PCD: pessoas com deficiências enfrentam ‘invisibilidade’ no mercado corporativo


Apesar da formação, profissionais encontram poucas oportunidades de trabalho compatíveis com seu conhecimento; empresas buscam virar o jogo olhando primeiro para competências e incentivando protagonismo na carreira

Por Bianca Zanatta

ESPECIAL PARA O ESTADÃO - A lei de cotas para pessoas com deficiência (PCD) já completou 31 anos, mas a inclusão produtiva dessas pessoas no mercado de trabalho ainda está longe de ser satisfatória no Brasil. Pesquisa da Noz Inteligência, com mais de 3,7 mil PCDs, mostra profissionais com formação superior continuam invisíveis para o mercado.

Do grupo de pessoas entrevistadas, 55% têm deficiência física ou mobilidade reduzida; 21%, deficiência visual; 21%, auditiva; 2%, intelectual ou mental; 1%, psicossocial; e 3%, Transtorno do Espectro Autista (TEA). Sobre a área de formação, 36% dos entrevistados afirmaram atuar na área e terem cargo compatível com sua especialização.

Outros 50% vivem uma situação diferente: 20% atuam na própria área, mas em cargo inferior à formação ou especialização, e 30% informaram que não atuam na área por falta de oportunidades no mercado. 14% não atuam na área de especialização, mas por escolha própria.

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Para a economista Juliana Vanin, fundadora da Noz Inteligência e coordenadora da pesquisa, os dados apontam para um cenário fortemente capacitista no mundo do trabalho. “No nosso estudo, trouxemos um recorte de pessoas bastante escolarizadas. Isso eliminou a ideia de que (o problema) seria apenas a falta de escolaridade das PCD”, diz.

A economista explica que a lei de cotas precisa ser revisada e trazer novas políticas para que exista uma evolução. “Funciona, mas quase sempre sem passar dos 50% de cumprimento. A lei tem gaps porque insere no mercado, mas não faz com que o profissional tenha as mesmas oportunidades que os outros e um plano de carreira”, aponta.

A dificuldade dessas pessoas começa na formação básica. Em 2019, baseado na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que cerca de 67,6% da população com deficiência não tinha instrução ou tinha o ensino fundamental incompleto - mais que o dobro do porcentual entre as pessoas sem nenhuma deficiência, que era de 30,9%. Quanto a ter nível superior completo, o índice era de 5% entre as PCD, contra 17% do restante.

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Mas o problema vai além. Mesmo quando têm formação superior, esses profissionais seguem invisibilizados por um mercado que não reconhece suas competências.

À frente da consultoria em diversidade e inclusão Newa, a jornalista e socióloga Carine Roos diz que a inclusão produtiva é muito importante para as empresas que realmente querem impulsionar a carreira das PCD, e não apenas cumprir uma meta. “Primeiro precisa ver o talento, a competência, a experiência dessa pessoa, e depois olhar a deficiência”, ela afirma, lembrando que o capacitismo ignora a bagagem e o conhecimento desses profissionais.

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“Outra coisa que acontece é a invisibilização dessas pessoas no ambiente de trabalho”, acrescenta ela. “Não há um plano de carreira estruturado para sua ascensão - fato que a gente também vê acontecer com outros grupos minorizados, como mulheres e pessoas negras. Falta capacitação de lideranças e colaboradores nesse sentido e criar mais políticas e processos internos para que efetivamente a equidade aconteça.”

A especialista enfatiza que a estratégia deve abranger desde políticas, práticas e processos mais inclusivos até o preparo do ambiente organizacional para que a pessoa tenha segurança psicológica. “Isso significa preparar as pessoas que vão receber esses talentos dentro da companhia. Pode ser feito por meio de sensibilizações, como palestras e workshops, e ações intencionais que façam essa pessoa se sentir pertencente dentro da organização”, indica.

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Além da cota

Com mais de 2 mil funcionários no Brasil, o Citi Brasil vem investindo parte do budget (orçamento) em talentos - e isso inclui o foco em profissionais que são também pessoas com deficiência, segundo Guilherme Mancin, responsável de RH do banco. Ele fala que no início do trabalho com cotas, as vagas eram muito operacionais, mas agora houve uma guinada na prática de contratação.

“Existem as vagas regulares marcadas para PCD, mas agora estamos trazendo essas pessoas também para atividades que requerem conhecimentos acadêmicos bastante específicos. As últimas três contratações foram para atuar em riscos e finanças”, exemplifica. “Para uma vaga de estatístico, entrevistamos 5 ou 6 profissionais extraordinários. Ainda não sobram talentos PCD no mercado, mas se você procura, acha.”

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O cadeirante e responsável pelo setor de diversidade e inclusão no Citi, Antonio Afonso, o responsável por recursos humanos no Citi, Guilherme Mancin, e a advogada Fernanda Ferraz Foto: Taba Benedicto/Estadão

Para a inclusão dessa diversidade física e intelectual, o executivo conta que a empresa investe na educação do time em três vertentes. A primeira é focada nos gestores, responsáveis pelo acolhimento dos funcionários; há também um treinamento global contra vieses inconscientes, além dos grupos de afinidade - são 6 ao todo, entre eles o de PCD -, responsáveis por dar feedbacks.

