‘Não existe fórmula para estimular criatividade e produtividade’, diz neurocientista


Em entrevista ao ‘Estadão’, o médico Miguel Nicolelis fala sobre o impacto das tecnologias na vida social e no trabalho; para ele, excessos inibem inovação e criatividade

Por Ludimila Honorato
Atualização:

A tecnologia está tão presente na nossa rotina que mal a concebemos. É o celular que compacta diversas possibilidades, o assistente virtual que executa ações a um simples comando de voz, um relógio que monitora nossa atividade e traz insights sobre a saúde. São recursos tão intrínsecos ao dia a dia que se tornam extensões do corpo e da vida, aponta o neurocientista Miguel Nicolelis.

Embora essas ferramentas tenham nos trazido até o mundo moderno de hoje - e seria hipocrisia negar a importância dos avanços -, o pesquisador e professor emérito da Universidade Duke diz que essa revolução está moldando o comportamento e a forma de pensar do ser humano. Aí está o alerta.

continua após a publicidade
Miguel Nicolelis se formou em medicina na USP e é pioneiro em pesquisas sobre a interface cérebro-máquina Foto: Alex Silva/Estadão

“Estamos envolvidos no mundo digital e isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando, criando uma pressão seletiva, para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro”, disse ele, em entrevista ao Estadão.

Nicolelis é pioneiro nas pesquisas sobre a interface cérebro-máquina, que possibilitou a pessoas sem mobilidade mexer um braço ou perna por meio de ondas cerebrais, com um exoesqueleto. Na última quarta-feira, 10, ele participou do Flash Humanidades 2022, evento que discutiu transformações tecnológicas e relações de trabalho.

continua após a publicidade

Antes, o neurocientista conversou com a reportagem sobre o impacto das tecnologias na vida social e no trabalho e afirmou que os excessos inibem a criatividade. Para ele, quanto mais as empresas definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação.

Confira a seguir alguns trechos da entrevista:

Quais são as novas abordagens da relação entre tecnologia e ser humano? Em que patamar estamos?

continua após a publicidade

A capacidade de gerar ferramentas é um dos atributos únicos do cérebro humano que ajuda a explicar toda a história da civilização. O cérebro humano não só é capaz de gerar ferramentas para ampliar a nossa ação no mundo exterior como assimila essas ferramentas como uma extensão, literalmente, do nosso corpo, do nosso sentido de ser. Estudamos isso em macacos, em seres humanos e confirmamos e expandimos essa ideia de que todas as tecnologias que nós criamos viram parte de nós, como a bicicleta, o carro.

Qual é o impacto disso?

Essa propriedade do cérebro humano não só gerou o mundo moderno como, principalmente, acelerou o nosso mundo, para o bem e para o mal. Desde a revolução digital dos anos 30, 40, ela vem alterando o nosso comportamento, a forma como a gente pensa. Apesar do cérebro não ser um sistema digital, estamos sendo imersos continuamente na lógica digital em basicamente tudo que fazemos. Isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando e criando uma pressão seletiva para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro.

continua após a publicidade

Que tipo de mudanças ocorreriam?

São várias, desde a redução do contato social, alteração do período de atenção, foco, tentativa de multitasking (multitarefa), que é uma coisa que nós conseguimos fazer, mas muito mal. Geralmente, quando aumentamos o número de tarefas, a profundidade da nossa ação em cada uma diminui exponencialmente. E acaba gerando distúrbios cognitivos e até psiquiátricos, como angústia, ansiedade e estresse.

Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama”

Miguel Nicolelis, neurocientista

continua após a publicidade

Esse cenário nos faz ficar hiperconectados. Isso não é prejudicial?

Na pandemia, todos nós tivemos de interagir via online e, por um lado, você tem essa questão positiva de poder falar com plateias no mundo todo. Mas, por outro, você perde o contato que nós estamos tendo aqui numa conversa, que é essencial para o cérebro humano, porque ele depende das nossas interações sociais, isso é bem óbvio na história da evolução humana. Mas essas interações estão diminuindo cada vez mais, então vários atributos da mente humana estão sendo afetados pela nossa mudança de comportamento, que está sendo basicamente impelida pela lógica digital. Claro que tem um aspecto positivo de interagir e criar tecnologias, eu trabalho com tecnologia há 40 anos, mas o problema é que nós estamos esquecendo qual é o nosso papel. Não podemos virar escravos disso nem podemos admitir que isso (ele aponta para o celular) substitua isto aqui (aponta para ele e para a repórter), porque isto aqui é muito mais complexo e muito mais elaborado do que qualquer dispositivo digital que a gente criou.

Pode detalhar mais como esses processos afetam o cérebro e nossa capacidade de concentração?

continua após a publicidade

Isso é muito comum em programadores, que começam a pensar de acordo com o tipo de linguagem da computação que eles normalmente programam, principalmente se programam dez horas por dia, fazendo código. Isso foi o primeiro alerta que eu tive. Passei cinco anos pesquisando para escrever meu último livro e fui encontrando uma variedade de estudos mostrando, por exemplo, como as crianças, os jovens e depois os adultos também desenvolvem um processo de vício do uso digital, que é muito parecido com qualquer outra coisa que a gente conhece, como álcool, drogas, sexo.

Pode dar um exemplo?

Uma autora que conheci era uma defensora da introdução de computadores muito cedo na vida dos alunos e ela começou a pesquisar quais eram os efeitos de 30 anos de uso de computadores nos jovens americanos. O que ela encontrou foi o oposto do que achavam nos anos 60. Eles começaram a tirar os computadores da sala de aula, porque notaram que havia um “enquadramento” do modo de pensar, o pensamento ficava “quadrado”, e as crianças começavam a pensar só em termos binários. Você começa a limitar a sua forma de pensar. As pessoas falam que tem apps para isso e para aquilo, mas o problema é que você, sem saber, está abrindo mão do controle da sua vida para quem programou o app. A sensação que eu tenho é que nós estamos dilapidando os atributos analógicos da mente humana: a criatividade, espontaneidade, pensamento fora da caixa, a própria inteligência. Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama.

Como você vê tudo isso sendo aplicado nas relações de trabalho?

Mesmo as empresas altamente inovadoras, ou que se consideram altamente inovadoras, não percebem que quanto mais elas arregimentam as pessoas, quanto mais definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação. Quando alguém me pede para falar sobre inovação, eu digo: não tem o que falar, inovação é fazer, não é uma receita. Para ter inovação, você precisa ter talento, criatividade e processos que permitam que a pessoa ou o grupo inove.

Existe um excesso, então, desses recursos tecnológicos?

O excesso de tecnologia está dando uma receita de bolo que não existe. Nós temos a ilusão de que todos os processos naturais humanos cognitivos podem ser reproduzidos ou descritos por um algoritmo digital. Não podem. É uma mínima fração dos fenômenos naturais que podem ser formulados na fórmula matemática e aí você cria um algoritmo digital. Então, quanto mais você arregimenta a mente humana, mais você limita o output (produção) dela e é isso que a maior parte dos empresários não percebe e tenta criar uma série de normas de inovação.

Miguel Nicolelis estuda inovação desde os 20 anos de idade; ainda na FMUSP, começou a trabalhar com os primeiros computadores, no início dos anos 1980. Foto: Alex Silva/Estadão

Mas, por outro lado, algumas ferramentas podem ajudar, como na produtividade, por exemplo.

Depende. A questão da produtividade é muito delicada, porque ela não é igual para todo ser humano. Cinco minutos do Albert Einstein concentrado valem por dezenas de anos da média humana. É sabido que em agrupamentos sociais humanos acima de 150 indivíduos, trabalhando com um objetivo comum, começa a ficar difícil saber o que está acontecendo. Por isso que empresas que crescem acima de um certo número de funcionários precisam ter certa hierarquia de supervisão. Mas o que eu digo é: não existe uma fórmula única para estimular a criatividade ou produtividade. Você não vai contentar gregos e troianos com um único algoritmo nem vai extrair o máximo da sua força de trabalho se usar a mesma fórmula.

