

Embora os veículos sejam testados aqui desde 2018, recentemente elas receberam permissão para que os veículos rodem nas ruas durante o dia sem motoristas de segurança, pessoas pagas para ficar de prontidão ao volante para o caso de algo dar errado. A Waymo começou um ano atrás, e a Cruise, no fim de 2021, mas vêm aumentando os números constantemente. Isso levou a uma alta nos incidentes, de acordo com os habitantes, que vão desde engarrafamentos até acidentes como a colisão com a traseira de um ônibus.

Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança Foto: Terry Chea/AP

Morando perto do Vale do Silício, os residentes de São Francisco estão acostumados a serem incluídos nos testes das versões preliminares dos produtos das grandes empresas de tecnologia. Foi aqui que começou o lançamento do Uber e do modelo de aplicativos de corridas, aluguéis expressos do Airbnb, patinetes elétricos sem ponto de devolução e robôs de calçada.

Mas alguns moradores estão começando a questionar este arranjo, particularmente em um momento em que as empresas de veículos autônomos estão de olho em uma próxima fase: oferecer corridas a clientes em mais lugares, 24 horas por dia.

“As empresas de tecnologia nos enxergam como um lugar muito tolerante em relação às confusões delas”, disse Marita Murphy, 40 anos, que trabalha com produção de áudio na cidade. “Enquanto moradora local, não tenho a sensação de ter controle ou voz nesse processo. Parece que estamos sujeitos à vontade dessas empresas e suas motivações financeiras.”

A Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança. A Cruise está desenvolvendo a tecnologia para oferecer alternativas de transporte mais seguras e ecológicas, disse o porta-voz Drew Pusateri.

No geral, os carros vazios da Cruise e da Waymo se comportam como rigorosos e nervosos alunos de autoescola, sem jamais exceder o limite de velocidade, parando diante das placas e freando ao menor sinal de problemas. Frequentemente, o mais alarmante para as pessoas não é o comportamento do carro, e sim a visão de um veículo vazio, coberto de câmeras e sensores, movendo-se independentemente.

“É algo inquietante, que nos deixa pouco à vontade. Tem alguma coisa no nosso cérebro que diz, isso não faz sentido”, disse Molly McDermott, professora de uma escola pública de São Francisco na região de Mission District, onde vive há 15 anos. “Não me sinto pronta para uma dose tão grande de futurismo.”

Joyce McKinney vive na calçada oposta a um parque público que funciona como estacionamento improvisado para os carros da Waymo. Ela relata ver até três deles alinhados na rua, estacionados um ao lado do outro. Certa vez, um deles parou no meio da rua e interrompeu o trânsito por 15 minutos. Os carros finalmente voltaram à vida e saíram andando.

Ela diz que, apesar das eventuais falhas, esses carros são como os motoristas locais humanos, ou melhores do que eles. “Sinto-me menos ameaçada pelos carros sem motorista do que pelos conduzidos por outras pessoas.”

Ela se preocupa principalmente com o que a tecnologia pode significar para a cidade, especialmente depois de ter visto o impacto do setor de corridas particulares.

“Para mim, Uber e Lyft tiveram um impacto muito negativo em São Francisco, e seria péssimo se os carros de motorista da Waymo e da Cruise invadissem esse espaço para se tornar, novamente, um empecilho nas ruas da cidade”, disse McKinney.

O Facebook tornou famoso o lema “Mover-se com rapidez e quebrar algumas coisas”, mas essa clássica abordagem das startups de tecnologia representa uma equação diferente em se tratando de carros sem motorista.

Não houve votação para decidir se os carros poderiam ser testados em São Francisco. As grandes empresas de tecnologia e do setor automobilístico receberam permissão das agências estaduais, incluindo o California Department of Motor Vehicles, e há limites para o quanto a cidade pode regulamentar os programas de teste.

