Quem trabalha na Faria Lima também sofrerá com clima; especialista descreve impacto nas profissões


Mayara Floss, médica e integrante do Grupo Nacional de Saúde Planetária, avalia como a emergência climática deve afetar o mundo do trabalho; estudos mostram perda de produtividade

Por Jayanne Rodrigues
Foto: Pamela Tisott/Divulgação
Entrevista comMayara FlossMédica e integrante do Grupo de Saúde Planetária da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade

Entre os efeitos devastadores dos eventos climáticos extremos, pesquisas revelam que o aumento global da temperatura deve impactar diretamente a produtividade e o desempenho do ser humano. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), até 2030, o mundo deve perder cerca de 2% do total de horas trabalhadas por causa do estresse térmico. As pessoas mais afetadas são aquelas que fazem atividades ao ar livre.

No Brasil, a agricultura é o setor mais afetado em termos de horas de trabalho perdidas, conforme relatório do Lancet Countdown, da revista científica The Lancet, que monitora os impactos das mudanças climáticas na saúde.

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Não é apenas o calor extremo que interfere na execução do trabalho, diz Mayara Floss, médica e integrante Grupo de Saúde Planetária da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.

Em entrevista ao Estadão, Floss explica como as consequências das mudanças climáticas, a exemplo das chuvas intensas que atingem o Rio Grande do Sul nas últimas semanas, apresentam potencial iminente de comprometer a saúde mental e a locomoção de profissionais devido a inundações.

Os eventos climáticos extremos também são responsáveis por agravar doenças como a dengue. No Brasil, houve um aumento de quase 1000% nos casos de afastamento do trabalho pela doença no 1º trimestre do ano. As catástrofes ainda aceleram a predisposição de enfermidades cardiovasculares (infarto, AVC).

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“É de uma ignorância gigantesca as pessoas acreditarem que não vão ser afetadas porque trabalham em um escritório”, afirma a médica Mayra Floss, que prepara-se para lançar neste ano o livro “O Mundo Impossível”, uma série de contos distópicos em diferentes momentos e localidades do Brasil.

Confira trechos da entrevista:

Como as mudanças climáticas devem impactar o mundo do trabalho?

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É um problema complexo, não existe uma saída fácil. Vejo pessoas falando que é mais fácil cair um meteoro do que construir outras formas de viver.

Temos vivido com mais frequência ondas de calor. Quando surgem ondas de calor, acabamos tendo uma perda de pessoas trabalhando e uma perda de trabalho muito grande. Imagina se você está trabalhando em uma construção civil e está muito quente, não tem como sustentar o trabalho.

Se você trabalha na zona rural e está muito quente, também não consegue sustentar o trabalho. São alguns exemplos. Por isso, vemos pessoas sofrendo quando saem do ar condicionado, vão para o calor e voltam para o ar condicionado. Essas mudanças de temperatura em que o corpo tem que ficar se readaptando o tempo inteiro causam um enorme impacto.

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Agora a gente pensa o que está acontecendo no Rio Grande do Sul, quem vai conseguir trabalhar por lá? As pessoas estão sendo resgatadas, estão sem casas, dezenas de milhares em situação de refúgio climático, vamos ter inúmeros traumas e questões de saúde mental. Essas pessoas não vão conseguir virar uma chave e voltar imediatamente ao trabalho, não vai funcionar.

Barco navega por rua alagada após fortes chuvas em Canoas (RS). Foto: Carlos Macedo/AP

O setor do agro vai produzir menos neste ano no Rio Grande do Sul. Isso impacta não só o mundo do trabalho, mas também o quanto vamos pagar no arroz e feijão.

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Com as mudanças climáticas, também ficamos mais expostos a doenças, por exemplo, quando sobe 0,5ºC, o mosquito da dengue aumenta a capacidade vetorial, ou seja, transmite para mais pessoas, principalmente aquelas que trabalham ao ar livre. Isso gera um efeito cascata.

Os artistas também são muito afetados pelo aumento da temperatura porque costumam fazer shows em lugares abertos e quentes. Toda a equipe corre o risco de passar mal. Tivemos o caso da menina Ana Clara que morreu decorrente de exaustão térmica durante o show da Taylor Swift.