É isso que falta aos executivos entender?

Liderança, na minha opinião, não é você gritar mais alto. A liderança é aquela que tem a sensibilidade de perceber quem trabalha para você e o que você quer extrair desse grupo como um todo e como você modula a sua forma de liderar. E isso não vai ser feito por um app digital. Os executivos são treinados com a ilusão de que vão controlar o processo 100%, mas pode esquecer.

O metaverso já é uma realidade nas empresas, para reuniões e processos seletivos. Como o senhor avalia esse movimento?

Tem coisas que são positivas, mas não nesses contextos. Você pode usar, por exemplo, para levar medicina para pessoas onde não existe um hospital. Todavia, eu acho que, daqui a dez anos, nós vamos fazer uma revisão do que ocorreu nesse período de entusiasmo. É igual a inteligência artificial, que não é inteligente nem artificial. A inteligência é uma propriedade dos organismos, não é reproduzível em software; e não é artificial porque é criada por nós, ela vem do suco de miolo do cara que fez, então ela é natural. Se você for ver a história da inteligência artificial desde os anos 50, ela tem períodos de grande entusiasmo e estou achando que o metaverso vai ser muito parecido.

Mas, por enquanto, é algo que está em alta.

Pior do que isso, qual vai ser o impacto em grande escala na nossa proficiência social se nós renunciarmos a isto aqui (indica a conversa que estamos tendo) que nós estamos fazendo? As crianças vão estudar na internet também; como vai ser o desenvolvimento cognitivo de crianças que não brincam, que não tem recreio, que não abraçam o coleguinha, a professora, não fazem festa de aniversário apagando velinha? As pessoas pensam que isso é irrelevante, mas isso faz parte do treinamento cognitivo de todo ser humano.

Quanto mais as empresas definem regras rígidas do comportamento digital, menos estimulam a inovação”

Miguel Nicolelis, neurocientista e professor emérito da Universidade Duke

No final das contas, tudo se baseia em não perder o contato social, certo?

Todas as atividades em grupo requerem que o cérebro dos indivíduos se sincronize. Quando você realiza uma atividade no metaverso, até onde eu saiba e ainda é muito cedo para dizer, ninguém sabe se você vai conseguir reproduzir do ponto de vista fisiológico o mesmo grau de sincronização. Do ponto de vista de feedback sensorial, ele é muito mais pobre do que o que nós temos capacidade de fazer. Isso é previsível: vamos chegar ao ponto das pessoas perderem a noção do que é o real e do que é o metaverso.

O que isso implica?

O problema de tudo é: quem ganha com isso? A quem isso beneficia? Quem ganha que todos nós sejamos viciados em telefones celulares? É quem usa os nossos dados gratuitamente para ganhar dinheiro. Somos quase 8 bilhões de pessoas no mundo e por volta de um terço da humanidade deve ter acesso a telefones celulares hoje, então imagina a riqueza desses dados comportamentais sendo adquiridos, gratuitamente, e usados comercialmente.

Temos visto inteligências artificiais medindo produtividade, bem-estar e saúde mental dos funcionários. Quão assertivo isso pode ser e quais cuidados tomar?

Eu tenho muito receio. Não é minha área de pesquisa, mas eu leio sobre sistemas inteligentes desde que eu era aluno da faculdade de medicina. Esses sistemas usam o passado para prever o futuro e você precisa de um banco de dados enorme. Isso é a grande crítica que eu tenho à dita inteligência artificial: ela está querendo nos condenar a viver o passado de novo e de novo, porque nunca vai ter nada novo. Você vai ter que acumular a experiência do passado para definir o que é o futuro e eu não quero viver esse futuro.

Mas algumas inteligências artificiais usam dados em tempo real para gerar insights.

De todas as experiências de medicina que eu vi até hoje, a vasta maioria tem furos. Os hospitais americanos começaram a falar recentemente em substituir o plantonista da triagem da emergência por sistema. Vai ser um desastre. O olhar clínico, nenhum computador vai ter, porque não é digital. Não interessa quão sofisticado o algoritmo seja, quão gigantesco o banco de dados seja, a lógica digital não permite estados intermediários, é sim ou não, e a medicina tem infinitos graus de cinza entre o preto e branco.

Então é o caso de usar essas tecnologias com parcimônia.

Concordo. Tenho amigos em Milão que desenvolveram um algoritmo para a covid em que pegaram cinco parâmetros e conseguiam dizer se a pessoa era candidata à UTI ou não. E funcionou e eles salvaram um monte de vidas. O problema é que nós temos o outro lado. O ganho tem de ser maior do que a perda e eu não acredito que essa análise de custo-benefício está sendo feita, porque a única variável que conta é o lucro.

A tecnologia está tão presente na nossa rotina que mal a concebemos. É o celular que compacta diversas possibilidades, o assistente virtual que executa ações a um simples comando de voz, um relógio que monitora nossa atividade e traz insights sobre a saúde. São recursos tão intrínsecos ao dia a dia que se tornam extensões do corpo e da vida, aponta o neurocientista Miguel Nicolelis.

Embora essas ferramentas tenham nos trazido até o mundo moderno de hoje - e seria hipocrisia negar a importância dos avanços -, o pesquisador e professor emérito da Universidade Duke diz que essa revolução está moldando o comportamento e a forma de pensar do ser humano. Aí está o alerta.

Miguel Nicolelis se formou em medicina na USP e é pioneiro em pesquisas sobre a interface cérebro-máquina Foto: Alex Silva/Estadão

“Estamos envolvidos no mundo digital e isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando, criando uma pressão seletiva, para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro”, disse ele, em entrevista ao Estadão.

Nicolelis é pioneiro nas pesquisas sobre a interface cérebro-máquina, que possibilitou a pessoas sem mobilidade mexer um braço ou perna por meio de ondas cerebrais, com um exoesqueleto. Na última quarta-feira, 10, ele participou do Flash Humanidades 2022, evento que discutiu transformações tecnológicas e relações de trabalho.

Antes, o neurocientista conversou com a reportagem sobre o impacto das tecnologias na vida social e no trabalho e afirmou que os excessos inibem a criatividade. Para ele, quanto mais as empresas definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação.

Confira a seguir alguns trechos da entrevista:

Quais são as novas abordagens da relação entre tecnologia e ser humano? Em que patamar estamos?

A capacidade de gerar ferramentas é um dos atributos únicos do cérebro humano que ajuda a explicar toda a história da civilização. O cérebro humano não só é capaz de gerar ferramentas para ampliar a nossa ação no mundo exterior como assimila essas ferramentas como uma extensão, literalmente, do nosso corpo, do nosso sentido de ser. Estudamos isso em macacos, em seres humanos e confirmamos e expandimos essa ideia de que todas as tecnologias que nós criamos viram parte de nós, como a bicicleta, o carro.

Qual é o impacto disso?

Essa propriedade do cérebro humano não só gerou o mundo moderno como, principalmente, acelerou o nosso mundo, para o bem e para o mal. Desde a revolução digital dos anos 30, 40, ela vem alterando o nosso comportamento, a forma como a gente pensa. Apesar do cérebro não ser um sistema digital, estamos sendo imersos continuamente na lógica digital em basicamente tudo que fazemos. Isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando e criando uma pressão seletiva para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro.

Que tipo de mudanças ocorreriam?