“Não estamos falando de uma cidade que teme a tecnologia”, disse Aaron Peskin, presidente da câmara de vereadores de São Francisco. “Quem quiser usar São Francisco como tubo de ensaio deveria começar pedindo permissão e cooperação em vez de pedir desculpas, que têm caracterizado o uso que as empresas de tecnologia fazem de São Francisco.”

A cidade aprovou leis em resposta a empresas como Airbnb, limitando o número de lares que podem ser usados para aluguéis de curto prazo para garantir a disponibilidade de habitações acessíveis. Depois que os patinetes elétricos foram lançados, eles foram espalhados livremente pela cidade até serem alvo de regulamentação.

A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros Foto: John G. Mabanglo/Efe/Epa

Em janeiro, a secretaria de transportes de São Francisco redigiu uma carta de 23 páginas às agências estaduais descrevendo as preocupações da cidade com os veículos autônomos e protestando contra os planos de expansão das empresas. A Cruise deseja expandir seu serviço de corridas pagas para toda a cidade, sem restrições de horário.

Peskin disse que as empresas têm cooperado menos com as autoridades locais, preocupadas com a segurança, a transparência, a privacidade e a conveniência.

“Isso pode levar a um mundo mais seguro de transportes menos congestionados. E pode também produzir um pesadelo distópico”, disse Peskin.

Pusateri, porta-voz da Cruise, disse que a empresa lamenta as eventuais inconveniências, mas apresenta como contexto os ferimentos e mortes causados por carros pilotados por humanos em São Francisco. A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros. As habilidades de pilotagem dos carros são aprimoradas a cada nova versão do seu software, de acordo com David Margines, diretor do grupo de produtos da Waymo.

O inesperado parece ser um dos maiores problemas para os carros autônomos, e o culpado pela maioria dos acidentes mais notórios envolvendo esses veículos. Os carros podem se confundir, congelar e até sofrer uma pane ao encontrar um cenário novo que não seja contemplado na sua programação.

Depois que uma série de perigosas tempestades atingiu a área em março, ao menos um carro da Waymo ficou encalhado diante de uma árvore caída, parando no meio de um cruzamento. Mais recentemente, um carro da Cruise bateu na traseira de um ônibus municipal articulado, formado por duas seções e bem mais longo do que um ônibus comum. A GM disse ter atualizado seus 300 carros, reprogramando-os para melhor compreenderem os ônibus.

Mais perigosas são as dificuldades deles em locais de emergência. No local de um incêndio, um bombeiro teve que quebrar a janela de um carro da Cruise para impedi-lo de passar por cima de uma mangueira. Em outro caso parecido, um carro passou por cima de uma mangueira em uso, de acordo com a carta da secretaria de transportes de São Francisco.

O maior temor de todos é uma fatalidade, algo que deve voltar a ocorrer quase com certeza no futuro. Em 2018, um carro autônomo do Uber com um motorista de segurança distraído ao volante atropelou e matou Elaine Herzberg, 49 anos, enquanto ela atravessava a rua empurrando sua bicicleta à noite em Tempe, Arizona.

O sistema do carro não levou em conta a possibilidade de alguém atravessar a rua fora da faixa de pedestres, de acordo com investigadores do departamento nacional de segurança nos transportes. O Uber encerrou seu programa de veículos autônomos em 2020 e atualmente trabalha com empresas automobilísticas de fora.

Adaptação a um mundo de carros robôs

Se os carros estão aprendendo a lidar com as idiossincrasias do comportamento humano, os humanos estão aprendendo a lidar com esses carros.

“Esses sistemas autônomos não podem ser sociais, então nós precisamos ser ainda mais sociais e ceder”, disse a antropóloga Sally Applin, que estuda a interseção entre pessoas, algoritmos e ética. “Às vezes me pergunto se seria sequer possível ensinar a um carro todas as interações que ele poderia ter.”