A ideia é fazer avanços tanto na infraestrutura adequada como no desenvolvimento e crescimento profissional dentro da organização, segundo ele. “Hoje temos 13 pessoas com deficiência em cargos de liderança, mas ainda é baixa a aplicação para outras vagas (que não sejam só para PCD). É algo que a gente precisa trabalhar, mas está melhorando. Porque as vagas são para todos, todos podem aplicar.”

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“Choque de carreira”

Outra iniciativa importante foi a mentoria com foco na evolução de carreira, de acordo com Mancin. “Começamos a contratar pessoas mais sênior, mas a questão era como avançar com os outros”, afirma. Surgiu então a ideia de convocar colaboradores com mais tempo de carreira para formar duplas, em uma espécie de “mentoria reversa falsa”.

Quem explica isso é o responsável por diversidade e inclusão Antonio Afonso, que é cadeirante há 24 anos e trabalha na empresa há mais de 7. “Enquanto o mentor dá uma espécie de choque de carreira, o mentorado fala como é ser uma pessoa com deficiência, na vida pessoal e profissional”, diz o executivo. “Tem dificuldades, mas o foco está no que a pessoa pode fazer, não no que ela não pode.”

Protagonismo na carreira

Formada em letras e direito, a advogada Fernanda Ferraz, de 40 anos, trabalha na área jurídica do banco e vai participar pela segunda vez da mentoria. Nascida sem o antebraço esquerdo, ela fala que foi criada com muita autonomia, mas no mercado de trabalho esbarrou em algumas resistências. Não se sentia à vontade para tocar no assunto da deficiência e tinha medo de se desafiar.

Quando entrou no Citi, ela conta que isso mudou. “Aqui tem um canal específico que dá voz ao funcionário. Eu sempre trabalhei em banco, mas entrei pela lei de cotas, comecei como escriturária”, relata. “Aqui já entrei como advogada, para fazer aquilo que estava preparada para fazer. Não fui contratada como PCD, mas como uma profissional que tem uma deficiência.”

Ela conta que a mentoria mudou sua percepção sobre a relação com a empresa. “Antes eu achava que o banco tinha de olhar para mim dentro do grupo de PCD. Minha mentora, que é líder da área de risco, me trouxe uma visão um pouco diferente disso”, explica a advogada. “Eu já tinha protagonismo, mas ficava esperando meu gestor adivinhar o que eu queria. Agora vou e falo. Fui promovida esse ano e não quero demorar tanto para alcançar os próximos steps (passos). Estou trabalhando no aperfeiçoamento do que preciso para isso”, conclui.

Apoio e representatividade

Para Renice Pombani, coordenadora executiva de pessoas do Insper, contar com consultorias especializadas para ter um programa real de desenvolvimento profissional das PCD se mostrou um caminho acertado. Hoje o instituto de educação executiva tem aproximadamente 30 profissionais pertencentes a esse grupo, entre encarregados, operacionais e docentes.

Um dos diferenciais do programa aconteceu mais recentemente, segundo ela, com um olhar direcionado também a pessoas com deficiência intelectual, em sua maioria do espectro autista. Esses profissionais ingressam na modalidade de aprendizes, com um espaço maior para respeitar a curva de aprendizagem, para então serem direcionados a diferentes oportunidades na escola.

“São casos que exigem um cuidado maior, principalmente com relação ao preparo do gestor”, explica a coordenadora, pontuando que o Insper também elege um tutor para orientar e acompanhar o profissional em atividades que podem inicialmente representar desafios - do funcionamento das ferramentas e programas usados no dia a dia do trabalho a questões que exigem mais autonomia, como ir ao restaurante e utilizar o VR.

“Tem crescido também o número de alunos que precisam dos mesmos recursos e acessibilidade. É muito importante termos essa representatividade”, ela afirma. “Um desses colaboradores trabalha na biblioteca, orientando os alunos na busca de livros. Recebemos um e-mail de um deles contando que tem uma irmã com TEA e que foi graças a esse profissional que ele percebeu que a irmã também pode se desenvolver profissionalmente.”

ESPECIAL PARA O ESTADÃO - A lei de cotas para pessoas com deficiência (PCD) já completou 31 anos, mas a inclusão produtiva dessas pessoas no mercado de trabalho ainda está longe de ser satisfatória no Brasil. Pesquisa da Noz Inteligência, com mais de 3,7 mil PCDs, mostra profissionais com formação superior continuam invisíveis para o mercado.

Do grupo de pessoas entrevistadas, 55% têm deficiência física ou mobilidade reduzida; 21%, deficiência visual; 21%, auditiva; 2%, intelectual ou mental; 1%, psicossocial; e 3%, Transtorno do Espectro Autista (TEA). Sobre a área de formação, 36% dos entrevistados afirmaram atuar na área e terem cargo compatível com sua especialização.