São várias, desde a redução do contato social, alteração do período de atenção, foco, tentativa de multitasking (multitarefa), que é uma coisa que nós conseguimos fazer, mas muito mal. Geralmente, quando aumentamos o número de tarefas, a profundidade da nossa ação em cada uma diminui exponencialmente. E acaba gerando distúrbios cognitivos e até psiquiátricos, como angústia, ansiedade e estresse.

Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama”

Miguel Nicolelis, neurocientista

Esse cenário nos faz ficar hiperconectados. Isso não é prejudicial?

Na pandemia, todos nós tivemos de interagir via online e, por um lado, você tem essa questão positiva de poder falar com plateias no mundo todo. Mas, por outro, você perde o contato que nós estamos tendo aqui numa conversa, que é essencial para o cérebro humano, porque ele depende das nossas interações sociais, isso é bem óbvio na história da evolução humana. Mas essas interações estão diminuindo cada vez mais, então vários atributos da mente humana estão sendo afetados pela nossa mudança de comportamento, que está sendo basicamente impelida pela lógica digital. Claro que tem um aspecto positivo de interagir e criar tecnologias, eu trabalho com tecnologia há 40 anos, mas o problema é que nós estamos esquecendo qual é o nosso papel. Não podemos virar escravos disso nem podemos admitir que isso (ele aponta para o celular) substitua isto aqui (aponta para ele e para a repórter), porque isto aqui é muito mais complexo e muito mais elaborado do que qualquer dispositivo digital que a gente criou.

Pode detalhar mais como esses processos afetam o cérebro e nossa capacidade de concentração?

Isso é muito comum em programadores, que começam a pensar de acordo com o tipo de linguagem da computação que eles normalmente programam, principalmente se programam dez horas por dia, fazendo código. Isso foi o primeiro alerta que eu tive. Passei cinco anos pesquisando para escrever meu último livro e fui encontrando uma variedade de estudos mostrando, por exemplo, como as crianças, os jovens e depois os adultos também desenvolvem um processo de vício do uso digital, que é muito parecido com qualquer outra coisa que a gente conhece, como álcool, drogas, sexo.

Pode dar um exemplo?

Uma autora que conheci era uma defensora da introdução de computadores muito cedo na vida dos alunos e ela começou a pesquisar quais eram os efeitos de 30 anos de uso de computadores nos jovens americanos. O que ela encontrou foi o oposto do que achavam nos anos 60. Eles começaram a tirar os computadores da sala de aula, porque notaram que havia um “enquadramento” do modo de pensar, o pensamento ficava “quadrado”, e as crianças começavam a pensar só em termos binários. Você começa a limitar a sua forma de pensar. As pessoas falam que tem apps para isso e para aquilo, mas o problema é que você, sem saber, está abrindo mão do controle da sua vida para quem programou o app. A sensação que eu tenho é que nós estamos dilapidando os atributos analógicos da mente humana: a criatividade, espontaneidade, pensamento fora da caixa, a própria inteligência. Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama.

Como você vê tudo isso sendo aplicado nas relações de trabalho?

Mesmo as empresas altamente inovadoras, ou que se consideram altamente inovadoras, não percebem que quanto mais elas arregimentam as pessoas, quanto mais definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação. Quando alguém me pede para falar sobre inovação, eu digo: não tem o que falar, inovação é fazer, não é uma receita. Para ter inovação, você precisa ter talento, criatividade e processos que permitam que a pessoa ou o grupo inove.

Existe um excesso, então, desses recursos tecnológicos?

O excesso de tecnologia está dando uma receita de bolo que não existe. Nós temos a ilusão de que todos os processos naturais humanos cognitivos podem ser reproduzidos ou descritos por um algoritmo digital. Não podem. É uma mínima fração dos fenômenos naturais que podem ser formulados na fórmula matemática e aí você cria um algoritmo digital. Então, quanto mais você arregimenta a mente humana, mais você limita o output (produção) dela e é isso que a maior parte dos empresários não percebe e tenta criar uma série de normas de inovação.

Miguel Nicolelis estuda inovação desde os 20 anos de idade; ainda na FMUSP, começou a trabalhar com os primeiros computadores, no início dos anos 1980. Foto: Alex Silva/Estadão

Mas, por outro lado, algumas ferramentas podem ajudar, como na produtividade, por exemplo.

Depende. A questão da produtividade é muito delicada, porque ela não é igual para todo ser humano. Cinco minutos do Albert Einstein concentrado valem por dezenas de anos da média humana. É sabido que em agrupamentos sociais humanos acima de 150 indivíduos, trabalhando com um objetivo comum, começa a ficar difícil saber o que está acontecendo. Por isso que empresas que crescem acima de um certo número de funcionários precisam ter certa hierarquia de supervisão. Mas o que eu digo é: não existe uma fórmula única para estimular a criatividade ou produtividade. Você não vai contentar gregos e troianos com um único algoritmo nem vai extrair o máximo da sua força de trabalho se usar a mesma fórmula.

É isso que falta aos executivos entender?

Liderança, na minha opinião, não é você gritar mais alto. A liderança é aquela que tem a sensibilidade de perceber quem trabalha para você e o que você quer extrair desse grupo como um todo e como você modula a sua forma de liderar. E isso não vai ser feito por um app digital. Os executivos são treinados com a ilusão de que vão controlar o processo 100%, mas pode esquecer.

O metaverso já é uma realidade nas empresas, para reuniões e processos seletivos. Como o senhor avalia esse movimento?

Tem coisas que são positivas, mas não nesses contextos. Você pode usar, por exemplo, para levar medicina para pessoas onde não existe um hospital. Todavia, eu acho que, daqui a dez anos, nós vamos fazer uma revisão do que ocorreu nesse período de entusiasmo. É igual a inteligência artificial, que não é inteligente nem artificial. A inteligência é uma propriedade dos organismos, não é reproduzível em software; e não é artificial porque é criada por nós, ela vem do suco de miolo do cara que fez, então ela é natural. Se você for ver a história da inteligência artificial desde os anos 50, ela tem períodos de grande entusiasmo e estou achando que o metaverso vai ser muito parecido.

Mas, por enquanto, é algo que está em alta.

Pior do que isso, qual vai ser o impacto em grande escala na nossa proficiência social se nós renunciarmos a isto aqui (indica a conversa que estamos tendo) que nós estamos fazendo? As crianças vão estudar na internet também; como vai ser o desenvolvimento cognitivo de crianças que não brincam, que não tem recreio, que não abraçam o coleguinha, a professora, não fazem festa de aniversário apagando velinha? As pessoas pensam que isso é irrelevante, mas isso faz parte do treinamento cognitivo de todo ser humano.

Quanto mais as empresas definem regras rígidas do comportamento digital, menos estimulam a inovação”

Miguel Nicolelis, neurocientista e professor emérito da Universidade Duke

No final das contas, tudo se baseia em não perder o contato social, certo?

Todas as atividades em grupo requerem que o cérebro dos indivíduos se sincronize. Quando você realiza uma atividade no metaverso, até onde eu saiba e ainda é muito cedo para dizer, ninguém sabe se você vai conseguir reproduzir do ponto de vista fisiológico o mesmo grau de sincronização. Do ponto de vista de feedback sensorial, ele é muito mais pobre do que o que nós temos capacidade de fazer. Isso é previsível: vamos chegar ao ponto das pessoas perderem a noção do que é o real e do que é o metaverso.

O que isso implica?

O problema de tudo é: quem ganha com isso? A quem isso beneficia? Quem ganha que todos nós sejamos viciados em telefones celulares? É quem usa os nossos dados gratuitamente para ganhar dinheiro. Somos quase 8 bilhões de pessoas no mundo e por volta de um terço da humanidade deve ter acesso a telefones celulares hoje, então imagina a riqueza desses dados comportamentais sendo adquiridos, gratuitamente, e usados comercialmente.