Ainda tem a ecoansiedade, conceito em que as pessoas ficam mais ansiosas, especialmente os jovens porque estão vendo o mundo se deteriorando. Além da solastalgia, que é uma saudade das coisas que não existem mais, como um ecossistema que desapareceu. No Rio Grande do Sul, as pessoas vão sofrer de uma falta do que era antes.

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Estamos falando de uma mudança que está provocando o planeta. Então, todos os aspectos vão influenciar o trabalho. Algumas pessoas um pouco mais, outras pessoas, menos, mas todo mundo será afetado de alguma forma.

Quais são as atividades mais vulneráveis?

Entre os trabalhadores mais afetados atualmente, estão os que atuam em áreas externas e expostas ao sol (construção civil, agricultura, turismo e oceanografia). Mas repito que é um problema muito complexo, todo mundo é afetado de alguma maneira. Seja porque a sua casa foi atingida durante uma enchente, seja porque você é um profissional de saúde e está tendo mais emergências.

Nós estamos vivenciando as mudanças climáticas. Uma outra perspectiva é a poluição do ar, que está relacionada com a emissão de dióxido de carbono na camada e associada com diabetes e doenças cardiovasculares (infarto, AVC). A OMS estima que 99% da população global respire um ar “tóxico” que não atende a qualidade de ar necessária.

O que é estresse térmico e quais são os efeitos no corpo?

Tem uma parte do nosso cérebro chamada hipotálamo, que regula a nossa temperatura corporal. O que acontece quando estamos vivendo uma onda de calor? Tiramos o casaco, tomamos uma água e vamos para um lugar mais fresco.

Quem não tem como ir para um lugar mais fresco, começa a suar, a tentar dar um jeito de baixar a temperatura corporal. Quando chega a um limite (isso varia um pouco de pessoa para pessoa), o hipotálamo entra em colapso.

Por isso, pode gerar convulsões, desmaios, coma e até levar à morte. Fala-se tão pouco de estresse térmico no País que os próprios profissionais de saúde não estão preparados.

Por exemplo, as pessoas vão a um show buscar ajuda porque estão passando mal, e os profissionais diagnosticam como ansiedade e não como estresse térmico.

É importante na área de construção civil ou da atividade no campo tentar mudar os horários de trabalho. Optar pelo período da noite, no final da tarde ou no começo da manhã antes de o Sol esquentar muito. São possibilidades para lidar com o estresse térmico, que nada mais é do que o colapso do nosso corpo.

Foto em São Paulo durante onda de calor.  Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Temos estudos que mostram que estamos perdendo muitas horas de trabalho. Economicamente pensando, estamos criando mais extremos climáticos, perdendo muitas horas de trabalho por calor e outros eventos.

Vale a pena essa conta? Não seria viável preservar mais, reconstruir as florestas, preservar mais as margens dos rios para manter as cidades mais frias e evitar fenômenos como alagamentos?

Só é perda, não é uma relação ganha-ganha. Talvez por um tempo, financeiramente para o capital valha a pena, mas a longo prazo, não. A longo prazo é o que acontece no Rio Grande do Sul.

Mayara Floss, médica e integrante do Grupo Nacional de Saúde Planetária

Já perdemos e vamos perder mais. Não é só o estresse por calor. Quando aumentamos a temperatura do planeta, tem mais instabilidade climática e doenças infectocontagiosas.

Além de tudo, o estresse por calor aumenta a taxa de suicídio. O hipotálamo está dentro da cabeça, e se a pessoa já tem alguma outra questão (hipertensão, diabetes ou doença renal) e está tomando remédios e fazendo o tratamento, o calor extremo desregula.

Então, com um trabalhador afastado, são dias de trabalho. É uma conta que precisamos olhar.

Embora as profissões mais afetadas sejam as que encaram maior exposição solar, quem está no escritório também está sujeito a sofrer com esses efeitos?

Quem trabalha na Faria Lima também mora nesse planeta. As pessoas com privilégios talvez consigam viver um pouco mais no planeta da forma em que está, mas não vamos construir um grande foguete mágico que vai nos levar para Marte.

O mosquito da dengue não escolhe se você tem pouco ou muito dinheiro. Claro, se você tem menos exposição solar, é uma pessoa sortuda. Vale lembrar que as pessoas em situação de vulnerabilidade são as maiores vítimas das mudanças climáticas.