A falta de contato olho no olho pode ser inquietante para os pedestres, bem como para os pais que tentam ensinar aos filhos a importância de chamar a atenção do motorista antes de atravessar na sua frente. Acenar, olhar, sorrir e gesticular com a cabeça são geralmente inúteis com os carros autônomos. É necessário substituí-los por uma confiança cega na capacidade do sistema do carro de nos ver.

As empresas de veículos dizem que já trabalharam para ensinar os carros a reconhecer gestos manuais, como aqueles que um guarda de trânsito faria.

Anna Limkin, que vive em São Francisco no bairro de Noe Valley, não consegue confiar tanto na tecnologia. “Ainda não temos uma tecnologia capaz de replicar os sentidos que usamos e que nos permitem escapar, limitar ou evitar um acidente”, disse ela.

Por outro lado, há quem busque testar os limites das capacidades desses carros, pulando diante deles para ver se de fato param.

Os humanos estão longe de ser motoristas perfeitos. Em 2021, foram 37 mortes no trânsito em São Francisco, e o número vem aumentando quase todos os anos desde 2017.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros Foto: Peter DaSilva/Reuters

Para alguns moradores, os carros automatizados, programados para seguir as regras do trânsito, são um alívio.

Andrew Harding não tem carro e vai para o trabalho usando bicicleta ou transporte público. Ele se mudou com a família para São Francisco vindo de Atlanta no ano passado, motivado principalmente pela percepção de que a cidade se adequa ao seu estilo de vida sem carro. O técnico de arquitetura de 47 anos diz que teve experiências positivas compartilhando as ruas com carros da Waymo e da Cruise, programados para manter a devida distância em relação aos ciclistas ao ultrapassá-los, ou a reduzir a velocidade e permanecer atrás deles.

“Só eles obedecem o limite de velocidade na região de Sunset, só eles respeitam o espaço dos ciclistas”, disse Harding, referindo-se à sua experiência. “O que mata é a velocidade. Por isso, mantenho a positividade em relação ao experimento.”

Se os moradores locais os estranham ou se já se acostumaram com eles, para os turistas na Baía de São Francisco a ideia de carros que se pilotam sozinhos sem nenhum humano impressiona, e eles procuram passear neles como parte do passeio.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros. O serviço da Waymo, chamado Waymo One, é gratuito por enquanto; já a Cruise cobra tarifas semelhantes às do Uber.

“É a ideia de viajar em um carro do futuro, algo que vimos no noticiário. Quando soube disso, pensei que seria um passeio bacana”, disse Omar Saeed, 29 anos, que veio de Ohio passar férias em São Francisco em abril. “Eu queria ver como seria a reação do carro diante de um obstáculo. A ideia era brincar com ele e testar um pouco suas habilidades.”

Depois de ver no TikTok alguém explicando como fazer para andar em um carro da Cruise, ele se inscreveu no aplicativo e foi aprovado quatro dias depois. A Cruise tem permissão para oferecer corridas pagas somente das 22h às 5h30. Ele disse que, apesar do passeio divertido, a impressão era de que o carro ainda estava em fase de aprendizado.

Ele disse que encarou a experiência como algo diferente do que a maioria enxerga:

“Para mim, foi como um passeio em um parque de diversões.”/Tradução de Augusto Calil

SÃO FRANCISCO — Quando a densa e icônica neblina cobriu o bairro residencial de Balboa Terrace em uma terça feira recente, cinco SUVs brancas iguais, cobertas de câmeras, pararam onde estavam.

Confusos com a queda na visibilidade, os carros modelo Jaguar I-PACE, elétricos e pertencentes ao Google, tentaram parar e esperar até que o clima melhorasse, criando um breve engarrafamento. Mas não havia com quem gritar. Os carros eram veículos autônomos pilotados por software.

