‘Bispa do cochilo’ propõe sonecas e menos pressão em empresas; ‘Deus não nos fez só para trabalhar’


Conheça a teóloga americana Tricia Hersey, fundadora do Ministério do Cochilo; seu livro “Descansar é Resistir - Um Manifesto” acaba de ser lançado no Brasil

Por Jayanne Rodrigues
Atualização:
Foto: Charlie Watts/Divulgação
Entrevista comTricia HerseyFundadora do "The Nap Ministry", o Ministério do Cochilo

Há mais de 10 anos, a teóloga e ativista americana Tricia Hersey, 50, percebeu que estava exausta. A frenética rotina de estudo e trabalho começava antes de o sol nascer e limitava o sono a não mais que quatro horas por noite. O primeiro antídoto veio na forma de cochilos de 15 minutos ao longo do dia. Foi o pontapé inicial para o desenvolvimento de práticas que culminaram na criação do Ministério do Cochilo, manifesto que rejeita a cultura da produtividade e promove espaços temporários de descanso ao redor do mundo.

Agora, a Bispa do Cochilo, como é conhecida, acaba de ter seu best-seller do The New York Times, “Descansar é Resistir - Um Manifesto”, lançado e traduzido no Brasil.

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Em entrevista ao Estadão, a ativista destaca que o movimento vai muito além de tirar cochilos. Ao longo da obra, Tricia argumenta que o descanso não é um privilégio, nem deve ser encarado como uma forma de aumentar a produtividade.

Deus não me concebeu para ser uma trabalhadora. Eu mereço ter lazer, prazer, alegria e descanso.

Tricia Hersey, fundadora do Ministério do Cochilo

Questionada por pessoas que dizem “adoraria descansar, mas tenho contas a pagar”, ela explica que o descanso não se resume a dormir mais.

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O descanso é um direito humano divino. Não é algo extra ou que fazemos depois de trabalhar 80 horas por semana, ou um pequeno mimo ou luxo.

Tricia Hersey

Para Tricia, várias empresas incentivam um suposto descanso no próprio espaço de trabalho, mas o verdadeiro objetivo seria gerar mais produtividade.

Fazem (salas de soneca) para que você nunca vá embora. Querem que você descanse, mas logo depois volte para a sua mesa. Talvez ganhe uma festa com pizza ou uma aula de ioga.

Tricia Hersey

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Desde 2015, a ativista realiza sessões de cochilos coletivos em instalações temporárias de descanso (espaços comunitários, universidades, conferências, escritórios e igrejas).

Dezenas de pessoas são convidadas a dormir em tapetes de ioga ou colchões ao lado de desconhecidos. A soneca, que costuma durar cerca de 30 minutos, é embalada por músicas, meditações, leituras e silêncio.

Embora os cochilos coletivos tenham um grande apelo, principalmente nas redes sociais - a página acumula mais de meio milhão de seguidores no Instagram -, a fundadora do movimento ressalta que a prática do descanso vai muito além disso.

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Para ela, a experiência é apenas o ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre o descanso.

O processo é gradual, pondera a ativista, começa com rituais de cochilo e hábitos simples como deletar aplicativos do celular para encontrar mais tempo para si.

Confira trechos da entrevista:

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No seu livro “Descansar é Resistir”, você cita que antes de decidir experimentar o que o descanso poderia fazer, se sentia esgotada de trabalhar todos os dias. Como era a sua rotina naquela época?

Quando comecei a pensar no Ministério do Cochilo, estava privada de sono. Cursava um programa de graduação em teologia (Candler School of Theology da Emory University) em período integral.

Não havia nada online, tinha que estar presente todos os dias. Algumas aulas começavam às 8h da manhã e terminavam, às vezes, às 18h.

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Tinha um cronograma cheio, com cerca de seis disciplinas. Além de atuar meio período na biblioteca, também trabalhava como capelã (cargo que presta assistência e realiza cultos em comunidades religiosas, conventos e colégios) em uma igreja.

Então, chegava em casa, pegava meu filho na escola e, dependendo das demandas, que eram pesadas, ficava acordada até 2h ou 3h da manhã.

No encerramento dos semestres, ficava na biblioteca da universidade até 3h ou 4h da manhã para estudar e escrever artigos. Era um programa intenso, me levou a uma exaustão profunda.

Mesmo antes de ir para o seminário, já estava exausta, pois era mãe, mulher negra nos EUA, vivia na pobreza e trabalhava em dois empregos de meio período para pagar as contas: em uma padaria e em um programa de ensino para crianças.

Há uma parte no livro onde explico meu cronograma para um dia: acordava às 5h da manhã e era trabalho o dia todo, um ritmo frenético. Hoje, olho para aquela lista e não acredito que mantive aquele ritmo por quatro anos.

Tricia Hersey começou a experimentar práticas de descanso a partir de cochilos de 15 minutos durante o dia. Foto: Charlie Watts/The Nap Ministry/Reprodução
Agora que estou nesse modo de descanso e de recuperação do meu corpo, tudo mudou. Minha saúde melhorou. Naquela época, tinha enxaquecas terríveis. A privação de sono afeta o corpo e espiritualmente.

Tricia Hersey

Quando comecei a descansar e desacelerar, tudo fez mais sentido: nos estudos, como mãe e as enxaquecas pararam. Passei a fazer conexões profundas com meus sonhos, o que me permitiu relacionar o que estava aprendendo com minhas próprias ideias e com a espiritualidade dos meus ancestrais.