Mas é de uma ignorância gigantesca as pessoas acreditarem que não vão ser afetadas porque trabalham em um escritório. Quem não vai ser afetado, por exemplo, nas enchentes do Rio Grande do Sul? Quem vê uma notícia e não é afetado?

Não é somente o calor extremo que vai mudar a forma como trabalhamos. O que mais pode acontecer no mundo do trabalho com os eventos climáticos extremos?

Vamos viver os extremos. Falei do Rio Grande do Sul, mas não podemos esquecer da Amazônia, que no passado teve uma das piores secas. As pessoas ficaram sem acesso à água porque não conseguiam mais se locomover porque parte do transporte é hidroviário.

Isso tudo está correlacionado. Vamos ter mais chuvas no Sul e mais seca na Amazônia. Não vai existir uma produção agrícola se continuar do jeito que está atualmente.

Não tem pesticida ou agrotóxico que vai dar conta disso. Vamos precisar repensar a forma como estamos habitando o planeta.

Tem algumas soluções: plantar culturas de baixa emissão de carbono, culturas que misturam árvores com plantas mais baixas que consigam dar uma qualidade de temperatura melhor.

Um exemplo: em Medellín (Colômbia), eles têm corredores de áreas verdes. Foi comprovado que em momentos de muito calor o local fica de 2ºC a 3ºC mais baixo que outras regiões da Colômbia. Devemos começar a pensar nessas estratégias.

Quais são as adaptações que as empresas devem incorporar para proteger os funcionários?

A sua empresa separa o lixo? Há uma política de redução e compostagem dos resíduos? Existe uma política para redução de plástico? A questão da alimentação dos funcionários pode ser feita baseada em uma agricultura mais local? É possível valorizar mais os feirantes locais?

Também é importante estar atento à relação com o estresse térmico, mesmo com funcionários em regime de home office. Essas pessoas estão em um lugar com temperatura adequada para que tenham condições de trabalhar?

Quem trabalha em construções expostas ao calor, muita atenção, porque esses trabalhadores estão mais vulneráveis. Podemos pensar em horários alternativos - sem tanta exposição solar - para trabalhar na construção e na agricultura?

São conversas que precisamos qualificar em relação à saúde mental e entender que estamos vivendo diversas crises. Enfrentamos pandemia e agora eventos climáticos extremos. Estamos olhando para quem está sendo afetado e como essas pessoas estão conseguindo levar a vida?

Mayara Floss, médica e integrante do Grupo Nacional de Saúde Planetária

Outra coisa é o quanto podemos usar o espaço do trabalho para conscientizar, falar sobre poluição do ar, doenças infectocontagiosas e para refletir sobre como estamos habitando o planeta para pensar em caminhos diferentes porque do jeito que está sendo não vai dar certo.

Não vamos trabalhar mais como antes, é impossível voltar a trabalhar do mesmo jeito após vivenciar uma catástrofe como no Rio Grande do Sul, como na Amazônia ou outras tragédias. É botar os pés no chão e pensar que só tem essa Terra comum. Se tiver oportunidade de aprender com isso, melhor.

Entre os efeitos devastadores dos eventos climáticos extremos, pesquisas revelam que o aumento global da temperatura deve impactar diretamente a produtividade e o desempenho do ser humano. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), até 2030, o mundo deve perder cerca de 2% do total de horas trabalhadas por causa do estresse térmico. As pessoas mais afetadas são aquelas que fazem atividades ao ar livre.

No Brasil, a agricultura é o setor mais afetado em termos de horas de trabalho perdidas, conforme relatório do Lancet Countdown, da revista científica The Lancet, que monitora os impactos das mudanças climáticas na saúde.

Não é apenas o calor extremo que interfere na execução do trabalho, diz Mayara Floss, médica e integrante Grupo de Saúde Planetária da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.

Em entrevista ao Estadão, Floss explica como as consequências das mudanças climáticas, a exemplo das chuvas intensas que atingem o Rio Grande do Sul nas últimas semanas, apresentam potencial iminente de comprometer a saúde mental e a locomoção de profissionais devido a inundações.

Os eventos climáticos extremos também são responsáveis por agravar doenças como a dengue. No Brasil, houve um aumento de quase 1000% nos casos de afastamento do trabalho pela doença no 1º trimestre do ano. As catástrofes ainda aceleram a predisposição de enfermidades cardiovasculares (infarto, AVC).