Era apenas outro dia na vida dos habitantes de São Francisco, que notaram uma súbita alta no número de veículos vazios rodando pela cidade nos meses mais recentes. A Waymo, pertencente ao Google, e a Cruise, da General Motors, são algumas das empresas testando sua tecnologia autônoma na cidade, treinando os carros a compartilhar as ruas com humanos menos previsíveis e a reagir a situações do mundo real. É algo observado também em outras cidades, como Phoenix, Austin e partes de Los Angeles, e as empresas planejam expandir as atividades para mais locais no próximo ano.

Embora os veículos sejam testados aqui desde 2018, recentemente elas receberam permissão para que os veículos rodem nas ruas durante o dia sem motoristas de segurança, pessoas pagas para ficar de prontidão ao volante para o caso de algo dar errado. A Waymo começou um ano atrás, e a Cruise, no fim de 2021, mas vêm aumentando os números constantemente. Isso levou a uma alta nos incidentes, de acordo com os habitantes, que vão desde engarrafamentos até acidentes como a colisão com a traseira de um ônibus.

Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança Foto: Terry Chea/AP

Morando perto do Vale do Silício, os residentes de São Francisco estão acostumados a serem incluídos nos testes das versões preliminares dos produtos das grandes empresas de tecnologia. Foi aqui que começou o lançamento do Uber e do modelo de aplicativos de corridas, aluguéis expressos do Airbnb, patinetes elétricos sem ponto de devolução e robôs de calçada.

Mas alguns moradores estão começando a questionar este arranjo, particularmente em um momento em que as empresas de veículos autônomos estão de olho em uma próxima fase: oferecer corridas a clientes em mais lugares, 24 horas por dia.

“As empresas de tecnologia nos enxergam como um lugar muito tolerante em relação às confusões delas”, disse Marita Murphy, 40 anos, que trabalha com produção de áudio na cidade. “Enquanto moradora local, não tenho a sensação de ter controle ou voz nesse processo. Parece que estamos sujeitos à vontade dessas empresas e suas motivações financeiras.”

A Waymo reconheceu o problema do engarrafamento causado pela neblina e disse que seus carros pararam brevemente por questão de segurança. A Cruise está desenvolvendo a tecnologia para oferecer alternativas de transporte mais seguras e ecológicas, disse o porta-voz Drew Pusateri.

No geral, os carros vazios da Cruise e da Waymo se comportam como rigorosos e nervosos alunos de autoescola, sem jamais exceder o limite de velocidade, parando diante das placas e freando ao menor sinal de problemas. Frequentemente, o mais alarmante para as pessoas não é o comportamento do carro, e sim a visão de um veículo vazio, coberto de câmeras e sensores, movendo-se independentemente.

“É algo inquietante, que nos deixa pouco à vontade. Tem alguma coisa no nosso cérebro que diz, isso não faz sentido”, disse Molly McDermott, professora de uma escola pública de São Francisco na região de Mission District, onde vive há 15 anos. “Não me sinto pronta para uma dose tão grande de futurismo.”

Joyce McKinney vive na calçada oposta a um parque público que funciona como estacionamento improvisado para os carros da Waymo. Ela relata ver até três deles alinhados na rua, estacionados um ao lado do outro. Certa vez, um deles parou no meio da rua e interrompeu o trânsito por 15 minutos. Os carros finalmente voltaram à vida e saíram andando.

Ela diz que, apesar das eventuais falhas, esses carros são como os motoristas locais humanos, ou melhores do que eles. “Sinto-me menos ameaçada pelos carros sem motorista do que pelos conduzidos por outras pessoas.”

Ela se preocupa principalmente com o que a tecnologia pode significar para a cidade, especialmente depois de ter visto o impacto do setor de corridas particulares.

“Para mim, Uber e Lyft tiveram um impacto muito negativo em São Francisco, e seria péssimo se os carros de motorista da Waymo e da Cruise invadissem esse espaço para se tornar, novamente, um empecilho nas ruas da cidade”, disse McKinney.