O descanso começou a tomar forma à medida que eu desacelerava. Cheguei a um ponto em que não conseguia mais manter aquele ritmo.

Houve um ponto de virada específico?

Sim. No primeiro semestre, percebi que o ritmo era demais: a escola, os empregos, meu filho... Um dia, sentei nas escadas do prédio da universidade e liguei chorando para meu marido, dizendo que não sabia se conseguiria terminar. Ele disse: “Mas você acabou de começar”.

Foi então que, estudando sobre meus ancestrais e a escravidão, comecei a perceber que parar poderia ser uma forma de resistência. Isso combinou com o que estava estudando sobre trauma cultural e o corpo.

Estava abusando do meu próprio corpo, percebi que era tóxico. Comecei a experimentar como dormir um pouco mais ou tirar um cochilo entre as aulas. Aos poucos, comecei a recuperar meu tempo.

Veja abaixo imagens de uma das experiências de cochilo coletivo na página oficial do movimento:

Você escreveu que muitas pessoas a abordam e dizem: “Adoraria descansar, mas tenho contas a pagar. Como é possível descansar e trabalhar para poder me sustentar?” O que diz a essas pessoas que vivem no que chama de “cultura de produtividade excessiva”?

Digo no meu livro que o descanso é uma prática meticulosa e amorosa ao longo da vida. As pessoas querem apressar sua própria cura, mas não funciona assim. Não há uma solução pronta. É um processo contínuo de descolonização.

O primeiro passo é expandir a mente e não pensar, por exemplo: ‘ou eu trabalho até me esgotar ou vou ficar sem teto’. Existe um espaço infinito entre essas opções. Quando falo sobre descanso, as pessoas acham que significa deitar e dormir por horas, mas não é isso.

Pode ser desacelerar, estabelecer limites, tirar um dia de folga das redes sociais, tomar um banho mais demorado. Há infinitas formas de nos reconectarmos com nossos corpos em tempo real.

Uma coisa prática que você pode fazer no dia a dia é criar limites em relação ao uso do celular e redes sociais. Isso está nos levando a um esgotamento mental profundo. Criar uma programação para evitar o excesso de tela e começar a ver o seu tempo como algo seu.

Como você salienta ao longo da obra, muitas pessoas estão exaustas, esgotadas e apressadas, especialmente a população negra. Como explicar à família que você está estabelecendo novos limites?

Falo muito sobre isso no meu trabalho. Recentemente, conversei com uma mulher cuja mãe tem 80 anos e se sente preguiçosa se não estiver fazendo algo todos os minutos do seu dia.

A filha estava tirando uma soneca e a mãe a chamou de preguiçosa. Essa mulher trabalha em tempo integral, está criando filhos.

A geração da minha mãe, minha vó e minhas tias foi criada em um ambiente tóxico. Penso na minha avó, que foi meeira (agricultora que trabalha em terras alugadas), logo após a escravidão. Eles não tinham espaço para simplesmente ser o que queriam.

Por isso, os honro muito por terem conseguido sobreviver e prosperar. Mas também entendo que vai levar muito tempo para eles entenderem esse novo conceito. É algo novo, estamos traçando um novo caminho, uma nova maneira de ver o mundo.

Sou muito paciente com eles e continuo reafirmando que vai ficar tudo bem, que trabalhar não é a única coisa para o que vim fazer nesta terra. Deus não me concebeu para ser uma trabalhadora. Eu mereço ter lazer, prazer, alegria e descanso.

Muitos idosos negros realmente gostam do meu livro. Meu amigo me enviou uma foto da avó, de 101 anos, lendo meu livro. Ele disse que ela comentou: “Gostaria de ter tido essa informação quando era mais jovem”.

Quando falo sobre meu pai no livro, menciono como acredito que o excesso de trabalho o matou. Ele trabalhava tanto e se dedicava tanto aos outros que não cuidou da própria saúde. A saúde dele piorou muito porque ele não reservava tempo para si mesmo.

Tricia Hersey

Gosto quando pessoas dessa faixa etária questionam o que está acontecendo, porque entendo de onde vêm. Sei o que tiveram que fazer para sobreviver, tento criar um espaço para que elas me ajudem a construir esse novo mundo.

Veja abaixo outra intervenção de cochilo coletivo guiada por Tricia em Nova York:

No livro, você defende que o descanso não deve ser usado para aumentar a produtividade. Pode falar mais sobre isso?

A ideia de descanso, pelo menos aqui nos EUA, muitas vezes vem de uma identidade corporativa. Muitas grandes empresas, como Google e Twitter, promovem a ideia de que está tudo bem descansar, até mesmo ter salas de soneca.

Já estive em alguns desses lugares, como o campus do Google em Chicago. Eles têm uma grande sala de descanso, e quando vi pensei: “Uau, isso é interessante”.

Mas a razão pela qual fazem isso é para que você nunca vá embora. Querem que você descanse, mas logo depois volte para a sua mesa. Então, sempre há essa pressão pela produtividade.

A mensagem sobre descanso aqui nos EUA vem da identidade corporativa: descanse para que possa fazer mais. Depois de trabalhar até se esgotar, talvez tenha uma festa com pizza ou uma aula de ioga, mas depois volte ao trabalho.

Tricia Hersey

É sempre a ideia de que estamos descansando para nos reabastecer e fazer mais pelo sistema, o que é o oposto da mensagem que estou passando.

O descanso é um direito humano divino. Não é algo extra ou que fazemos depois de trabalhar 80 horas por semana, um pequeno mimo ou luxo. Para mim, o descanso é a base do nosso mundo e será o que nos levará para a próxima dimensão.