“É de uma ignorância gigantesca as pessoas acreditarem que não vão ser afetadas porque trabalham em um escritório”, afirma a médica Mayra Floss, que prepara-se para lançar neste ano o livro “O Mundo Impossível”, uma série de contos distópicos em diferentes momentos e localidades do Brasil.

Confira trechos da entrevista:

Como as mudanças climáticas devem impactar o mundo do trabalho?

É um problema complexo, não existe uma saída fácil. Vejo pessoas falando que é mais fácil cair um meteoro do que construir outras formas de viver.

Temos vivido com mais frequência ondas de calor. Quando surgem ondas de calor, acabamos tendo uma perda de pessoas trabalhando e uma perda de trabalho muito grande. Imagina se você está trabalhando em uma construção civil e está muito quente, não tem como sustentar o trabalho.

Se você trabalha na zona rural e está muito quente, também não consegue sustentar o trabalho. São alguns exemplos. Por isso, vemos pessoas sofrendo quando saem do ar condicionado, vão para o calor e voltam para o ar condicionado. Essas mudanças de temperatura em que o corpo tem que ficar se readaptando o tempo inteiro causam um enorme impacto.

Agora a gente pensa o que está acontecendo no Rio Grande do Sul, quem vai conseguir trabalhar por lá? As pessoas estão sendo resgatadas, estão sem casas, dezenas de milhares em situação de refúgio climático, vamos ter inúmeros traumas e questões de saúde mental. Essas pessoas não vão conseguir virar uma chave e voltar imediatamente ao trabalho, não vai funcionar.

Barco navega por rua alagada após fortes chuvas em Canoas (RS). Foto: Carlos Macedo/AP

O setor do agro vai produzir menos neste ano no Rio Grande do Sul. Isso impacta não só o mundo do trabalho, mas também o quanto vamos pagar no arroz e feijão.

Com as mudanças climáticas, também ficamos mais expostos a doenças, por exemplo, quando sobe 0,5ºC, o mosquito da dengue aumenta a capacidade vetorial, ou seja, transmite para mais pessoas, principalmente aquelas que trabalham ao ar livre. Isso gera um efeito cascata.

Os artistas também são muito afetados pelo aumento da temperatura porque costumam fazer shows em lugares abertos e quentes. Toda a equipe corre o risco de passar mal. Tivemos o caso da menina Ana Clara que morreu decorrente de exaustão térmica durante o show da Taylor Swift.

Ainda tem a ecoansiedade, conceito em que as pessoas ficam mais ansiosas, especialmente os jovens porque estão vendo o mundo se deteriorando. Além da solastalgia, que é uma saudade das coisas que não existem mais, como um ecossistema que desapareceu. No Rio Grande do Sul, as pessoas vão sofrer de uma falta do que era antes.

Estamos falando de uma mudança que está provocando o planeta. Então, todos os aspectos vão influenciar o trabalho. Algumas pessoas um pouco mais, outras pessoas, menos, mas todo mundo será afetado de alguma forma.

Quais são as atividades mais vulneráveis?

Entre os trabalhadores mais afetados atualmente, estão os que atuam em áreas externas e expostas ao sol (construção civil, agricultura, turismo e oceanografia). Mas repito que é um problema muito complexo, todo mundo é afetado de alguma maneira. Seja porque a sua casa foi atingida durante uma enchente, seja porque você é um profissional de saúde e está tendo mais emergências.

Nós estamos vivenciando as mudanças climáticas. Uma outra perspectiva é a poluição do ar, que está relacionada com a emissão de dióxido de carbono na camada e associada com diabetes e doenças cardiovasculares (infarto, AVC). A OMS estima que 99% da população global respire um ar “tóxico” que não atende a qualidade de ar necessária.

O que é estresse térmico e quais são os efeitos no corpo?

Tem uma parte do nosso cérebro chamada hipotálamo, que regula a nossa temperatura corporal. O que acontece quando estamos vivendo uma onda de calor? Tiramos o casaco, tomamos uma água e vamos para um lugar mais fresco.

Quem não tem como ir para um lugar mais fresco, começa a suar, a tentar dar um jeito de baixar a temperatura corporal. Quando chega a um limite (isso varia um pouco de pessoa para pessoa), o hipotálamo entra em colapso.