Temos visto inteligências artificiais medindo produtividade, bem-estar e saúde mental dos funcionários. Quão assertivo isso pode ser e quais cuidados tomar?

Eu tenho muito receio. Não é minha área de pesquisa, mas eu leio sobre sistemas inteligentes desde que eu era aluno da faculdade de medicina. Esses sistemas usam o passado para prever o futuro e você precisa de um banco de dados enorme. Isso é a grande crítica que eu tenho à dita inteligência artificial: ela está querendo nos condenar a viver o passado de novo e de novo, porque nunca vai ter nada novo. Você vai ter que acumular a experiência do passado para definir o que é o futuro e eu não quero viver esse futuro.

Mas algumas inteligências artificiais usam dados em tempo real para gerar insights.

De todas as experiências de medicina que eu vi até hoje, a vasta maioria tem furos. Os hospitais americanos começaram a falar recentemente em substituir o plantonista da triagem da emergência por sistema. Vai ser um desastre. O olhar clínico, nenhum computador vai ter, porque não é digital. Não interessa quão sofisticado o algoritmo seja, quão gigantesco o banco de dados seja, a lógica digital não permite estados intermediários, é sim ou não, e a medicina tem infinitos graus de cinza entre o preto e branco.

Então é o caso de usar essas tecnologias com parcimônia.

Concordo. Tenho amigos em Milão que desenvolveram um algoritmo para a covid em que pegaram cinco parâmetros e conseguiam dizer se a pessoa era candidata à UTI ou não. E funcionou e eles salvaram um monte de vidas. O problema é que nós temos o outro lado. O ganho tem de ser maior do que a perda e eu não acredito que essa análise de custo-benefício está sendo feita, porque a única variável que conta é o lucro.

A tecnologia está tão presente na nossa rotina que mal a concebemos. É o celular que compacta diversas possibilidades, o assistente virtual que executa ações a um simples comando de voz, um relógio que monitora nossa atividade e traz insights sobre a saúde. São recursos tão intrínsecos ao dia a dia que se tornam extensões do corpo e da vida, aponta o neurocientista Miguel Nicolelis.

Embora essas ferramentas tenham nos trazido até o mundo moderno de hoje - e seria hipocrisia negar a importância dos avanços -, o pesquisador e professor emérito da Universidade Duke diz que essa revolução está moldando o comportamento e a forma de pensar do ser humano. Aí está o alerta.

Miguel Nicolelis se formou em medicina na USP e é pioneiro em pesquisas sobre a interface cérebro-máquina Foto: Alex Silva/Estadão

“Estamos envolvidos no mundo digital e isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando, criando uma pressão seletiva, para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro”, disse ele, em entrevista ao Estadão.

Nicolelis é pioneiro nas pesquisas sobre a interface cérebro-máquina, que possibilitou a pessoas sem mobilidade mexer um braço ou perna por meio de ondas cerebrais, com um exoesqueleto. Na última quarta-feira, 10, ele participou do Flash Humanidades 2022, evento que discutiu transformações tecnológicas e relações de trabalho.

Antes, o neurocientista conversou com a reportagem sobre o impacto das tecnologias na vida social e no trabalho e afirmou que os excessos inibem a criatividade. Para ele, quanto mais as empresas definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação.

Confira a seguir alguns trechos da entrevista:

Quais são as novas abordagens da relação entre tecnologia e ser humano? Em que patamar estamos?

A capacidade de gerar ferramentas é um dos atributos únicos do cérebro humano que ajuda a explicar toda a história da civilização. O cérebro humano não só é capaz de gerar ferramentas para ampliar a nossa ação no mundo exterior como assimila essas ferramentas como uma extensão, literalmente, do nosso corpo, do nosso sentido de ser. Estudamos isso em macacos, em seres humanos e confirmamos e expandimos essa ideia de que todas as tecnologias que nós criamos viram parte de nós, como a bicicleta, o carro.

Qual é o impacto disso?

Essa propriedade do cérebro humano não só gerou o mundo moderno como, principalmente, acelerou o nosso mundo, para o bem e para o mal. Desde a revolução digital dos anos 30, 40, ela vem alterando o nosso comportamento, a forma como a gente pensa. Apesar do cérebro não ser um sistema digital, estamos sendo imersos continuamente na lógica digital em basicamente tudo que fazemos. Isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando e criando uma pressão seletiva para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro.

Que tipo de mudanças ocorreriam?

São várias, desde a redução do contato social, alteração do período de atenção, foco, tentativa de multitasking (multitarefa), que é uma coisa que nós conseguimos fazer, mas muito mal. Geralmente, quando aumentamos o número de tarefas, a profundidade da nossa ação em cada uma diminui exponencialmente. E acaba gerando distúrbios cognitivos e até psiquiátricos, como angústia, ansiedade e estresse.

Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama”

Miguel Nicolelis, neurocientista

Esse cenário nos faz ficar hiperconectados. Isso não é prejudicial?

Na pandemia, todos nós tivemos de interagir via online e, por um lado, você tem essa questão positiva de poder falar com plateias no mundo todo. Mas, por outro, você perde o contato que nós estamos tendo aqui numa conversa, que é essencial para o cérebro humano, porque ele depende das nossas interações sociais, isso é bem óbvio na história da evolução humana. Mas essas interações estão diminuindo cada vez mais, então vários atributos da mente humana estão sendo afetados pela nossa mudança de comportamento, que está sendo basicamente impelida pela lógica digital. Claro que tem um aspecto positivo de interagir e criar tecnologias, eu trabalho com tecnologia há 40 anos, mas o problema é que nós estamos esquecendo qual é o nosso papel. Não podemos virar escravos disso nem podemos admitir que isso (ele aponta para o celular) substitua isto aqui (aponta para ele e para a repórter), porque isto aqui é muito mais complexo e muito mais elaborado do que qualquer dispositivo digital que a gente criou.

Pode detalhar mais como esses processos afetam o cérebro e nossa capacidade de concentração?

Isso é muito comum em programadores, que começam a pensar de acordo com o tipo de linguagem da computação que eles normalmente programam, principalmente se programam dez horas por dia, fazendo código. Isso foi o primeiro alerta que eu tive. Passei cinco anos pesquisando para escrever meu último livro e fui encontrando uma variedade de estudos mostrando, por exemplo, como as crianças, os jovens e depois os adultos também desenvolvem um processo de vício do uso digital, que é muito parecido com qualquer outra coisa que a gente conhece, como álcool, drogas, sexo.

Pode dar um exemplo?

Uma autora que conheci era uma defensora da introdução de computadores muito cedo na vida dos alunos e ela começou a pesquisar quais eram os efeitos de 30 anos de uso de computadores nos jovens americanos. O que ela encontrou foi o oposto do que achavam nos anos 60. Eles começaram a tirar os computadores da sala de aula, porque notaram que havia um “enquadramento” do modo de pensar, o pensamento ficava “quadrado”, e as crianças começavam a pensar só em termos binários. Você começa a limitar a sua forma de pensar. As pessoas falam que tem apps para isso e para aquilo, mas o problema é que você, sem saber, está abrindo mão do controle da sua vida para quem programou o app. A sensação que eu tenho é que nós estamos dilapidando os atributos analógicos da mente humana: a criatividade, espontaneidade, pensamento fora da caixa, a própria inteligência. Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama.

Como você vê tudo isso sendo aplicado nas relações de trabalho?

Mesmo as empresas altamente inovadoras, ou que se consideram altamente inovadoras, não percebem que quanto mais elas arregimentam as pessoas, quanto mais definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação. Quando alguém me pede para falar sobre inovação, eu digo: não tem o que falar, inovação é fazer, não é uma receita. Para ter inovação, você precisa ter talento, criatividade e processos que permitam que a pessoa ou o grupo inove.

