RIO - Após o crescimento econômico mais acelerado do que o inicialmente previsto por analistas do mercado financeiro no primeiro semestre, uma desaceleração no fim deste ano e no próximo se espalha pelos cenários. Além do fôlego curto dos motores desse crescimento mais forte da primeira metade do ano, especialistas do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre) elencaram, durante um debate virtual promovido em parceria com o Estadão nesta quinta-feira, 8, uma série de obstáculos para o médio prazo. Os destaques são a perspectiva de uma recessão global, a necessidade de esfriar a economia para controlar a inflação alta e a desorganização das contas do governo, descrita como um problema “institucional”, além de fiscal.
Esses três principais obstáculos estão conectados entre si. Na esteira da forma desigual como a pandemia de covid-19 se abateu sobre a economia global, a inflação explodiu em praticamente todos os países. Como reação, quase todos os bancos centrais – as ações do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) e do Banco Central Europeu (BCE) pesam mais, mas o Banco Central (BC) brasileiro saiu até na frente – passaram a subir seus juros básicos, com o intuito de esfriar a demanda e, assim, segurar os aumentos de preços.
Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro Ibre, lembrou durante o seminário on-line que, por causa da pandemia, o aumento da inflação em todo o mundo se deu de forma “sincronizada”. Da mesma forma, a reação, ou seja, o aperto nas políticas monetárias com as elevações de juros, está ocorrendo de forma sincronizada – ainda que, no Brasil, o BC tenha saído na frente.
“A desaceleração mundial está em curso e é um movimento sincronizado. A dúvida é a intensidade da desaceleração da atividade para controlar a inflação. Será um ajuste fino? Uma desinflação mais gradual, com efeito menos intensos sobre a atividade, é um cenário possível, mas tenho uma visão cética”, afirmou Matos.
A estratégia do Fed captura a atenção de economistas e analistas de todo mundo. Por causa do peso dos Estados Unidos na economia global, uma recessão por lá pode arrastar os demais países. E o aperto nos Estados Unidos tem impactos nos mercados financeiros, traduzidos em dólar mais forte perante as demais moedas e em juros de mercado mais elevados.
Para José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Ibre, o presidente do Fed, Jerome Powell, deixou claro em seus últimos posicionamentos públicos, que os juros americanos subirão até o nível necessário para segurar a inflação – a inflação nos Estados Unidos ficou em 8,5% no acumulado em 12 meses até julho, abaixo dos 9,1% de junho, mas a taxa vem frequentando as máximas dos últimos 40 anos nos últimos meses.
“O aperto será ainda maior, o Fed não vai desistir, o risco de recessão é significativo”, afirmou Senna, também participante do seminário.
A desaceleração ou até uma recessão global tendem a esfriar o crescimento econômico do Brasil. Além da menor demanda pelos produtos exportados pelo País, os preços das commodities (matérias-primas com cotação internacional) tendem a cair, o que é ruim para a atividade econômica doméstica. Pelo lado positivo, a queda nas cotações desses produtos alivia as pressões inflacionárias também no mercado doméstico.
O problema, segundo Matos, é que a inflação no Brasil já está generalizada. Mesmo com o aumento de juros por parte do BC, a inflação de serviços está em 9% no acumulado em 12 meses, lembrou a economista. A inflação elevada “só estará domada” quando os preços de serviços “estiverem domados”. E os preços dos serviços tendem a acompanhar de perto a demanda das famílias, sensível à dinâmica de emprego e renda. Até a recuperação do mercado de trabalho, com geração de empregos nas atividades de serviços que mais dependem do contato social, que voltaram ao padrão normal de funcionamento após a pandemia ficar para trás, poderá colocar mais lenha na fogueira da inflação.
“A nossa visão é que ainda não há refresco. Aceleramos o crescimento, mas geramos efeitos inflacionários”, afirmou Matos. Nesse cenário, o Ibre projeta uma retração de 0,4% na economia em 2023. “Temos que desacelerar, porque tem uma inflação a ser combatida, mas a política fiscal continua incentivando o consumo”, completou a economista.
O incentivo ao consumo por parte da política fiscal vem com a elevação de gastos do governo para transferir renda para as famílias, com destaque para a elevação do pagamento mensal do Auxílio Brasil, programa que sucedeu o Bolsa Família, de R$ 400 por mês para R$ 600 por mês. Segundo Senna, por causa das medidas do governo, o BC fica sozinho no trabalho de segurar a inflação, esfriando a economia com os juros mais altos.
A dinâmica dos gastos públicos e a perspectiva de aumento do desequilíbrio das contas do governo são mais um obstáculo para o crescimento econômico em 2023, ressaltou Senna. No curto prazo, a próxima administração federal precisará de uma “licença para gastar” acima das regras fiscais, num montante em torno de 1% do Produto Interno Bruto (PIB), calculou o pesquisador da FGV. “Ao mesmo tempo, será preciso definir claramente as regras fiscais para frente. Tenho muito medo disso”, afirmou Senna.
O medo reside no fato de que, historicamente, políticos preferem o caminho mais fácil das licenças para gastar, no lugar da definição de regras críveis. O risco será o próximo governo deixar de lado a definição de novas regras fiscais que sinalizem para um equilíbrio das contas. Por isso, Senna não vê espaço para queda dos juros em 2023.
Para o pesquisador, a crise é pior ainda, com contornos institucionais. “Não foram produzidos abalos apenas na questão fiscal, mas na institucional também. Não sei como resolver, mas sinais de respeito ao quadro institucional [pelo próximo governo federal] seriam indispensáveis”, afirmou Senna, citando pelo menos três abalos importantes.
Um foi a “desmoralização” das propostas de emenda à Constituição (PEC), já que governo e Congresso Nacional lançaram mão do instrumento para mexer em regras fiscais. Para piorar, as mudanças foram feitas para atender objetivos “de natureza circunstancial” e, no caso mais recente, eleitoral. Um segundo abalo foi a lei federal que baixou alíquotas do ICMS, tributo estadual, sobre combustíveis e eletricidade, afetando o planejamento orçamentário dos Estados. O terceiro abalo foi o uso indiscriminado das emendas de relator no Orçamento da União, no caso do “orçamento secreto”, revelado pelo Estadão.