Por isso, pode gerar convulsões, desmaios, coma e até levar à morte. Fala-se tão pouco de estresse térmico no País que os próprios profissionais de saúde não estão preparados.

Por exemplo, as pessoas vão a um show buscar ajuda porque estão passando mal, e os profissionais diagnosticam como ansiedade e não como estresse térmico.

É importante na área de construção civil ou da atividade no campo tentar mudar os horários de trabalho. Optar pelo período da noite, no final da tarde ou no começo da manhã antes de o Sol esquentar muito. São possibilidades para lidar com o estresse térmico, que nada mais é do que o colapso do nosso corpo.

Foto em São Paulo durante onda de calor.  Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Temos estudos que mostram que estamos perdendo muitas horas de trabalho. Economicamente pensando, estamos criando mais extremos climáticos, perdendo muitas horas de trabalho por calor e outros eventos.

Vale a pena essa conta? Não seria viável preservar mais, reconstruir as florestas, preservar mais as margens dos rios para manter as cidades mais frias e evitar fenômenos como alagamentos?

Só é perda, não é uma relação ganha-ganha. Talvez por um tempo, financeiramente para o capital valha a pena, mas a longo prazo, não. A longo prazo é o que acontece no Rio Grande do Sul.

Mayara Floss, médica e integrante do Grupo Nacional de Saúde Planetária

Já perdemos e vamos perder mais. Não é só o estresse por calor. Quando aumentamos a temperatura do planeta, tem mais instabilidade climática e doenças infectocontagiosas.

Além de tudo, o estresse por calor aumenta a taxa de suicídio. O hipotálamo está dentro da cabeça, e se a pessoa já tem alguma outra questão (hipertensão, diabetes ou doença renal) e está tomando remédios e fazendo o tratamento, o calor extremo desregula.

Então, com um trabalhador afastado, são dias de trabalho. É uma conta que precisamos olhar.

Embora as profissões mais afetadas sejam as que encaram maior exposição solar, quem está no escritório também está sujeito a sofrer com esses efeitos?

Quem trabalha na Faria Lima também mora nesse planeta. As pessoas com privilégios talvez consigam viver um pouco mais no planeta da forma em que está, mas não vamos construir um grande foguete mágico que vai nos levar para Marte.

O mosquito da dengue não escolhe se você tem pouco ou muito dinheiro. Claro, se você tem menos exposição solar, é uma pessoa sortuda. Vale lembrar que as pessoas em situação de vulnerabilidade são as maiores vítimas das mudanças climáticas.

Mas é de uma ignorância gigantesca as pessoas acreditarem que não vão ser afetadas porque trabalham em um escritório. Quem não vai ser afetado, por exemplo, nas enchentes do Rio Grande do Sul? Quem vê uma notícia e não é afetado?

Não é somente o calor extremo que vai mudar a forma como trabalhamos. O que mais pode acontecer no mundo do trabalho com os eventos climáticos extremos?

Vamos viver os extremos. Falei do Rio Grande do Sul, mas não podemos esquecer da Amazônia, que no passado teve uma das piores secas. As pessoas ficaram sem acesso à água porque não conseguiam mais se locomover porque parte do transporte é hidroviário.

Isso tudo está correlacionado. Vamos ter mais chuvas no Sul e mais seca na Amazônia. Não vai existir uma produção agrícola se continuar do jeito que está atualmente.

Não tem pesticida ou agrotóxico que vai dar conta disso. Vamos precisar repensar a forma como estamos habitando o planeta.

Tem algumas soluções: plantar culturas de baixa emissão de carbono, culturas que misturam árvores com plantas mais baixas que consigam dar uma qualidade de temperatura melhor.

Um exemplo: em Medellín (Colômbia), eles têm corredores de áreas verdes. Foi comprovado que em momentos de muito calor o local fica de 2ºC a 3ºC mais baixo que outras regiões da Colômbia. Devemos começar a pensar nessas estratégias.

Quais são as adaptações que as empresas devem incorporar para proteger os funcionários?

A sua empresa separa o lixo? Há uma política de redução e compostagem dos resíduos? Existe uma política para redução de plástico? A questão da alimentação dos funcionários pode ser feita baseada em uma agricultura mais local? É possível valorizar mais os feirantes locais?