Existe um excesso, então, desses recursos tecnológicos?

O excesso de tecnologia está dando uma receita de bolo que não existe. Nós temos a ilusão de que todos os processos naturais humanos cognitivos podem ser reproduzidos ou descritos por um algoritmo digital. Não podem. É uma mínima fração dos fenômenos naturais que podem ser formulados na fórmula matemática e aí você cria um algoritmo digital. Então, quanto mais você arregimenta a mente humana, mais você limita o output (produção) dela e é isso que a maior parte dos empresários não percebe e tenta criar uma série de normas de inovação.

Miguel Nicolelis estuda inovação desde os 20 anos de idade; ainda na FMUSP, começou a trabalhar com os primeiros computadores, no início dos anos 1980. Foto: Alex Silva/Estadão

Mas, por outro lado, algumas ferramentas podem ajudar, como na produtividade, por exemplo.

Depende. A questão da produtividade é muito delicada, porque ela não é igual para todo ser humano. Cinco minutos do Albert Einstein concentrado valem por dezenas de anos da média humana. É sabido que em agrupamentos sociais humanos acima de 150 indivíduos, trabalhando com um objetivo comum, começa a ficar difícil saber o que está acontecendo. Por isso que empresas que crescem acima de um certo número de funcionários precisam ter certa hierarquia de supervisão. Mas o que eu digo é: não existe uma fórmula única para estimular a criatividade ou produtividade. Você não vai contentar gregos e troianos com um único algoritmo nem vai extrair o máximo da sua força de trabalho se usar a mesma fórmula.

É isso que falta aos executivos entender?

Liderança, na minha opinião, não é você gritar mais alto. A liderança é aquela que tem a sensibilidade de perceber quem trabalha para você e o que você quer extrair desse grupo como um todo e como você modula a sua forma de liderar. E isso não vai ser feito por um app digital. Os executivos são treinados com a ilusão de que vão controlar o processo 100%, mas pode esquecer.

O metaverso já é uma realidade nas empresas, para reuniões e processos seletivos. Como o senhor avalia esse movimento?

Tem coisas que são positivas, mas não nesses contextos. Você pode usar, por exemplo, para levar medicina para pessoas onde não existe um hospital. Todavia, eu acho que, daqui a dez anos, nós vamos fazer uma revisão do que ocorreu nesse período de entusiasmo. É igual a inteligência artificial, que não é inteligente nem artificial. A inteligência é uma propriedade dos organismos, não é reproduzível em software; e não é artificial porque é criada por nós, ela vem do suco de miolo do cara que fez, então ela é natural. Se você for ver a história da inteligência artificial desde os anos 50, ela tem períodos de grande entusiasmo e estou achando que o metaverso vai ser muito parecido.

Mas, por enquanto, é algo que está em alta.

Pior do que isso, qual vai ser o impacto em grande escala na nossa proficiência social se nós renunciarmos a isto aqui (indica a conversa que estamos tendo) que nós estamos fazendo? As crianças vão estudar na internet também; como vai ser o desenvolvimento cognitivo de crianças que não brincam, que não tem recreio, que não abraçam o coleguinha, a professora, não fazem festa de aniversário apagando velinha? As pessoas pensam que isso é irrelevante, mas isso faz parte do treinamento cognitivo de todo ser humano.

Quanto mais as empresas definem regras rígidas do comportamento digital, menos estimulam a inovação”

Miguel Nicolelis, neurocientista e professor emérito da Universidade Duke

No final das contas, tudo se baseia em não perder o contato social, certo?

Todas as atividades em grupo requerem que o cérebro dos indivíduos se sincronize. Quando você realiza uma atividade no metaverso, até onde eu saiba e ainda é muito cedo para dizer, ninguém sabe se você vai conseguir reproduzir do ponto de vista fisiológico o mesmo grau de sincronização. Do ponto de vista de feedback sensorial, ele é muito mais pobre do que o que nós temos capacidade de fazer. Isso é previsível: vamos chegar ao ponto das pessoas perderem a noção do que é o real e do que é o metaverso.

O que isso implica?

O problema de tudo é: quem ganha com isso? A quem isso beneficia? Quem ganha que todos nós sejamos viciados em telefones celulares? É quem usa os nossos dados gratuitamente para ganhar dinheiro. Somos quase 8 bilhões de pessoas no mundo e por volta de um terço da humanidade deve ter acesso a telefones celulares hoje, então imagina a riqueza desses dados comportamentais sendo adquiridos, gratuitamente, e usados comercialmente.

Temos visto inteligências artificiais medindo produtividade, bem-estar e saúde mental dos funcionários. Quão assertivo isso pode ser e quais cuidados tomar?

Eu tenho muito receio. Não é minha área de pesquisa, mas eu leio sobre sistemas inteligentes desde que eu era aluno da faculdade de medicina. Esses sistemas usam o passado para prever o futuro e você precisa de um banco de dados enorme. Isso é a grande crítica que eu tenho à dita inteligência artificial: ela está querendo nos condenar a viver o passado de novo e de novo, porque nunca vai ter nada novo. Você vai ter que acumular a experiência do passado para definir o que é o futuro e eu não quero viver esse futuro.

Mas algumas inteligências artificiais usam dados em tempo real para gerar insights.

De todas as experiências de medicina que eu vi até hoje, a vasta maioria tem furos. Os hospitais americanos começaram a falar recentemente em substituir o plantonista da triagem da emergência por sistema. Vai ser um desastre. O olhar clínico, nenhum computador vai ter, porque não é digital. Não interessa quão sofisticado o algoritmo seja, quão gigantesco o banco de dados seja, a lógica digital não permite estados intermediários, é sim ou não, e a medicina tem infinitos graus de cinza entre o preto e branco.

Então é o caso de usar essas tecnologias com parcimônia.

Concordo. Tenho amigos em Milão que desenvolveram um algoritmo para a covid em que pegaram cinco parâmetros e conseguiam dizer se a pessoa era candidata à UTI ou não. E funcionou e eles salvaram um monte de vidas. O problema é que nós temos o outro lado. O ganho tem de ser maior do que a perda e eu não acredito que essa análise de custo-benefício está sendo feita, porque a única variável que conta é o lucro.

A tecnologia está tão presente na nossa rotina que mal a concebemos. É o celular que compacta diversas possibilidades, o assistente virtual que executa ações a um simples comando de voz, um relógio que monitora nossa atividade e traz insights sobre a saúde. São recursos tão intrínsecos ao dia a dia que se tornam extensões do corpo e da vida, aponta o neurocientista Miguel Nicolelis.

Embora essas ferramentas tenham nos trazido até o mundo moderno de hoje - e seria hipocrisia negar a importância dos avanços -, o pesquisador e professor emérito da Universidade Duke diz que essa revolução está moldando o comportamento e a forma de pensar do ser humano. Aí está o alerta.

Miguel Nicolelis se formou em medicina na USP e é pioneiro em pesquisas sobre a interface cérebro-máquina Foto: Alex Silva/Estadão

“Estamos envolvidos no mundo digital e isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando, criando uma pressão seletiva, para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro”, disse ele, em entrevista ao Estadão.

Nicolelis é pioneiro nas pesquisas sobre a interface cérebro-máquina, que possibilitou a pessoas sem mobilidade mexer um braço ou perna por meio de ondas cerebrais, com um exoesqueleto. Na última quarta-feira, 10, ele participou do Flash Humanidades 2022, evento que discutiu transformações tecnológicas e relações de trabalho.

Antes, o neurocientista conversou com a reportagem sobre o impacto das tecnologias na vida social e no trabalho e afirmou que os excessos inibem a criatividade. Para ele, quanto mais as empresas definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação.

