Instalado em 99% dos celulares brasileiros, o WhatsApp tornou a comunicação entre amigos e parentes muito mais prática e definiu uma plataforma padrão para mensagens, grupos e chamadas. Com todos cadastrados no aplicativo, não demorou para que ele começasse a ser usado também para a comunicação nas empresas. Afinal, mandar um “zap” é quase o mesmo que esbarrar em alguém no corredor - só que virtualmente.
Mas se antes era possível esbarrar em alguém somente quando se compartilhava o mesmo ambiente, agora a disponibilidade é ilimitada. Pedir uma informação leva somente alguns segundos, independentemente do momento, de segunda a segunda.
“Eu me sinto invadida pelo meu trabalho em vários momentos da minha vida, nos momentos de lazer, no fim de semana, quando eu estou de folga”, afirma Érica Duarte (nome fictício dado a ela por não querer se expor), que trabalha em uma empresa de comunicação com sede em Florianópolis. Ela diz receber mensagens recorrentes sobre o trabalho fora do horário de expediente e até nos finais de semana.
Com a popularização da plataforma, membros de diferentes empresas passaram a criar grupos para o compartilhamento de informações e arquivos de forma mais rápida e prática do que o antigo e-mail corporativo. Os avisos, antes endereçados em um meio controlado pela companhia, foram transferidos para um app instalado nos equipamentos privados dos funcionários. O ramal do escritório agora fica no bolso.
“Já deixei de responder amigos meus e familiares, porque a notificação chega ao mesmo tempo, e eu acabo priorizando o trabalho”, explica Érica.
Essa disponibilidade integral, no entanto, começa a cobrar seus custos. Cerca de 30% dos profissionais afirmam sentir pressão para estar disponível o tempo todo no trabalho, segundo pesquisa realizada pelo professor Paul Ferreira, da FGV, em parceria com as empresas Talenses e Gympass. No mesmo estudo, 43% deles afirmam estar com sobrecarga de trabalho.
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Sem os recursos existentes em plataformas específicas para comunicação corporativa - como Microsoft Teams, Slack ou Gmail -, é impossível definir um intervalo de horários para receber mensagens de pessoas e grupos específicos no WhatsApp. À reportagem, a assessoria da Meta - dona do WhatsApp - não confirma se há planos para a disponibilização de tais recursos no app.
“Na hora que a coisa aperta, as pessoas vão para o WhatsApp”, explica Carlos d’Andréa, professor de comunicação da UFMG, citando que mesmo empresas com softwares corporativos acabam recorrendo ao aplicativo da Meta para a comunicação com os colegas.
Segundo Bruno Carramenha, professor de comunicação da FAAP e diretor da consultoria de cultura organizacional 4CO, o problema está ligado diretamente à valorização excessiva ao trabalho e a falhas na cultura organizacional das empresas. “Tem de existir diretrizes e orientações práticas culturais da companhia, que estabeleçam limites,” defende ele. “O caminho da solução está na mão das empresas e não das pessoas.”
Disponibilidade integral
O fenômeno não é novo. Em 2013, uma reportagem do Estadão mostrou que o WhatsApp - na época, ainda engatinhando no País - começava a ganhar adeptos também no mundo corporativo. Na ocasião, d’Andréa disse que o uso do app era um “sintoma claro da Era da Hipersociabilidade”. Dez anos depois, ele afirma que a difusão da disponibilidade integral das pessoas se integrou de vez ao mundo corporativo, fenômeno que se potencializou com a chegada da pandemia. De fato, o app foi usado por 82% das empresas que entraram em modelo remoto durante a crise sanitária, segundo pesquisa da Sociedade Brasileira de Teletrabalho.
Muito disso se refere à praticidade. Mesmo que algum colega de trabalho tenha dificuldade com o uso da tecnologia, se há uma ferramenta que ele provavelmente sabe utilizar, é o WhatsApp. Não é preciso dar treinamentos ou explicar a utilização, todos sabem como mandar e receber mensagens pelo app.
Na empresa de Érica, há um aplicativo para comunicação interna, mas, segundo ela, não há qualquer tipo de treinamento ou incentivo da empresa para a utilização da plataforma. “Eu até criei um grupo no Teams, mas a comunicação fica restrita somente a nossa equipe”, explica. Ela também criou um número corporativo do WhatsApp para falar com outros colegas, plano que acabou não funcionando, já que as pessoas continuavam a contatá-la em seu número pessoal.
Limites
“A própria figura do horário de trabalho fica meio turva com a tecnologia”, afirma Márcio Carneiro, professor do Laboratório de Convergência de Mídias da UFMA, que desenvolveu uma ferramenta para a análise da utilização do WhatsApp nas empresas. Ele defende que a discussão vai além do uso do aplicativo em si e se refere às fronteiras entre o pessoal e o profissional, que ficaram mais nebulosas a partir do uso cada vez mais extensivo das redes sociais. “Não tem uma receita de bolo para todas as organizações”, defende.
Os problemas com o uso do app vão além da importunação fora do horário de trabalho. Receber mensagens pessoais no mesmo local onde se lida com questões profissionais pode interferir na produtividade, além de embaralhar as regras de comportamento no ambiente corporativo. “O celular é como se fosse o quintal da minha casa e esse mesmo espaço também se torna a sala de reunião da empresa. A maneira como eu deveria me comportar e as relações que eu deveria estabelecer ficam nebulosas”, pontua o professor Bruno Carramenha.
Além disso, o WhatsApp é muito usado em micro e pequenas empresas, onde a utilização de softwares corporativos podem ser inviáveis. O app da Meta é gratuito e oferece os recursos básicos para a comunicação, que são essenciais para diversas companhias. “A gente pode observar empresas onde o WhatsApp é usado e funciona super bem”, diz Carramenha. “Porque você tem uma liderança que dá o exemplo, que não manda mensagem, não demanda trabalho fora do horário.”