Também é importante estar atento à relação com o estresse térmico, mesmo com funcionários em regime de home office. Essas pessoas estão em um lugar com temperatura adequada para que tenham condições de trabalhar?

Quem trabalha em construções expostas ao calor, muita atenção, porque esses trabalhadores estão mais vulneráveis. Podemos pensar em horários alternativos - sem tanta exposição solar - para trabalhar na construção e na agricultura?

São conversas que precisamos qualificar em relação à saúde mental e entender que estamos vivendo diversas crises. Enfrentamos pandemia e agora eventos climáticos extremos. Estamos olhando para quem está sendo afetado e como essas pessoas estão conseguindo levar a vida?

Mayara Floss, médica e integrante do Grupo Nacional de Saúde Planetária

Outra coisa é o quanto podemos usar o espaço do trabalho para conscientizar, falar sobre poluição do ar, doenças infectocontagiosas e para refletir sobre como estamos habitando o planeta para pensar em caminhos diferentes porque do jeito que está sendo não vai dar certo.

Não vamos trabalhar mais como antes, é impossível voltar a trabalhar do mesmo jeito após vivenciar uma catástrofe como no Rio Grande do Sul, como na Amazônia ou outras tragédias. É botar os pés no chão e pensar que só tem essa Terra comum. Se tiver oportunidade de aprender com isso, melhor.

Entre os efeitos devastadores dos eventos climáticos extremos, pesquisas revelam que o aumento global da temperatura deve impactar diretamente a produtividade e o desempenho do ser humano. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), até 2030, o mundo deve perder cerca de 2% do total de horas trabalhadas por causa do estresse térmico. As pessoas mais afetadas são aquelas que fazem atividades ao ar livre.

No Brasil, a agricultura é o setor mais afetado em termos de horas de trabalho perdidas, conforme relatório do Lancet Countdown, da revista científica The Lancet, que monitora os impactos das mudanças climáticas na saúde.

Não é apenas o calor extremo que interfere na execução do trabalho, diz Mayara Floss, médica e integrante Grupo de Saúde Planetária da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.

Em entrevista ao Estadão, Floss explica como as consequências das mudanças climáticas, a exemplo das chuvas intensas que atingem o Rio Grande do Sul nas últimas semanas, apresentam potencial iminente de comprometer a saúde mental e a locomoção de profissionais devido a inundações.

Os eventos climáticos extremos também são responsáveis por agravar doenças como a dengue. No Brasil, houve um aumento de quase 1000% nos casos de afastamento do trabalho pela doença no 1º trimestre do ano. As catástrofes ainda aceleram a predisposição de enfermidades cardiovasculares (infarto, AVC).

“É de uma ignorância gigantesca as pessoas acreditarem que não vão ser afetadas porque trabalham em um escritório”, afirma a médica Mayra Floss, que prepara-se para lançar neste ano o livro “O Mundo Impossível”, uma série de contos distópicos em diferentes momentos e localidades do Brasil.

Confira trechos da entrevista:

Como as mudanças climáticas devem impactar o mundo do trabalho?

É um problema complexo, não existe uma saída fácil. Vejo pessoas falando que é mais fácil cair um meteoro do que construir outras formas de viver.

Temos vivido com mais frequência ondas de calor. Quando surgem ondas de calor, acabamos tendo uma perda de pessoas trabalhando e uma perda de trabalho muito grande. Imagina se você está trabalhando em uma construção civil e está muito quente, não tem como sustentar o trabalho.

Se você trabalha na zona rural e está muito quente, também não consegue sustentar o trabalho. São alguns exemplos. Por isso, vemos pessoas sofrendo quando saem do ar condicionado, vão para o calor e voltam para o ar condicionado. Essas mudanças de temperatura em que o corpo tem que ficar se readaptando o tempo inteiro causam um enorme impacto.

Agora a gente pensa o que está acontecendo no Rio Grande do Sul, quem vai conseguir trabalhar por lá? As pessoas estão sendo resgatadas, estão sem casas, dezenas de milhares em situação de refúgio climático, vamos ter inúmeros traumas e questões de saúde mental. Essas pessoas não vão conseguir virar uma chave e voltar imediatamente ao trabalho, não vai funcionar.