Confira a seguir alguns trechos da entrevista:

Quais são as novas abordagens da relação entre tecnologia e ser humano? Em que patamar estamos?

A capacidade de gerar ferramentas é um dos atributos únicos do cérebro humano que ajuda a explicar toda a história da civilização. O cérebro humano não só é capaz de gerar ferramentas para ampliar a nossa ação no mundo exterior como assimila essas ferramentas como uma extensão, literalmente, do nosso corpo, do nosso sentido de ser. Estudamos isso em macacos, em seres humanos e confirmamos e expandimos essa ideia de que todas as tecnologias que nós criamos viram parte de nós, como a bicicleta, o carro.

Qual é o impacto disso?

Essa propriedade do cérebro humano não só gerou o mundo moderno como, principalmente, acelerou o nosso mundo, para o bem e para o mal. Desde a revolução digital dos anos 30, 40, ela vem alterando o nosso comportamento, a forma como a gente pensa. Apesar do cérebro não ser um sistema digital, estamos sendo imersos continuamente na lógica digital em basicamente tudo que fazemos. Isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando e criando uma pressão seletiva para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro.

Que tipo de mudanças ocorreriam?

São várias, desde a redução do contato social, alteração do período de atenção, foco, tentativa de multitasking (multitarefa), que é uma coisa que nós conseguimos fazer, mas muito mal. Geralmente, quando aumentamos o número de tarefas, a profundidade da nossa ação em cada uma diminui exponencialmente. E acaba gerando distúrbios cognitivos e até psiquiátricos, como angústia, ansiedade e estresse.

Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama”

Miguel Nicolelis, neurocientista

Esse cenário nos faz ficar hiperconectados. Isso não é prejudicial?

Na pandemia, todos nós tivemos de interagir via online e, por um lado, você tem essa questão positiva de poder falar com plateias no mundo todo. Mas, por outro, você perde o contato que nós estamos tendo aqui numa conversa, que é essencial para o cérebro humano, porque ele depende das nossas interações sociais, isso é bem óbvio na história da evolução humana. Mas essas interações estão diminuindo cada vez mais, então vários atributos da mente humana estão sendo afetados pela nossa mudança de comportamento, que está sendo basicamente impelida pela lógica digital. Claro que tem um aspecto positivo de interagir e criar tecnologias, eu trabalho com tecnologia há 40 anos, mas o problema é que nós estamos esquecendo qual é o nosso papel. Não podemos virar escravos disso nem podemos admitir que isso (ele aponta para o celular) substitua isto aqui (aponta para ele e para a repórter), porque isto aqui é muito mais complexo e muito mais elaborado do que qualquer dispositivo digital que a gente criou.

Pode detalhar mais como esses processos afetam o cérebro e nossa capacidade de concentração?

Isso é muito comum em programadores, que começam a pensar de acordo com o tipo de linguagem da computação que eles normalmente programam, principalmente se programam dez horas por dia, fazendo código. Isso foi o primeiro alerta que eu tive. Passei cinco anos pesquisando para escrever meu último livro e fui encontrando uma variedade de estudos mostrando, por exemplo, como as crianças, os jovens e depois os adultos também desenvolvem um processo de vício do uso digital, que é muito parecido com qualquer outra coisa que a gente conhece, como álcool, drogas, sexo.

Pode dar um exemplo?

Uma autora que conheci era uma defensora da introdução de computadores muito cedo na vida dos alunos e ela começou a pesquisar quais eram os efeitos de 30 anos de uso de computadores nos jovens americanos. O que ela encontrou foi o oposto do que achavam nos anos 60. Eles começaram a tirar os computadores da sala de aula, porque notaram que havia um “enquadramento” do modo de pensar, o pensamento ficava “quadrado”, e as crianças começavam a pensar só em termos binários. Você começa a limitar a sua forma de pensar. As pessoas falam que tem apps para isso e para aquilo, mas o problema é que você, sem saber, está abrindo mão do controle da sua vida para quem programou o app. A sensação que eu tenho é que nós estamos dilapidando os atributos analógicos da mente humana: a criatividade, espontaneidade, pensamento fora da caixa, a própria inteligência. Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama.

Como você vê tudo isso sendo aplicado nas relações de trabalho?

Mesmo as empresas altamente inovadoras, ou que se consideram altamente inovadoras, não percebem que quanto mais elas arregimentam as pessoas, quanto mais definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação. Quando alguém me pede para falar sobre inovação, eu digo: não tem o que falar, inovação é fazer, não é uma receita. Para ter inovação, você precisa ter talento, criatividade e processos que permitam que a pessoa ou o grupo inove.

Existe um excesso, então, desses recursos tecnológicos?

O excesso de tecnologia está dando uma receita de bolo que não existe. Nós temos a ilusão de que todos os processos naturais humanos cognitivos podem ser reproduzidos ou descritos por um algoritmo digital. Não podem. É uma mínima fração dos fenômenos naturais que podem ser formulados na fórmula matemática e aí você cria um algoritmo digital. Então, quanto mais você arregimenta a mente humana, mais você limita o output (produção) dela e é isso que a maior parte dos empresários não percebe e tenta criar uma série de normas de inovação.

Miguel Nicolelis estuda inovação desde os 20 anos de idade; ainda na FMUSP, começou a trabalhar com os primeiros computadores, no início dos anos 1980. Foto: Alex Silva/Estadão

Mas, por outro lado, algumas ferramentas podem ajudar, como na produtividade, por exemplo.

Depende. A questão da produtividade é muito delicada, porque ela não é igual para todo ser humano. Cinco minutos do Albert Einstein concentrado valem por dezenas de anos da média humana. É sabido que em agrupamentos sociais humanos acima de 150 indivíduos, trabalhando com um objetivo comum, começa a ficar difícil saber o que está acontecendo. Por isso que empresas que crescem acima de um certo número de funcionários precisam ter certa hierarquia de supervisão. Mas o que eu digo é: não existe uma fórmula única para estimular a criatividade ou produtividade. Você não vai contentar gregos e troianos com um único algoritmo nem vai extrair o máximo da sua força de trabalho se usar a mesma fórmula.

É isso que falta aos executivos entender?

Liderança, na minha opinião, não é você gritar mais alto. A liderança é aquela que tem a sensibilidade de perceber quem trabalha para você e o que você quer extrair desse grupo como um todo e como você modula a sua forma de liderar. E isso não vai ser feito por um app digital. Os executivos são treinados com a ilusão de que vão controlar o processo 100%, mas pode esquecer.

O metaverso já é uma realidade nas empresas, para reuniões e processos seletivos. Como o senhor avalia esse movimento?

Tem coisas que são positivas, mas não nesses contextos. Você pode usar, por exemplo, para levar medicina para pessoas onde não existe um hospital. Todavia, eu acho que, daqui a dez anos, nós vamos fazer uma revisão do que ocorreu nesse período de entusiasmo. É igual a inteligência artificial, que não é inteligente nem artificial. A inteligência é uma propriedade dos organismos, não é reproduzível em software; e não é artificial porque é criada por nós, ela vem do suco de miolo do cara que fez, então ela é natural. Se você for ver a história da inteligência artificial desde os anos 50, ela tem períodos de grande entusiasmo e estou achando que o metaverso vai ser muito parecido.

Mas, por enquanto, é algo que está em alta.

Pior do que isso, qual vai ser o impacto em grande escala na nossa proficiência social se nós renunciarmos a isto aqui (indica a conversa que estamos tendo) que nós estamos fazendo? As crianças vão estudar na internet também; como vai ser o desenvolvimento cognitivo de crianças que não brincam, que não tem recreio, que não abraçam o coleguinha, a professora, não fazem festa de aniversário apagando velinha? As pessoas pensam que isso é irrelevante, mas isso faz parte do treinamento cognitivo de todo ser humano.

