SÃO PAULO e BRASÍLIA - As novas gestões municipais, que serão eleitas em outubro deste ano, vão receber as contas públicas numa situação pior do que a que foi encontrada em 2021, quando os atuais mandatos tiveram início. O panorama fiscal das cidades brasileiras é bastante diverso, mas o número consolidado das prefeituras deixa claro que o sinal de alerta está aceso para os novos prefeitos e aqueles que buscam a reeleição.
Em fevereiro, último dado disponível, os municípios apresentaram déficit primário (saldo negativo entre receitas e despesas, sem considerar os juros das dívidas) de R$ 14,7 bilhões no acumulado em 12 meses, de acordo com informações do Banco Central. Em janeiro de 2021, o cenário era o oposto: as contas municipais estavam levemente no azul, com superávit (saldo positivo) de cerca de R$ 900 milhões.
“As contas (dos municípios) se deterioraram. É claro que tem um aumento da concentração de gastos (neste ano), principalmente antes das restrições eleitorais”, diz Ítalo Franca, economista do banco do Santander. “Mas, por enquanto, o sinal está mais amarelo para os municípios do que para os Estados.”
A piora das contas municipais impressiona e ganhou ritmo desde meados do ano passado. Em fevereiro de 2023, os prefeitos acumulavam superávit de R$ 28,4 bilhões. Já em agosto de 2022, esse resultado positivo chegou a somar R$ 45,7 bilhões, o maior valor desde, pelo menos, dezembro de 2002.
“Os próximos prefeitos vão receber os municípios numa situação que, em geral, está pior do que a que os últimos prefeitos receberam”, afirma João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências.
O cenário é ratificado pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), entidade que representa os interesses municipalistas em Brasília e que vem pressionando por novas medidas de auxílio. Levantamento realizado pelos técnicos da CNM aponta que praticamente metade das cidades do País está com as contas no vermelho, uma piora em relação a 2022, quando um terço dos municípios estava nesse situação.
“Os novos prefeitos vão receber uma herança quase que maldita. Como eles vão fazer a gestão deles se já estão recebendo um município totalmente desalinhado?”, questiona Paulo Ziulkoski, presidente da CNM. “E até agora não se teve a grandeza, a União principalmente, de se discutir e reconhecer a crise que nós estamos vivendo”, afirma.
A CNM trava uma batalha com a equipe econômica do governo Lula em torno da desoneração da folha dos municípios - a qual já chegou ao Judiciário. Na última quinta-feira, o governo conseguiu uma primeira vitória no Supremo Tribunal Federal (STF), com a decisão do ministro Cristiano Zanin de suspender trechos da lei que concedeu o benefícios aos prefeitos. O Senado Federal recorreu da decisão e o ministro Luiz Fux pediu vista (mais tempo para análise) e interrompeu o julgamento.
Mudança de cenário
A conjuntura favorável, que permitiu os bons números fiscais aos prefeitos nos últimos anos, simplesmente se esgotou. E são vários os motivos, tanto do lado da despesa como da receita, que explicam essa mudança.
Os municípios foram afetados, por exemplo, pela perda de arrecadação com o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, governo e Congresso limitaram a cobrança do ICMS sobre bens e serviços considerados essenciais, como combustíveis, telecomunicações e energia, numa tentativa de segurar a inflação às vésperas da eleição presidencial de 2022.
O ICMS é o principal tributo arrecadatório dos Estados, mas uma parte do que é obtido com o imposto vai para os municípios. Em 2023, o governo Lula chegou a um acordo para compensar a perda dos Estados e transferir quase R$ 27 bilhões, montante que será parcelado em quatro anos.
“De 2022 para cá, as coisas mudaram bastante, especialmente por conta da alteração da base de cálculo do ICMS”, afirma Leme, da Tendências - a consultoria passou a realizar um monitoramento constante da saúde fiscal dos municípios e Estados.
Até então, durante a pandemia de covid, prefeituras e Estados vinham sendo beneficiados pelas transferências robustas da União. Os especialistas dizem que os valores repassados foram muito superiores ao que foi gasto na crise sanitária - o que deu uma folga orçamentária a prefeitos e governadores. As receitas também foram impulsionadas pelo aumento dos preços das commodities e pela surpresa com o ritmo de crescimento da atividade com a reabertura da economia.
Ao mesmo tempo, os entes da federação tiveram de manter os salários dos servidores públicos sem reajuste em 2020 e 2021 como contrapartida para receber as transferências bilionárias da União. Na prática, portanto, as receitas subiram e as despesas ficaram estagnadas, turbinando os caixas dos municípios.