Barco navega por rua alagada após fortes chuvas em Canoas (RS). Foto: Carlos Macedo/AP

O setor do agro vai produzir menos neste ano no Rio Grande do Sul. Isso impacta não só o mundo do trabalho, mas também o quanto vamos pagar no arroz e feijão.

Com as mudanças climáticas, também ficamos mais expostos a doenças, por exemplo, quando sobe 0,5ºC, o mosquito da dengue aumenta a capacidade vetorial, ou seja, transmite para mais pessoas, principalmente aquelas que trabalham ao ar livre. Isso gera um efeito cascata.

Os artistas também são muito afetados pelo aumento da temperatura porque costumam fazer shows em lugares abertos e quentes. Toda a equipe corre o risco de passar mal. Tivemos o caso da menina Ana Clara que morreu decorrente de exaustão térmica durante o show da Taylor Swift.

Ainda tem a ecoansiedade, conceito em que as pessoas ficam mais ansiosas, especialmente os jovens porque estão vendo o mundo se deteriorando. Além da solastalgia, que é uma saudade das coisas que não existem mais, como um ecossistema que desapareceu. No Rio Grande do Sul, as pessoas vão sofrer de uma falta do que era antes.

Estamos falando de uma mudança que está provocando o planeta. Então, todos os aspectos vão influenciar o trabalho. Algumas pessoas um pouco mais, outras pessoas, menos, mas todo mundo será afetado de alguma forma.

Quais são as atividades mais vulneráveis?

Entre os trabalhadores mais afetados atualmente, estão os que atuam em áreas externas e expostas ao sol (construção civil, agricultura, turismo e oceanografia). Mas repito que é um problema muito complexo, todo mundo é afetado de alguma maneira. Seja porque a sua casa foi atingida durante uma enchente, seja porque você é um profissional de saúde e está tendo mais emergências.

Nós estamos vivenciando as mudanças climáticas. Uma outra perspectiva é a poluição do ar, que está relacionada com a emissão de dióxido de carbono na camada e associada com diabetes e doenças cardiovasculares (infarto, AVC). A OMS estima que 99% da população global respire um ar “tóxico” que não atende a qualidade de ar necessária.

O que é estresse térmico e quais são os efeitos no corpo?

Tem uma parte do nosso cérebro chamada hipotálamo, que regula a nossa temperatura corporal. O que acontece quando estamos vivendo uma onda de calor? Tiramos o casaco, tomamos uma água e vamos para um lugar mais fresco.

Quem não tem como ir para um lugar mais fresco, começa a suar, a tentar dar um jeito de baixar a temperatura corporal. Quando chega a um limite (isso varia um pouco de pessoa para pessoa), o hipotálamo entra em colapso.

Por isso, pode gerar convulsões, desmaios, coma e até levar à morte. Fala-se tão pouco de estresse térmico no País que os próprios profissionais de saúde não estão preparados.

Por exemplo, as pessoas vão a um show buscar ajuda porque estão passando mal, e os profissionais diagnosticam como ansiedade e não como estresse térmico.

É importante na área de construção civil ou da atividade no campo tentar mudar os horários de trabalho. Optar pelo período da noite, no final da tarde ou no começo da manhã antes de o Sol esquentar muito. São possibilidades para lidar com o estresse térmico, que nada mais é do que o colapso do nosso corpo.

Foto em São Paulo durante onda de calor.  Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Temos estudos que mostram que estamos perdendo muitas horas de trabalho. Economicamente pensando, estamos criando mais extremos climáticos, perdendo muitas horas de trabalho por calor e outros eventos.

Vale a pena essa conta? Não seria viável preservar mais, reconstruir as florestas, preservar mais as margens dos rios para manter as cidades mais frias e evitar fenômenos como alagamentos?

Só é perda, não é uma relação ganha-ganha. Talvez por um tempo, financeiramente para o capital valha a pena, mas a longo prazo, não. A longo prazo é o que acontece no Rio Grande do Sul.

Mayara Floss, médica e integrante do Grupo Nacional de Saúde Planetária

Já perdemos e vamos perder mais. Não é só o estresse por calor. Quando aumentamos a temperatura do planeta, tem mais instabilidade climática e doenças infectocontagiosas.

Além de tudo, o estresse por calor aumenta a taxa de suicídio. O hipotálamo está dentro da cabeça, e se a pessoa já tem alguma outra questão (hipertensão, diabetes ou doença renal) e está tomando remédios e fazendo o tratamento, o calor extremo desregula.