Quanto mais as empresas definem regras rígidas do comportamento digital, menos estimulam a inovação”

Miguel Nicolelis, neurocientista e professor emérito da Universidade Duke

No final das contas, tudo se baseia em não perder o contato social, certo?

Todas as atividades em grupo requerem que o cérebro dos indivíduos se sincronize. Quando você realiza uma atividade no metaverso, até onde eu saiba e ainda é muito cedo para dizer, ninguém sabe se você vai conseguir reproduzir do ponto de vista fisiológico o mesmo grau de sincronização. Do ponto de vista de feedback sensorial, ele é muito mais pobre do que o que nós temos capacidade de fazer. Isso é previsível: vamos chegar ao ponto das pessoas perderem a noção do que é o real e do que é o metaverso.

O que isso implica?

O problema de tudo é: quem ganha com isso? A quem isso beneficia? Quem ganha que todos nós sejamos viciados em telefones celulares? É quem usa os nossos dados gratuitamente para ganhar dinheiro. Somos quase 8 bilhões de pessoas no mundo e por volta de um terço da humanidade deve ter acesso a telefones celulares hoje, então imagina a riqueza desses dados comportamentais sendo adquiridos, gratuitamente, e usados comercialmente.

Temos visto inteligências artificiais medindo produtividade, bem-estar e saúde mental dos funcionários. Quão assertivo isso pode ser e quais cuidados tomar?

Eu tenho muito receio. Não é minha área de pesquisa, mas eu leio sobre sistemas inteligentes desde que eu era aluno da faculdade de medicina. Esses sistemas usam o passado para prever o futuro e você precisa de um banco de dados enorme. Isso é a grande crítica que eu tenho à dita inteligência artificial: ela está querendo nos condenar a viver o passado de novo e de novo, porque nunca vai ter nada novo. Você vai ter que acumular a experiência do passado para definir o que é o futuro e eu não quero viver esse futuro.

Mas algumas inteligências artificiais usam dados em tempo real para gerar insights.

De todas as experiências de medicina que eu vi até hoje, a vasta maioria tem furos. Os hospitais americanos começaram a falar recentemente em substituir o plantonista da triagem da emergência por sistema. Vai ser um desastre. O olhar clínico, nenhum computador vai ter, porque não é digital. Não interessa quão sofisticado o algoritmo seja, quão gigantesco o banco de dados seja, a lógica digital não permite estados intermediários, é sim ou não, e a medicina tem infinitos graus de cinza entre o preto e branco.

Então é o caso de usar essas tecnologias com parcimônia.

Concordo. Tenho amigos em Milão que desenvolveram um algoritmo para a covid em que pegaram cinco parâmetros e conseguiam dizer se a pessoa era candidata à UTI ou não. E funcionou e eles salvaram um monte de vidas. O problema é que nós temos o outro lado. O ganho tem de ser maior do que a perda e eu não acredito que essa análise de custo-benefício está sendo feita, porque a única variável que conta é o lucro.

A tecnologia está tão presente na nossa rotina que mal a concebemos. É o celular que compacta diversas possibilidades, o assistente virtual que executa ações a um simples comando de voz, um relógio que monitora nossa atividade e traz insights sobre a saúde. São recursos tão intrínsecos ao dia a dia que se tornam extensões do corpo e da vida, aponta o neurocientista Miguel Nicolelis.

Embora essas ferramentas tenham nos trazido até o mundo moderno de hoje - e seria hipocrisia negar a importância dos avanços -, o pesquisador e professor emérito da Universidade Duke diz que essa revolução está moldando o comportamento e a forma de pensar do ser humano. Aí está o alerta.

Miguel Nicolelis se formou em medicina na USP e é pioneiro em pesquisas sobre a interface cérebro-máquina Foto: Alex Silva/Estadão

“Estamos envolvidos no mundo digital e isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando, criando uma pressão seletiva, para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro”, disse ele, em entrevista ao Estadão.

Nicolelis é pioneiro nas pesquisas sobre a interface cérebro-máquina, que possibilitou a pessoas sem mobilidade mexer um braço ou perna por meio de ondas cerebrais, com um exoesqueleto. Na última quarta-feira, 10, ele participou do Flash Humanidades 2022, evento que discutiu transformações tecnológicas e relações de trabalho.

Antes, o neurocientista conversou com a reportagem sobre o impacto das tecnologias na vida social e no trabalho e afirmou que os excessos inibem a criatividade. Para ele, quanto mais as empresas definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação.

Confira a seguir alguns trechos da entrevista:

Quais são as novas abordagens da relação entre tecnologia e ser humano? Em que patamar estamos?

A capacidade de gerar ferramentas é um dos atributos únicos do cérebro humano que ajuda a explicar toda a história da civilização. O cérebro humano não só é capaz de gerar ferramentas para ampliar a nossa ação no mundo exterior como assimila essas ferramentas como uma extensão, literalmente, do nosso corpo, do nosso sentido de ser. Estudamos isso em macacos, em seres humanos e confirmamos e expandimos essa ideia de que todas as tecnologias que nós criamos viram parte de nós, como a bicicleta, o carro.

Qual é o impacto disso?

Essa propriedade do cérebro humano não só gerou o mundo moderno como, principalmente, acelerou o nosso mundo, para o bem e para o mal. Desde a revolução digital dos anos 30, 40, ela vem alterando o nosso comportamento, a forma como a gente pensa. Apesar do cérebro não ser um sistema digital, estamos sendo imersos continuamente na lógica digital em basicamente tudo que fazemos. Isso vem alterando, não necessariamente positivamente, o cérebro humano e, possivelmente, até direcionando não só o nosso comportamento, mas selecionando e criando uma pressão seletiva para que tipo de ser humano nós vamos ter no futuro.

Que tipo de mudanças ocorreriam?

São várias, desde a redução do contato social, alteração do período de atenção, foco, tentativa de multitasking (multitarefa), que é uma coisa que nós conseguimos fazer, mas muito mal. Geralmente, quando aumentamos o número de tarefas, a profundidade da nossa ação em cada uma diminui exponencialmente. E acaba gerando distúrbios cognitivos e até psiquiátricos, como angústia, ansiedade e estresse.

Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama”

Miguel Nicolelis, neurocientista

Esse cenário nos faz ficar hiperconectados. Isso não é prejudicial?

Na pandemia, todos nós tivemos de interagir via online e, por um lado, você tem essa questão positiva de poder falar com plateias no mundo todo. Mas, por outro, você perde o contato que nós estamos tendo aqui numa conversa, que é essencial para o cérebro humano, porque ele depende das nossas interações sociais, isso é bem óbvio na história da evolução humana. Mas essas interações estão diminuindo cada vez mais, então vários atributos da mente humana estão sendo afetados pela nossa mudança de comportamento, que está sendo basicamente impelida pela lógica digital. Claro que tem um aspecto positivo de interagir e criar tecnologias, eu trabalho com tecnologia há 40 anos, mas o problema é que nós estamos esquecendo qual é o nosso papel. Não podemos virar escravos disso nem podemos admitir que isso (ele aponta para o celular) substitua isto aqui (aponta para ele e para a repórter), porque isto aqui é muito mais complexo e muito mais elaborado do que qualquer dispositivo digital que a gente criou.

Pode detalhar mais como esses processos afetam o cérebro e nossa capacidade de concentração?

Isso é muito comum em programadores, que começam a pensar de acordo com o tipo de linguagem da computação que eles normalmente programam, principalmente se programam dez horas por dia, fazendo código. Isso foi o primeiro alerta que eu tive. Passei cinco anos pesquisando para escrever meu último livro e fui encontrando uma variedade de estudos mostrando, por exemplo, como as crianças, os jovens e depois os adultos também desenvolvem um processo de vício do uso digital, que é muito parecido com qualquer outra coisa que a gente conhece, como álcool, drogas, sexo.