Marcos Mendes, pesquisador do Insper
Com o fim dessa trava, voltou a se repetir um cenário já conhecido: Estados e municípios contrataram despesas obrigatórias com base em receitas conjunturais. Além dos reajustes salariais aos servidores, que pressionaram pela recomposição das perdas inflacionárias e por contratações, houve novas pressões vindas de Brasília. Dentre elas, a política de reajuste real do salario mínimo e a imposição de pisos para a remuneração de determinadas categorias, como é o caso da enfermagem.
Dados da CNM apontam que os gastos com pessoal e encargos sociais cresceram 13,2% em 2023 na comparação com 2022, o que representa uma alta de R$ 47,6 bilhões em valores nominais, ou seja, sem correção pela inflação.
Também contribuiu para a expansão fiscal no período o aumento de 25,3% do investimento público, um incremento de 15,5 bilhões. O movimento foi puxado pela retomada de obras públicas e aquisição de maquinário nas proximidades das eleições municipais.
Já as receitas tiveram um crescimento bem mais modesto no período: de 6,8%, o equivalente a uma arrecadação adicional de R$ 57,4 bilhões. Ou seja quase todo o dinheiro extra que entrou nos cofres em 2023 foi consumido pelo aumento das despesas com pessoal.
João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências
Empréstimos com garantia da União disparam
Uma preocupação adicional é de que a piora dos municípios acabe respingando na situação fiscal da União. Isso porque as operações de crédito realizadas pelos prefeitos, com garantias internas do Tesouro Nacional, mais do que dobraram de tamanho nos últimos anos.
O saldo devedor passou de R$ 6,9 bilhões, em 2020, para R$ 14,4 bilhões em 2023, segundo dados compilados pela equipe econômica no anexo de riscos fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2025.
Nesse momento de piora do resultado primário dos municípios, o risco desses empréstimos é justamente o governo federal ter de arcar com a dívida no caso de inadimplência - algo que vem se tornando frequente.
Em 2022, a União honrou R$ 9,8 bilhões em dívidas inadimplidas de Estados e municípios e, em 2023, esse valor foi de R$ 12,3 bilhões. Até fevereiro de 2024, o governo federal já havia sido instado a custear R$ 1,6 bilhão em inadimplências estaduais e municipais.
Gabriel Leal de Barros, sócio da Ryo Asset e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI)
Para a possibilidade de tomar empréstimo, o Tesouro classifica os entes com notas que podem variar de A a D. São levados em conta três critérios: endividamento, índice de liquidez e poupança corrente - e apenas os que alcançam notas A e B, nesse conjunto de fatores, têm acesso à garantia federal.
A ampliação dos empréstimos com aval da União ocorre em meio à ampliação dos limites de concessão fixados pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), colegiado formado pelos ministérios da Fazenda e Planejamento e pelo Banco Central. Essas flexibilizações vêm aumentando o espaço que Estados e municípios têm para realizar esse tipo de operação, seja com ou sem garantia do governo federal.
“Acho que (os prefeitos) não deveriam fazer esses empréstimos, mas eles precisam para realizar investimentos. São os municípios que cuidam do cotidiano do cidadão”, afirma Ziulkoski.
“A cidade tem, por exemplo, uma sala de vacinação, ai a ministra vai lá e diz que vai iniciar a campanha. Ela discursa e vai embora. Mas nos outros dias, sábado e domingo, quem está lá vacinando? É uma agulha sozinha? Ou tem de ter alguém recebendo hora extra, com carro e motorista à disposição?”, questiona.
Procurado pela reportagem, o Tesouro Nacional afirmou que o resultado primário dos municípios não deve ser olhado de forma isolada e que o endividamento desses entes “é menor do que em 2020 e o saldo de caixa acumulado, maior.”
De acordo com o órgão, em 2020, o saldo de dívida líquida interna e externa das cidades, sobre o PIB, era de 4,08%. Em 2023, diz o Tesouro, esse indicador caiu para 1,99%. “Em termos de saldo de caixa sobre o PIB, enquanto em 2020 o indicador era de apenas 0,67%, em 2023 subiu para 2,13%”, afirma a nota.
“Isso significa dizer que os municípios têm menor endividamento e maior saldo de caixa, evidenciando maior robustez fiscal e não menos”, alega o Tesouro. O órgão diz, ainda, que não há discricionaridade na concessão desses avais e que “são cumpridos os requisitos para a realização de tais operações”.
Não raro, essas pendências financeiras entre União e os entes da federação acabam sendo judicializados, com um histórico de decisões que favorecem Estados e municípios. Atualmente, por exemplo, o governo federal está impedido de executar as contragarantias de diversos Estados que obtiveram liminares no STF.
“Quando um prefeito ou governo sabe que, em última instância, vai recorrer ao Supremo, e o STF vai dar ganho de causa, ele tende a ser menos responsável em termos fiscais. Ele pode se endividar e, na hora que não conseguir pagar essa dívida, pode empurrá-la para a União”, avalia Mendes, do Insper.