Tricia Hersey

As pessoas não entendem que o descanso não é fútil ou perda de tempo. Muita coisa acontece quando nos conectamos com o espaço do sonho, quando descansamos, quando dormimos profundamente.

Isso faz muito bem ao corpo, ao cérebro e aos órgãos. Espiritualmente também nos conecta a um senso mais profundo de quem somos como seres humanos.

O que é mais difícil de propagar no Ministério do Cochilo?

O trabalho é fazer as pessoas reimaginarem o descanso, que não é um privilégio ou um luxo. Isso tem sido a parte mais difícil do meu trabalho: fazer as pessoas reprogramarem suas mentes para entender que o descanso não é um privilégio.

Nossos corpos nos pertencem, não pertencem ao sistema. Este é o nosso bem mais precioso: nossos corpos são nosso templo.

Sem descanso, sem sono, estamos falando de vida ou morte. A privação do sono é uma questão de saúde pública porque está ligada a tantas doenças, como câncer, hipertensão, diabetes, e tudo isso está relacionado ao que estamos fazendo ao nosso corpo pela falta de descanso.

Tricia Hersey durante uma intervenção em Atlanta (EUA), em maio de 2017. Foto: Brian Harrison/The Nap Ministry/Reprodução
Quero que as pessoas entendam que o descanso não é fútil ou algo que fazemos para produzir mais. Ouço pessoas dizendo: “Vou trabalhar muito no fim de semana e depois me darei uma soneca de presente”. Não, você deveria estar descansando, dormindo e desacelerando como parte da sua vida.

Tricia Hersey

O descanso é uma prática de amor, é uma prática de justiça. Estamos lutando contra sistemas que nos disseram a vida inteira que não somos suficientes, a menos que façamos mais.

Eles associam nossa produtividade ao nosso valor como humanos, mas estou dizendo que o valor da nossa humanidade é dado no nascimento. É uma total inversão da narrativa que nos foi contada.

Gosto muito das Ciências do Sono. Há um livro chamado “Por que Nós Dormimos”, do neurocientista Matthew Walker, que fala sobre o que acontece quando não dormimos por seis horas ou mais.

Eles descobriram que o corpo começa a se deteriorar. O risco de câncer, diabetes e de doenças cardíacas aumenta, a imunidade diminui e a inflamação no corpo sobe. Tudo isso acontece quando não descansamos.

É radical o fato de que o trabalho que estou fazendo seja visto como radical. Não deveria ser radical afirmar que você não é uma máquina, que é um ser humano que merece cuidado, que merece um momento e que merece descanso.

Tricia Hersey

Mesmo depois de nove anos de trabalho, ainda fico surpresa que essa ideia seja tão radical em uma cultura capitalista, em um mundo que se alimenta de capitalismo, produtividade e injustiça. Estou muito grata que esse trabalho tenha se tornado global.

Para você, como seria um mundo em que as pessoas estão descansadas?

Acho que um mundo descansado é um mundo curado. O descanso traz cura. A cura acontecerá quando as pessoas se conectarem com seus corpos, essa grande fonte de inspiração, quando as pessoas puderem cuidar profundamente umas das outras.

Se as pessoas quiserem entender a teoria por trás disso, é simplesmente uma mensagem de cuidado profundo pela humanidade, para que possamos nos ver de forma diferente da que os sistemas nos ensinaram.

Um mundo descansado é um mundo curado. É um mundo conectado, onde todos se sentem seguros. Não importa como seja o corpo, qual sua raça ou idade, todos se sentem apoiados e cuidados.

Um mundo curado seria uma ruptura, um rompimento com um mundo que não quer nos ver bem.

Saiba mais sobre o livro

Nome: “Descansar é Resistir - Um Manifesto”

Autora: Tricia Hersey

Editora: Fontanar

Número de páginas: 190

Há mais de 10 anos, a teóloga e ativista americana Tricia Hersey, 50, percebeu que estava exausta. A frenética rotina de estudo e trabalho começava antes de o sol nascer e limitava o sono a não mais que quatro horas por noite. O primeiro antídoto veio na forma de cochilos de 15 minutos ao longo do dia. Foi o pontapé inicial para o desenvolvimento de práticas que culminaram na criação do Ministério do Cochilo, manifesto que rejeita a cultura da produtividade e promove espaços temporários de descanso ao redor do mundo.

Agora, a Bispa do Cochilo, como é conhecida, acaba de ter seu best-seller do The New York Times, “Descansar é Resistir - Um Manifesto”, lançado e traduzido no Brasil.

Em entrevista ao Estadão, a ativista destaca que o movimento vai muito além de tirar cochilos. Ao longo da obra, Tricia argumenta que o descanso não é um privilégio, nem deve ser encarado como uma forma de aumentar a produtividade.

Deus não me concebeu para ser uma trabalhadora. Eu mereço ter lazer, prazer, alegria e descanso.

Tricia Hersey, fundadora do Ministério do Cochilo

Questionada por pessoas que dizem “adoraria descansar, mas tenho contas a pagar”, ela explica que o descanso não se resume a dormir mais.

O descanso é um direito humano divino. Não é algo extra ou que fazemos depois de trabalhar 80 horas por semana, ou um pequeno mimo ou luxo.

Tricia Hersey

Para Tricia, várias empresas incentivam um suposto descanso no próprio espaço de trabalho, mas o verdadeiro objetivo seria gerar mais produtividade.