O Facebook tornou famoso o lema “Mover-se com rapidez e quebrar algumas coisas”, mas essa clássica abordagem das startups de tecnologia representa uma equação diferente em se tratando de carros sem motorista.

Não houve votação para decidir se os carros poderiam ser testados em São Francisco. As grandes empresas de tecnologia e do setor automobilístico receberam permissão das agências estaduais, incluindo o California Department of Motor Vehicles, e há limites para o quanto a cidade pode regulamentar os programas de teste.

“Não estamos falando de uma cidade que teme a tecnologia”, disse Aaron Peskin, presidente da câmara de vereadores de São Francisco. “Quem quiser usar São Francisco como tubo de ensaio deveria começar pedindo permissão e cooperação em vez de pedir desculpas, que têm caracterizado o uso que as empresas de tecnologia fazem de São Francisco.”

A cidade aprovou leis em resposta a empresas como Airbnb, limitando o número de lares que podem ser usados para aluguéis de curto prazo para garantir a disponibilidade de habitações acessíveis. Depois que os patinetes elétricos foram lançados, eles foram espalhados livremente pela cidade até serem alvo de regulamentação.

A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros Foto: John G. Mabanglo/Efe/Epa

Em janeiro, a secretaria de transportes de São Francisco redigiu uma carta de 23 páginas às agências estaduais descrevendo as preocupações da cidade com os veículos autônomos e protestando contra os planos de expansão das empresas. A Cruise deseja expandir seu serviço de corridas pagas para toda a cidade, sem restrições de horário.

Peskin disse que as empresas têm cooperado menos com as autoridades locais, preocupadas com a segurança, a transparência, a privacidade e a conveniência.

“Isso pode levar a um mundo mais seguro de transportes menos congestionados. E pode também produzir um pesadelo distópico”, disse Peskin.

Pusateri, porta-voz da Cruise, disse que a empresa lamenta as eventuais inconveniências, mas apresenta como contexto os ferimentos e mortes causados por carros pilotados por humanos em São Francisco. A Waymo diz que os incidentes são raros em relação ao número de quilômetros percorridos autonomamente pelos carros. As habilidades de pilotagem dos carros são aprimoradas a cada nova versão do seu software, de acordo com David Margines, diretor do grupo de produtos da Waymo.

O inesperado parece ser um dos maiores problemas para os carros autônomos, e o culpado pela maioria dos acidentes mais notórios envolvendo esses veículos. Os carros podem se confundir, congelar e até sofrer uma pane ao encontrar um cenário novo que não seja contemplado na sua programação.

Depois que uma série de perigosas tempestades atingiu a área em março, ao menos um carro da Waymo ficou encalhado diante de uma árvore caída, parando no meio de um cruzamento. Mais recentemente, um carro da Cruise bateu na traseira de um ônibus municipal articulado, formado por duas seções e bem mais longo do que um ônibus comum. A GM disse ter atualizado seus 300 carros, reprogramando-os para melhor compreenderem os ônibus.

Mais perigosas são as dificuldades deles em locais de emergência. No local de um incêndio, um bombeiro teve que quebrar a janela de um carro da Cruise para impedi-lo de passar por cima de uma mangueira. Em outro caso parecido, um carro passou por cima de uma mangueira em uso, de acordo com a carta da secretaria de transportes de São Francisco.

O maior temor de todos é uma fatalidade, algo que deve voltar a ocorrer quase com certeza no futuro. Em 2018, um carro autônomo do Uber com um motorista de segurança distraído ao volante atropelou e matou Elaine Herzberg, 49 anos, enquanto ela atravessava a rua empurrando sua bicicleta à noite em Tempe, Arizona.

O sistema do carro não levou em conta a possibilidade de alguém atravessar a rua fora da faixa de pedestres, de acordo com investigadores do departamento nacional de segurança nos transportes. O Uber encerrou seu programa de veículos autônomos em 2020 e atualmente trabalha com empresas automobilísticas de fora.