Pode dar um exemplo?

Uma autora que conheci era uma defensora da introdução de computadores muito cedo na vida dos alunos e ela começou a pesquisar quais eram os efeitos de 30 anos de uso de computadores nos jovens americanos. O que ela encontrou foi o oposto do que achavam nos anos 60. Eles começaram a tirar os computadores da sala de aula, porque notaram que havia um “enquadramento” do modo de pensar, o pensamento ficava “quadrado”, e as crianças começavam a pensar só em termos binários. Você começa a limitar a sua forma de pensar. As pessoas falam que tem apps para isso e para aquilo, mas o problema é que você, sem saber, está abrindo mão do controle da sua vida para quem programou o app. A sensação que eu tenho é que nós estamos dilapidando os atributos analógicos da mente humana: a criatividade, espontaneidade, pensamento fora da caixa, a própria inteligência. Estamos homogeneizando o comportamento humano e isso é um grande drama.

Como você vê tudo isso sendo aplicado nas relações de trabalho?

Mesmo as empresas altamente inovadoras, ou que se consideram altamente inovadoras, não percebem que quanto mais elas arregimentam as pessoas, quanto mais definem regras rígidas digitais do comportamento, menos estimulam a inovação. Quando alguém me pede para falar sobre inovação, eu digo: não tem o que falar, inovação é fazer, não é uma receita. Para ter inovação, você precisa ter talento, criatividade e processos que permitam que a pessoa ou o grupo inove.

Existe um excesso, então, desses recursos tecnológicos?

O excesso de tecnologia está dando uma receita de bolo que não existe. Nós temos a ilusão de que todos os processos naturais humanos cognitivos podem ser reproduzidos ou descritos por um algoritmo digital. Não podem. É uma mínima fração dos fenômenos naturais que podem ser formulados na fórmula matemática e aí você cria um algoritmo digital. Então, quanto mais você arregimenta a mente humana, mais você limita o output (produção) dela e é isso que a maior parte dos empresários não percebe e tenta criar uma série de normas de inovação.

Miguel Nicolelis estuda inovação desde os 20 anos de idade; ainda na FMUSP, começou a trabalhar com os primeiros computadores, no início dos anos 1980. Foto: Alex Silva/Estadão

Mas, por outro lado, algumas ferramentas podem ajudar, como na produtividade, por exemplo.

Depende. A questão da produtividade é muito delicada, porque ela não é igual para todo ser humano. Cinco minutos do Albert Einstein concentrado valem por dezenas de anos da média humana. É sabido que em agrupamentos sociais humanos acima de 150 indivíduos, trabalhando com um objetivo comum, começa a ficar difícil saber o que está acontecendo. Por isso que empresas que crescem acima de um certo número de funcionários precisam ter certa hierarquia de supervisão. Mas o que eu digo é: não existe uma fórmula única para estimular a criatividade ou produtividade. Você não vai contentar gregos e troianos com um único algoritmo nem vai extrair o máximo da sua força de trabalho se usar a mesma fórmula.

É isso que falta aos executivos entender?

Liderança, na minha opinião, não é você gritar mais alto. A liderança é aquela que tem a sensibilidade de perceber quem trabalha para você e o que você quer extrair desse grupo como um todo e como você modula a sua forma de liderar. E isso não vai ser feito por um app digital. Os executivos são treinados com a ilusão de que vão controlar o processo 100%, mas pode esquecer.

O metaverso já é uma realidade nas empresas, para reuniões e processos seletivos. Como o senhor avalia esse movimento?

Tem coisas que são positivas, mas não nesses contextos. Você pode usar, por exemplo, para levar medicina para pessoas onde não existe um hospital. Todavia, eu acho que, daqui a dez anos, nós vamos fazer uma revisão do que ocorreu nesse período de entusiasmo. É igual a inteligência artificial, que não é inteligente nem artificial. A inteligência é uma propriedade dos organismos, não é reproduzível em software; e não é artificial porque é criada por nós, ela vem do suco de miolo do cara que fez, então ela é natural. Se você for ver a história da inteligência artificial desde os anos 50, ela tem períodos de grande entusiasmo e estou achando que o metaverso vai ser muito parecido.

Mas, por enquanto, é algo que está em alta.

Pior do que isso, qual vai ser o impacto em grande escala na nossa proficiência social se nós renunciarmos a isto aqui (indica a conversa que estamos tendo) que nós estamos fazendo? As crianças vão estudar na internet também; como vai ser o desenvolvimento cognitivo de crianças que não brincam, que não tem recreio, que não abraçam o coleguinha, a professora, não fazem festa de aniversário apagando velinha? As pessoas pensam que isso é irrelevante, mas isso faz parte do treinamento cognitivo de todo ser humano.

Quanto mais as empresas definem regras rígidas do comportamento digital, menos estimulam a inovação”

Miguel Nicolelis, neurocientista e professor emérito da Universidade Duke

No final das contas, tudo se baseia em não perder o contato social, certo?

Todas as atividades em grupo requerem que o cérebro dos indivíduos se sincronize. Quando você realiza uma atividade no metaverso, até onde eu saiba e ainda é muito cedo para dizer, ninguém sabe se você vai conseguir reproduzir do ponto de vista fisiológico o mesmo grau de sincronização. Do ponto de vista de feedback sensorial, ele é muito mais pobre do que o que nós temos capacidade de fazer. Isso é previsível: vamos chegar ao ponto das pessoas perderem a noção do que é o real e do que é o metaverso.

O que isso implica?

O problema de tudo é: quem ganha com isso? A quem isso beneficia? Quem ganha que todos nós sejamos viciados em telefones celulares? É quem usa os nossos dados gratuitamente para ganhar dinheiro. Somos quase 8 bilhões de pessoas no mundo e por volta de um terço da humanidade deve ter acesso a telefones celulares hoje, então imagina a riqueza desses dados comportamentais sendo adquiridos, gratuitamente, e usados comercialmente.

Temos visto inteligências artificiais medindo produtividade, bem-estar e saúde mental dos funcionários. Quão assertivo isso pode ser e quais cuidados tomar?

Eu tenho muito receio. Não é minha área de pesquisa, mas eu leio sobre sistemas inteligentes desde que eu era aluno da faculdade de medicina. Esses sistemas usam o passado para prever o futuro e você precisa de um banco de dados enorme. Isso é a grande crítica que eu tenho à dita inteligência artificial: ela está querendo nos condenar a viver o passado de novo e de novo, porque nunca vai ter nada novo. Você vai ter que acumular a experiência do passado para definir o que é o futuro e eu não quero viver esse futuro.

Mas algumas inteligências artificiais usam dados em tempo real para gerar insights.

De todas as experiências de medicina que eu vi até hoje, a vasta maioria tem furos. Os hospitais americanos começaram a falar recentemente em substituir o plantonista da triagem da emergência por sistema. Vai ser um desastre. O olhar clínico, nenhum computador vai ter, porque não é digital. Não interessa quão sofisticado o algoritmo seja, quão gigantesco o banco de dados seja, a lógica digital não permite estados intermediários, é sim ou não, e a medicina tem infinitos graus de cinza entre o preto e branco.

Então é o caso de usar essas tecnologias com parcimônia.

Concordo. Tenho amigos em Milão que desenvolveram um algoritmo para a covid em que pegaram cinco parâmetros e conseguiam dizer se a pessoa era candidata à UTI ou não. E funcionou e eles salvaram um monte de vidas. O problema é que nós temos o outro lado. O ganho tem de ser maior do que a perda e eu não acredito que essa análise de custo-benefício está sendo feita, porque a única variável que conta é o lucro.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.