Fazem (salas de soneca) para que você nunca vá embora. Querem que você descanse, mas logo depois volte para a sua mesa. Talvez ganhe uma festa com pizza ou uma aula de ioga.

Tricia Hersey

Desde 2015, a ativista realiza sessões de cochilos coletivos em instalações temporárias de descanso (espaços comunitários, universidades, conferências, escritórios e igrejas).

Dezenas de pessoas são convidadas a dormir em tapetes de ioga ou colchões ao lado de desconhecidos. A soneca, que costuma durar cerca de 30 minutos, é embalada por músicas, meditações, leituras e silêncio.

Embora os cochilos coletivos tenham um grande apelo, principalmente nas redes sociais - a página acumula mais de meio milhão de seguidores no Instagram -, a fundadora do movimento ressalta que a prática do descanso vai muito além disso.

Para ela, a experiência é apenas o ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre o descanso.

O processo é gradual, pondera a ativista, começa com rituais de cochilo e hábitos simples como deletar aplicativos do celular para encontrar mais tempo para si.

Confira trechos da entrevista:

No seu livro “Descansar é Resistir”, você cita que antes de decidir experimentar o que o descanso poderia fazer, se sentia esgotada de trabalhar todos os dias. Como era a sua rotina naquela época?

Quando comecei a pensar no Ministério do Cochilo, estava privada de sono. Cursava um programa de graduação em teologia (Candler School of Theology da Emory University) em período integral.

Não havia nada online, tinha que estar presente todos os dias. Algumas aulas começavam às 8h da manhã e terminavam, às vezes, às 18h.

Tinha um cronograma cheio, com cerca de seis disciplinas. Além de atuar meio período na biblioteca, também trabalhava como capelã (cargo que presta assistência e realiza cultos em comunidades religiosas, conventos e colégios) em uma igreja.

Então, chegava em casa, pegava meu filho na escola e, dependendo das demandas, que eram pesadas, ficava acordada até 2h ou 3h da manhã.

No encerramento dos semestres, ficava na biblioteca da universidade até 3h ou 4h da manhã para estudar e escrever artigos. Era um programa intenso, me levou a uma exaustão profunda.

Mesmo antes de ir para o seminário, já estava exausta, pois era mãe, mulher negra nos EUA, vivia na pobreza e trabalhava em dois empregos de meio período para pagar as contas: em uma padaria e em um programa de ensino para crianças.

Há uma parte no livro onde explico meu cronograma para um dia: acordava às 5h da manhã e era trabalho o dia todo, um ritmo frenético. Hoje, olho para aquela lista e não acredito que mantive aquele ritmo por quatro anos.

Tricia Hersey começou a experimentar práticas de descanso a partir de cochilos de 15 minutos durante o dia. Foto: Charlie Watts/The Nap Ministry/Reprodução
Agora que estou nesse modo de descanso e de recuperação do meu corpo, tudo mudou. Minha saúde melhorou. Naquela época, tinha enxaquecas terríveis. A privação de sono afeta o corpo e espiritualmente.

Tricia Hersey

Quando comecei a descansar e desacelerar, tudo fez mais sentido: nos estudos, como mãe e as enxaquecas pararam. Passei a fazer conexões profundas com meus sonhos, o que me permitiu relacionar o que estava aprendendo com minhas próprias ideias e com a espiritualidade dos meus ancestrais.

O descanso começou a tomar forma à medida que eu desacelerava. Cheguei a um ponto em que não conseguia mais manter aquele ritmo.

Houve um ponto de virada específico?

Sim. No primeiro semestre, percebi que o ritmo era demais: a escola, os empregos, meu filho... Um dia, sentei nas escadas do prédio da universidade e liguei chorando para meu marido, dizendo que não sabia se conseguiria terminar. Ele disse: “Mas você acabou de começar”.

Foi então que, estudando sobre meus ancestrais e a escravidão, comecei a perceber que parar poderia ser uma forma de resistência. Isso combinou com o que estava estudando sobre trauma cultural e o corpo.

Estava abusando do meu próprio corpo, percebi que era tóxico. Comecei a experimentar como dormir um pouco mais ou tirar um cochilo entre as aulas. Aos poucos, comecei a recuperar meu tempo.

Veja abaixo imagens de uma das experiências de cochilo coletivo na página oficial do movimento:

Você escreveu que muitas pessoas a abordam e dizem: “Adoraria descansar, mas tenho contas a pagar. Como é possível descansar e trabalhar para poder me sustentar?” O que diz a essas pessoas que vivem no que chama de “cultura de produtividade excessiva”?

Digo no meu livro que o descanso é uma prática meticulosa e amorosa ao longo da vida. As pessoas querem apressar sua própria cura, mas não funciona assim. Não há uma solução pronta. É um processo contínuo de descolonização.

O primeiro passo é expandir a mente e não pensar, por exemplo: ‘ou eu trabalho até me esgotar ou vou ficar sem teto’. Existe um espaço infinito entre essas opções. Quando falo sobre descanso, as pessoas acham que significa deitar e dormir por horas, mas não é isso.

Pode ser desacelerar, estabelecer limites, tirar um dia de folga das redes sociais, tomar um banho mais demorado. Há infinitas formas de nos reconectarmos com nossos corpos em tempo real.

Uma coisa prática que você pode fazer no dia a dia é criar limites em relação ao uso do celular e redes sociais. Isso está nos levando a um esgotamento mental profundo. Criar uma programação para evitar o excesso de tela e começar a ver o seu tempo como algo seu.