Adaptação a um mundo de carros robôs

Se os carros estão aprendendo a lidar com as idiossincrasias do comportamento humano, os humanos estão aprendendo a lidar com esses carros.

“Esses sistemas autônomos não podem ser sociais, então nós precisamos ser ainda mais sociais e ceder”, disse a antropóloga Sally Applin, que estuda a interseção entre pessoas, algoritmos e ética. “Às vezes me pergunto se seria sequer possível ensinar a um carro todas as interações que ele poderia ter.”

A falta de contato olho no olho pode ser inquietante para os pedestres, bem como para os pais que tentam ensinar aos filhos a importância de chamar a atenção do motorista antes de atravessar na sua frente. Acenar, olhar, sorrir e gesticular com a cabeça são geralmente inúteis com os carros autônomos. É necessário substituí-los por uma confiança cega na capacidade do sistema do carro de nos ver.

As empresas de veículos dizem que já trabalharam para ensinar os carros a reconhecer gestos manuais, como aqueles que um guarda de trânsito faria.

Anna Limkin, que vive em São Francisco no bairro de Noe Valley, não consegue confiar tanto na tecnologia. “Ainda não temos uma tecnologia capaz de replicar os sentidos que usamos e que nos permitem escapar, limitar ou evitar um acidente”, disse ela.

Por outro lado, há quem busque testar os limites das capacidades desses carros, pulando diante deles para ver se de fato param.

Os humanos estão longe de ser motoristas perfeitos. Em 2021, foram 37 mortes no trânsito em São Francisco, e o número vem aumentando quase todos os anos desde 2017.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros Foto: Peter DaSilva/Reuters

Para alguns moradores, os carros automatizados, programados para seguir as regras do trânsito, são um alívio.

Andrew Harding não tem carro e vai para o trabalho usando bicicleta ou transporte público. Ele se mudou com a família para São Francisco vindo de Atlanta no ano passado, motivado principalmente pela percepção de que a cidade se adequa ao seu estilo de vida sem carro. O técnico de arquitetura de 47 anos diz que teve experiências positivas compartilhando as ruas com carros da Waymo e da Cruise, programados para manter a devida distância em relação aos ciclistas ao ultrapassá-los, ou a reduzir a velocidade e permanecer atrás deles.

“Só eles obedecem o limite de velocidade na região de Sunset, só eles respeitam o espaço dos ciclistas”, disse Harding, referindo-se à sua experiência. “O que mata é a velocidade. Por isso, mantenho a positividade em relação ao experimento.”

Se os moradores locais os estranham ou se já se acostumaram com eles, para os turistas na Baía de São Francisco a ideia de carros que se pilotam sozinhos sem nenhum humano impressiona, e eles procuram passear neles como parte do passeio.

Waymo e Cruise têm aplicativos nos quais o usuário pode se inscrever em uma lista de espera para viajar nos carros. O serviço da Waymo, chamado Waymo One, é gratuito por enquanto; já a Cruise cobra tarifas semelhantes às do Uber.

“É a ideia de viajar em um carro do futuro, algo que vimos no noticiário. Quando soube disso, pensei que seria um passeio bacana”, disse Omar Saeed, 29 anos, que veio de Ohio passar férias em São Francisco em abril. “Eu queria ver como seria a reação do carro diante de um obstáculo. A ideia era brincar com ele e testar um pouco suas habilidades.”

Depois de ver no TikTok alguém explicando como fazer para andar em um carro da Cruise, ele se inscreveu no aplicativo e foi aprovado quatro dias depois. A Cruise tem permissão para oferecer corridas pagas somente das 22h às 5h30. Ele disse que, apesar do passeio divertido, a impressão era de que o carro ainda estava em fase de aprendizado.

Ele disse que encarou a experiência como algo diferente do que a maioria enxerga:

“Para mim, foi como um passeio em um parque de diversões.”/Tradução de Augusto Calil

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