Então, com um trabalhador afastado, são dias de trabalho. É uma conta que precisamos olhar.

Embora as profissões mais afetadas sejam as que encaram maior exposição solar, quem está no escritório também está sujeito a sofrer com esses efeitos?

Quem trabalha na Faria Lima também mora nesse planeta. As pessoas com privilégios talvez consigam viver um pouco mais no planeta da forma em que está, mas não vamos construir um grande foguete mágico que vai nos levar para Marte.

O mosquito da dengue não escolhe se você tem pouco ou muito dinheiro. Claro, se você tem menos exposição solar, é uma pessoa sortuda. Vale lembrar que as pessoas em situação de vulnerabilidade são as maiores vítimas das mudanças climáticas.

Mas é de uma ignorância gigantesca as pessoas acreditarem que não vão ser afetadas porque trabalham em um escritório. Quem não vai ser afetado, por exemplo, nas enchentes do Rio Grande do Sul? Quem vê uma notícia e não é afetado?

Não é somente o calor extremo que vai mudar a forma como trabalhamos. O que mais pode acontecer no mundo do trabalho com os eventos climáticos extremos?

Vamos viver os extremos. Falei do Rio Grande do Sul, mas não podemos esquecer da Amazônia, que no passado teve uma das piores secas. As pessoas ficaram sem acesso à água porque não conseguiam mais se locomover porque parte do transporte é hidroviário.

Isso tudo está correlacionado. Vamos ter mais chuvas no Sul e mais seca na Amazônia. Não vai existir uma produção agrícola se continuar do jeito que está atualmente.

Não tem pesticida ou agrotóxico que vai dar conta disso. Vamos precisar repensar a forma como estamos habitando o planeta.

Tem algumas soluções: plantar culturas de baixa emissão de carbono, culturas que misturam árvores com plantas mais baixas que consigam dar uma qualidade de temperatura melhor.

Um exemplo: em Medellín (Colômbia), eles têm corredores de áreas verdes. Foi comprovado que em momentos de muito calor o local fica de 2ºC a 3ºC mais baixo que outras regiões da Colômbia. Devemos começar a pensar nessas estratégias.

Quais são as adaptações que as empresas devem incorporar para proteger os funcionários?

A sua empresa separa o lixo? Há uma política de redução e compostagem dos resíduos? Existe uma política para redução de plástico? A questão da alimentação dos funcionários pode ser feita baseada em uma agricultura mais local? É possível valorizar mais os feirantes locais?

Também é importante estar atento à relação com o estresse térmico, mesmo com funcionários em regime de home office. Essas pessoas estão em um lugar com temperatura adequada para que tenham condições de trabalhar?

Quem trabalha em construções expostas ao calor, muita atenção, porque esses trabalhadores estão mais vulneráveis. Podemos pensar em horários alternativos - sem tanta exposição solar - para trabalhar na construção e na agricultura?

São conversas que precisamos qualificar em relação à saúde mental e entender que estamos vivendo diversas crises. Enfrentamos pandemia e agora eventos climáticos extremos. Estamos olhando para quem está sendo afetado e como essas pessoas estão conseguindo levar a vida?

Mayara Floss, médica e integrante do Grupo Nacional de Saúde Planetária

Outra coisa é o quanto podemos usar o espaço do trabalho para conscientizar, falar sobre poluição do ar, doenças infectocontagiosas e para refletir sobre como estamos habitando o planeta para pensar em caminhos diferentes porque do jeito que está sendo não vai dar certo.

Não vamos trabalhar mais como antes, é impossível voltar a trabalhar do mesmo jeito após vivenciar uma catástrofe como no Rio Grande do Sul, como na Amazônia ou outras tragédias. É botar os pés no chão e pensar que só tem essa Terra comum. Se tiver oportunidade de aprender com isso, melhor.

Entrevista por Jayanne Rodrigues

Formada em jornalismo pela Universidade do Estado da Bahia, é repórter de Carreiras. Cobre futuro do trabalho, tendências no mundo corporativo, lideranças e outros assuntos que impactam diretamente a cultura de trabalho no Brasil. No Estadão, também atuou como plantonista da madrugada, cobriu judiciário e tem passagem pela home page do jornal.

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