Como você salienta ao longo da obra, muitas pessoas estão exaustas, esgotadas e apressadas, especialmente a população negra. Como explicar à família que você está estabelecendo novos limites?

Falo muito sobre isso no meu trabalho. Recentemente, conversei com uma mulher cuja mãe tem 80 anos e se sente preguiçosa se não estiver fazendo algo todos os minutos do seu dia.

A filha estava tirando uma soneca e a mãe a chamou de preguiçosa. Essa mulher trabalha em tempo integral, está criando filhos.

A geração da minha mãe, minha vó e minhas tias foi criada em um ambiente tóxico. Penso na minha avó, que foi meeira (agricultora que trabalha em terras alugadas), logo após a escravidão. Eles não tinham espaço para simplesmente ser o que queriam.

Por isso, os honro muito por terem conseguido sobreviver e prosperar. Mas também entendo que vai levar muito tempo para eles entenderem esse novo conceito. É algo novo, estamos traçando um novo caminho, uma nova maneira de ver o mundo.

Sou muito paciente com eles e continuo reafirmando que vai ficar tudo bem, que trabalhar não é a única coisa para o que vim fazer nesta terra. Deus não me concebeu para ser uma trabalhadora. Eu mereço ter lazer, prazer, alegria e descanso.

Muitos idosos negros realmente gostam do meu livro. Meu amigo me enviou uma foto da avó, de 101 anos, lendo meu livro. Ele disse que ela comentou: “Gostaria de ter tido essa informação quando era mais jovem”.

Quando falo sobre meu pai no livro, menciono como acredito que o excesso de trabalho o matou. Ele trabalhava tanto e se dedicava tanto aos outros que não cuidou da própria saúde. A saúde dele piorou muito porque ele não reservava tempo para si mesmo.

Tricia Hersey

Gosto quando pessoas dessa faixa etária questionam o que está acontecendo, porque entendo de onde vêm. Sei o que tiveram que fazer para sobreviver, tento criar um espaço para que elas me ajudem a construir esse novo mundo.

Veja abaixo outra intervenção de cochilo coletivo guiada por Tricia em Nova York:

No livro, você defende que o descanso não deve ser usado para aumentar a produtividade. Pode falar mais sobre isso?

A ideia de descanso, pelo menos aqui nos EUA, muitas vezes vem de uma identidade corporativa. Muitas grandes empresas, como Google e Twitter, promovem a ideia de que está tudo bem descansar, até mesmo ter salas de soneca.

Já estive em alguns desses lugares, como o campus do Google em Chicago. Eles têm uma grande sala de descanso, e quando vi pensei: “Uau, isso é interessante”.

Mas a razão pela qual fazem isso é para que você nunca vá embora. Querem que você descanse, mas logo depois volte para a sua mesa. Então, sempre há essa pressão pela produtividade.

A mensagem sobre descanso aqui nos EUA vem da identidade corporativa: descanse para que possa fazer mais. Depois de trabalhar até se esgotar, talvez tenha uma festa com pizza ou uma aula de ioga, mas depois volte ao trabalho.

Tricia Hersey

É sempre a ideia de que estamos descansando para nos reabastecer e fazer mais pelo sistema, o que é o oposto da mensagem que estou passando.

O descanso é um direito humano divino. Não é algo extra ou que fazemos depois de trabalhar 80 horas por semana, um pequeno mimo ou luxo. Para mim, o descanso é a base do nosso mundo e será o que nos levará para a próxima dimensão.

Tricia Hersey

As pessoas não entendem que o descanso não é fútil ou perda de tempo. Muita coisa acontece quando nos conectamos com o espaço do sonho, quando descansamos, quando dormimos profundamente.

Isso faz muito bem ao corpo, ao cérebro e aos órgãos. Espiritualmente também nos conecta a um senso mais profundo de quem somos como seres humanos.

O que é mais difícil de propagar no Ministério do Cochilo?

O trabalho é fazer as pessoas reimaginarem o descanso, que não é um privilégio ou um luxo. Isso tem sido a parte mais difícil do meu trabalho: fazer as pessoas reprogramarem suas mentes para entender que o descanso não é um privilégio.

Nossos corpos nos pertencem, não pertencem ao sistema. Este é o nosso bem mais precioso: nossos corpos são nosso templo.

Sem descanso, sem sono, estamos falando de vida ou morte. A privação do sono é uma questão de saúde pública porque está ligada a tantas doenças, como câncer, hipertensão, diabetes, e tudo isso está relacionado ao que estamos fazendo ao nosso corpo pela falta de descanso.

Tricia Hersey durante uma intervenção em Atlanta (EUA), em maio de 2017. Foto: Brian Harrison/The Nap Ministry/Reprodução
Quero que as pessoas entendam que o descanso não é fútil ou algo que fazemos para produzir mais. Ouço pessoas dizendo: “Vou trabalhar muito no fim de semana e depois me darei uma soneca de presente”. Não, você deveria estar descansando, dormindo e desacelerando como parte da sua vida.

Tricia Hersey

O descanso é uma prática de amor, é uma prática de justiça. Estamos lutando contra sistemas que nos disseram a vida inteira que não somos suficientes, a menos que façamos mais.

Eles associam nossa produtividade ao nosso valor como humanos, mas estou dizendo que o valor da nossa humanidade é dado no nascimento. É uma total inversão da narrativa que nos foi contada.

Gosto muito das Ciências do Sono. Há um livro chamado “Por que Nós Dormimos”, do neurocientista Matthew Walker, que fala sobre o que acontece quando não dormimos por seis horas ou mais.

Eles descobriram que o corpo começa a se deteriorar. O risco de câncer, diabetes e de doenças cardíacas aumenta, a imunidade diminui e a inflamação no corpo sobe. Tudo isso acontece quando não descansamos.

É radical o fato de que o trabalho que estou fazendo seja visto como radical. Não deveria ser radical afirmar que você não é uma máquina, que é um ser humano que merece cuidado, que merece um momento e que merece descanso.

Tricia Hersey

Mesmo depois de nove anos de trabalho, ainda fico surpresa que essa ideia seja tão radical em uma cultura capitalista, em um mundo que se alimenta de capitalismo, produtividade e injustiça. Estou muito grata que esse trabalho tenha se tornado global.

Para você, como seria um mundo em que as pessoas estão descansadas?

Acho que um mundo descansado é um mundo curado. O descanso traz cura. A cura acontecerá quando as pessoas se conectarem com seus corpos, essa grande fonte de inspiração, quando as pessoas puderem cuidar profundamente umas das outras.

Se as pessoas quiserem entender a teoria por trás disso, é simplesmente uma mensagem de cuidado profundo pela humanidade, para que possamos nos ver de forma diferente da que os sistemas nos ensinaram.

Um mundo descansado é um mundo curado. É um mundo conectado, onde todos se sentem seguros. Não importa como seja o corpo, qual sua raça ou idade, todos se sentem apoiados e cuidados.

Um mundo curado seria uma ruptura, um rompimento com um mundo que não quer nos ver bem.

Saiba mais sobre o livro

Nome: “Descansar é Resistir - Um Manifesto”

Autora: Tricia Hersey

Editora: Fontanar

Número de páginas: 190

Há mais de 10 anos, a teóloga e ativista americana Tricia Hersey, 50, percebeu que estava exausta. A frenética rotina de estudo e trabalho começava antes de o sol nascer e limitava o sono a não mais que quatro horas por noite. O primeiro antídoto veio na forma de cochilos de 15 minutos ao longo do dia. Foi o pontapé inicial para o desenvolvimento de práticas que culminaram na criação do Ministério do Cochilo, manifesto que rejeita a cultura da produtividade e promove espaços temporários de descanso ao redor do mundo.

Agora, a Bispa do Cochilo, como é conhecida, acaba de ter seu best-seller do The New York Times, “Descansar é Resistir - Um Manifesto”, lançado e traduzido no Brasil.

Em entrevista ao Estadão, a ativista destaca que o movimento vai muito além de tirar cochilos. Ao longo da obra, Tricia argumenta que o descanso não é um privilégio, nem deve ser encarado como uma forma de aumentar a produtividade.

Deus não me concebeu para ser uma trabalhadora. Eu mereço ter lazer, prazer, alegria e descanso.

Tricia Hersey, fundadora do Ministério do Cochilo

Questionada por pessoas que dizem “adoraria descansar, mas tenho contas a pagar”, ela explica que o descanso não se resume a dormir mais.

O descanso é um direito humano divino. Não é algo extra ou que fazemos depois de trabalhar 80 horas por semana, ou um pequeno mimo ou luxo.

Tricia Hersey

Para Tricia, várias empresas incentivam um suposto descanso no próprio espaço de trabalho, mas o verdadeiro objetivo seria gerar mais produtividade.

Fazem (salas de soneca) para que você nunca vá embora. Querem que você descanse, mas logo depois volte para a sua mesa. Talvez ganhe uma festa com pizza ou uma aula de ioga.

Tricia Hersey

Desde 2015, a ativista realiza sessões de cochilos coletivos em instalações temporárias de descanso (espaços comunitários, universidades, conferências, escritórios e igrejas).

Dezenas de pessoas são convidadas a dormir em tapetes de ioga ou colchões ao lado de desconhecidos. A soneca, que costuma durar cerca de 30 minutos, é embalada por músicas, meditações, leituras e silêncio.

Embora os cochilos coletivos tenham um grande apelo, principalmente nas redes sociais - a página acumula mais de meio milhão de seguidores no Instagram -, a fundadora do movimento ressalta que a prática do descanso vai muito além disso.

Para ela, a experiência é apenas o ponto de partida para uma reflexão mais profunda sobre o descanso.

O processo é gradual, pondera a ativista, começa com rituais de cochilo e hábitos simples como deletar aplicativos do celular para encontrar mais tempo para si.

Confira trechos da entrevista:

No seu livro “Descansar é Resistir”, você cita que antes de decidir experimentar o que o descanso poderia fazer, se sentia esgotada de trabalhar todos os dias. Como era a sua rotina naquela época?

Quando comecei a pensar no Ministério do Cochilo, estava privada de sono. Cursava um programa de graduação em teologia (Candler School of Theology da Emory University) em período integral.

Não havia nada online, tinha que estar presente todos os dias. Algumas aulas começavam às 8h da manhã e terminavam, às vezes, às 18h.

Tinha um cronograma cheio, com cerca de seis disciplinas. Além de atuar meio período na biblioteca, também trabalhava como capelã (cargo que presta assistência e realiza cultos em comunidades religiosas, conventos e colégios) em uma igreja.

Então, chegava em casa, pegava meu filho na escola e, dependendo das demandas, que eram pesadas, ficava acordada até 2h ou 3h da manhã.

No encerramento dos semestres, ficava na biblioteca da universidade até 3h ou 4h da manhã para estudar e escrever artigos. Era um programa intenso, me levou a uma exaustão profunda.

Mesmo antes de ir para o seminário, já estava exausta, pois era mãe, mulher negra nos EUA, vivia na pobreza e trabalhava em dois empregos de meio período para pagar as contas: em uma padaria e em um programa de ensino para crianças.

Há uma parte no livro onde explico meu cronograma para um dia: acordava às 5h da manhã e era trabalho o dia todo, um ritmo frenético. Hoje, olho para aquela lista e não acredito que mantive aquele ritmo por quatro anos.

Tricia Hersey começou a experimentar práticas de descanso a partir de cochilos de 15 minutos durante o dia. Foto: Charlie Watts/The Nap Ministry/Reprodução
Agora que estou nesse modo de descanso e de recuperação do meu corpo, tudo mudou. Minha saúde melhorou. Naquela época, tinha enxaquecas terríveis. A privação de sono afeta o corpo e espiritualmente.

Tricia Hersey

Quando comecei a descansar e desacelerar, tudo fez mais sentido: nos estudos, como mãe e as enxaquecas pararam. Passei a fazer conexões profundas com meus sonhos, o que me permitiu relacionar o que estava aprendendo com minhas próprias ideias e com a espiritualidade dos meus ancestrais.

O descanso começou a tomar forma à medida que eu desacelerava. Cheguei a um ponto em que não conseguia mais manter aquele ritmo.

Houve um ponto de virada específico?

Sim. No primeiro semestre, percebi que o ritmo era demais: a escola, os empregos, meu filho... Um dia, sentei nas escadas do prédio da universidade e liguei chorando para meu marido, dizendo que não sabia se conseguiria terminar. Ele disse: “Mas você acabou de começar”.

Foi então que, estudando sobre meus ancestrais e a escravidão, comecei a perceber que parar poderia ser uma forma de resistência. Isso combinou com o que estava estudando sobre trauma cultural e o corpo.

Estava abusando do meu próprio corpo, percebi que era tóxico. Comecei a experimentar como dormir um pouco mais ou tirar um cochilo entre as aulas. Aos poucos, comecei a recuperar meu tempo.

Veja abaixo imagens de uma das experiências de cochilo coletivo na página oficial do movimento:

Você escreveu que muitas pessoas a abordam e dizem: “Adoraria descansar, mas tenho contas a pagar. Como é possível descansar e trabalhar para poder me sustentar?” O que diz a essas pessoas que vivem no que chama de “cultura de produtividade excessiva”?

Digo no meu livro que o descanso é uma prática meticulosa e amorosa ao longo da vida. As pessoas querem apressar sua própria cura, mas não funciona assim. Não há uma solução pronta. É um processo contínuo de descolonização.

O primeiro passo é expandir a mente e não pensar, por exemplo: ‘ou eu trabalho até me esgotar ou vou ficar sem teto’. Existe um espaço infinito entre essas opções. Quando falo sobre descanso, as pessoas acham que significa deitar e dormir por horas, mas não é isso.

Pode ser desacelerar, estabelecer limites, tirar um dia de folga das redes sociais, tomar um banho mais demorado. Há infinitas formas de nos reconectarmos com nossos corpos em tempo real.

Uma coisa prática que você pode fazer no dia a dia é criar limites em relação ao uso do celular e redes sociais. Isso está nos levando a um esgotamento mental profundo. Criar uma programação para evitar o excesso de tela e começar a ver o seu tempo como algo seu.

Como você salienta ao longo da obra, muitas pessoas estão exaustas, esgotadas e apressadas, especialmente a população negra. Como explicar à família que você está estabelecendo novos limites?

Falo muito sobre isso no meu trabalho. Recentemente, conversei com uma mulher cuja mãe tem 80 anos e se sente preguiçosa se não estiver fazendo algo todos os minutos do seu dia.

A filha estava tirando uma soneca e a mãe a chamou de preguiçosa. Essa mulher trabalha em tempo integral, está criando filhos.

A geração da minha mãe, minha vó e minhas tias foi criada em um ambiente tóxico. Penso na minha avó, que foi meeira (agricultora que trabalha em terras alugadas), logo após a escravidão. Eles não tinham espaço para simplesmente ser o que queriam.

Por isso, os honro muito por terem conseguido sobreviver e prosperar. Mas também entendo que vai levar muito tempo para eles entenderem esse novo conceito. É algo novo, estamos traçando um novo caminho, uma nova maneira de ver o mundo.

Sou muito paciente com eles e continuo reafirmando que vai ficar tudo bem, que trabalhar não é a única coisa para o que vim fazer nesta terra. Deus não me concebeu para ser uma trabalhadora. Eu mereço ter lazer, prazer, alegria e descanso.

Muitos idosos negros realmente gostam do meu livro. Meu amigo me enviou uma foto da avó, de 101 anos, lendo meu livro. Ele disse que ela comentou: “Gostaria de ter tido essa informação quando era mais jovem”.

Quando falo sobre meu pai no livro, menciono como acredito que o excesso de trabalho o matou. Ele trabalhava tanto e se dedicava tanto aos outros que não cuidou da própria saúde. A saúde dele piorou muito porque ele não reservava tempo para si mesmo.

Tricia Hersey

Gosto quando pessoas dessa faixa etária questionam o que está acontecendo, porque entendo de onde vêm. Sei o que tiveram que fazer para sobreviver, tento criar um espaço para que elas me ajudem a construir esse novo mundo.

Veja abaixo outra intervenção de cochilo coletivo guiada por Tricia em Nova York:

No livro, você defende que o descanso não deve ser usado para aumentar a produtividade. Pode falar mais sobre isso?

A ideia de descanso, pelo menos aqui nos EUA, muitas vezes vem de uma identidade corporativa. Muitas grandes empresas, como Google e Twitter, promovem a ideia de que está tudo bem descansar, até mesmo ter salas de soneca.

Já estive em alguns desses lugares, como o campus do Google em Chicago. Eles têm uma grande sala de descanso, e quando vi pensei: “Uau, isso é interessante”.

Mas a razão pela qual fazem isso é para que você nunca vá embora. Querem que você descanse, mas logo depois volte para a sua mesa. Então, sempre há essa pressão pela produtividade.

A mensagem sobre descanso aqui nos EUA vem da identidade corporativa: descanse para que possa fazer mais. Depois de trabalhar até se esgotar, talvez tenha uma festa com pizza ou uma aula de ioga, mas depois volte ao trabalho.

Tricia Hersey

É sempre a ideia de que estamos descansando para nos reabastecer e fazer mais pelo sistema, o que é o oposto da mensagem que estou passando.

O descanso é um direito humano divino. Não é algo extra ou que fazemos depois de trabalhar 80 horas por semana, um pequeno mimo ou luxo. Para mim, o descanso é a base do nosso mundo e será o que nos levará para a próxima dimensão.

Tricia Hersey

As pessoas não entendem que o descanso não é fútil ou perda de tempo. Muita coisa acontece quando nos conectamos com o espaço do sonho, quando descansamos, quando dormimos profundamente.

Isso faz muito bem ao corpo, ao cérebro e aos órgãos. Espiritualmente também nos conecta a um senso mais profundo de quem somos como seres humanos.

O que é mais difícil de propagar no Ministério do Cochilo?

O trabalho é fazer as pessoas reimaginarem o descanso, que não é um privilégio ou um luxo. Isso tem sido a parte mais difícil do meu trabalho: fazer as pessoas reprogramarem suas mentes para entender que o descanso não é um privilégio.

Nossos corpos nos pertencem, não pertencem ao sistema. Este é o nosso bem mais precioso: nossos corpos são nosso templo.

Sem descanso, sem sono, estamos falando de vida ou morte. A privação do sono é uma questão de saúde pública porque está ligada a tantas doenças, como câncer, hipertensão, diabetes, e tudo isso está relacionado ao que estamos fazendo ao nosso corpo pela falta de descanso.

Tricia Hersey durante uma intervenção em Atlanta (EUA), em maio de 2017. Foto: Brian Harrison/The Nap Ministry/Reprodução
Quero que as pessoas entendam que o descanso não é fútil ou algo que fazemos para produzir mais. Ouço pessoas dizendo: “Vou trabalhar muito no fim de semana e depois me darei uma soneca de presente”. Não, você deveria estar descansando, dormindo e desacelerando como parte da sua vida.

Tricia Hersey

O descanso é uma prática de amor, é uma prática de justiça. Estamos lutando contra sistemas que nos disseram a vida inteira que não somos suficientes, a menos que façamos mais.

Eles associam nossa produtividade ao nosso valor como humanos, mas estou dizendo que o valor da nossa humanidade é dado no nascimento. É uma total inversão da narrativa que nos foi contada.

Gosto muito das Ciências do Sono. Há um livro chamado “Por que Nós Dormimos”, do neurocientista Matthew Walker, que fala sobre o que acontece quando não dormimos por seis horas ou mais.

Eles descobriram que o corpo começa a se deteriorar. O risco de câncer, diabetes e de doenças cardíacas aumenta, a imunidade diminui e a inflamação no corpo sobe. Tudo isso acontece quando não descansamos.

É radical o fato de que o trabalho que estou fazendo seja visto como radical. Não deveria ser radical afirmar que você não é uma máquina, que é um ser humano que merece cuidado, que merece um momento e que merece descanso.

Tricia Hersey

Mesmo depois de nove anos de trabalho, ainda fico surpresa que essa ideia seja tão radical em uma cultura capitalista, em um mundo que se alimenta de capitalismo, produtividade e injustiça. Estou muito grata que esse trabalho tenha se tornado global.

Para você, como seria um mundo em que as pessoas estão descansadas?

Acho que um mundo descansado é um mundo curado. O descanso traz cura. A cura acontecerá quando as pessoas se conectarem com seus corpos, essa grande fonte de inspiração, quando as pessoas puderem cuidar profundamente umas das outras.

Se as pessoas quiserem entender a teoria por trás disso, é simplesmente uma mensagem de cuidado profundo pela humanidade, para que possamos nos ver de forma diferente da que os sistemas nos ensinaram.

Um mundo descansado é um mundo curado. É um mundo conectado, onde todos se sentem seguros. Não importa como seja o corpo, qual sua raça ou idade, todos se sentem apoiados e cuidados.

Um mundo curado seria uma ruptura, um rompimento com um mundo que não quer nos ver bem.

Saiba mais sobre o livro

Nome: “Descansar é Resistir - Um Manifesto”

Autora: Tricia Hersey

Editora: Fontanar

Número de páginas: 190

Entrevista por Jayanne Rodrigues

Formada em jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia, é repórter de Carreiras. Cobre futuro do trabalho, tendências no mundo corporativo, lideranças e outros assuntos que impactam diretamente a cultura de trabalho no Brasil. No Estadão, também atuou como plantonista da madrugada, cobriu judiciário e tem passagem pela home page do jornal.

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