Outros 50% vivem uma situação diferente: 20% atuam na própria área, mas em cargo inferior à formação ou especialização, e 30% informaram que não atuam na área por falta de oportunidades no mercado. 14% não atuam na área de especialização, mas por escolha própria.

Para a economista Juliana Vanin, fundadora da Noz Inteligência e coordenadora da pesquisa, os dados apontam para um cenário fortemente capacitista no mundo do trabalho. “No nosso estudo, trouxemos um recorte de pessoas bastante escolarizadas. Isso eliminou a ideia de que (o problema) seria apenas a falta de escolaridade das PCD”, diz.

A economista explica que a lei de cotas precisa ser revisada e trazer novas políticas para que exista uma evolução. “Funciona, mas quase sempre sem passar dos 50% de cumprimento. A lei tem gaps porque insere no mercado, mas não faz com que o profissional tenha as mesmas oportunidades que os outros e um plano de carreira”, aponta.

A dificuldade dessas pessoas começa na formação básica. Em 2019, baseado na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que cerca de 67,6% da população com deficiência não tinha instrução ou tinha o ensino fundamental incompleto - mais que o dobro do porcentual entre as pessoas sem nenhuma deficiência, que era de 30,9%. Quanto a ter nível superior completo, o índice era de 5% entre as PCD, contra 17% do restante.

Mas o problema vai além. Mesmo quando têm formação superior, esses profissionais seguem invisibilizados por um mercado que não reconhece suas competências.

À frente da consultoria em diversidade e inclusão Newa, a jornalista e socióloga Carine Roos diz que a inclusão produtiva é muito importante para as empresas que realmente querem impulsionar a carreira das PCD, e não apenas cumprir uma meta. “Primeiro precisa ver o talento, a competência, a experiência dessa pessoa, e depois olhar a deficiência”, ela afirma, lembrando que o capacitismo ignora a bagagem e o conhecimento desses profissionais.

“Outra coisa que acontece é a invisibilização dessas pessoas no ambiente de trabalho”, acrescenta ela. “Não há um plano de carreira estruturado para sua ascensão - fato que a gente também vê acontecer com outros grupos minorizados, como mulheres e pessoas negras. Falta capacitação de lideranças e colaboradores nesse sentido e criar mais políticas e processos internos para que efetivamente a equidade aconteça.”

A especialista enfatiza que a estratégia deve abranger desde políticas, práticas e processos mais inclusivos até o preparo do ambiente organizacional para que a pessoa tenha segurança psicológica. “Isso significa preparar as pessoas que vão receber esses talentos dentro da companhia. Pode ser feito por meio de sensibilizações, como palestras e workshops, e ações intencionais que façam essa pessoa se sentir pertencente dentro da organização”, indica.

Além da cota

Com mais de 2 mil funcionários no Brasil, o Citi Brasil vem investindo parte do budget (orçamento) em talentos - e isso inclui o foco em profissionais que são também pessoas com deficiência, segundo Guilherme Mancin, responsável de RH do banco. Ele fala que no início do trabalho com cotas, as vagas eram muito operacionais, mas agora houve uma guinada na prática de contratação.

“Existem as vagas regulares marcadas para PCD, mas agora estamos trazendo essas pessoas também para atividades que requerem conhecimentos acadêmicos bastante específicos. As últimas três contratações foram para atuar em riscos e finanças”, exemplifica. “Para uma vaga de estatístico, entrevistamos 5 ou 6 profissionais extraordinários. Ainda não sobram talentos PCD no mercado, mas se você procura, acha.”

O cadeirante e responsável pelo setor de diversidade e inclusão no Citi, Antonio Afonso, o responsável por recursos humanos no Citi, Guilherme Mancin, e a advogada Fernanda Ferraz Foto: Taba Benedicto/Estadão

Para a inclusão dessa diversidade física e intelectual, o executivo conta que a empresa investe na educação do time em três vertentes. A primeira é focada nos gestores, responsáveis pelo acolhimento dos funcionários; há também um treinamento global contra vieses inconscientes, além dos grupos de afinidade - são 6 ao todo, entre eles o de PCD -, responsáveis por dar feedbacks.

A ideia é fazer avanços tanto na infraestrutura adequada como no desenvolvimento e crescimento profissional dentro da organização, segundo ele. “Hoje temos 13 pessoas com deficiência em cargos de liderança, mas ainda é baixa a aplicação para outras vagas (que não sejam só para PCD). É algo que a gente precisa trabalhar, mas está melhorando. Porque as vagas são para todos, todos podem aplicar.”

“Choque de carreira”

Outra iniciativa importante foi a mentoria com foco na evolução de carreira, de acordo com Mancin. “Começamos a contratar pessoas mais sênior, mas a questão era como avançar com os outros”, afirma. Surgiu então a ideia de convocar colaboradores com mais tempo de carreira para formar duplas, em uma espécie de “mentoria reversa falsa”.

Quem explica isso é o responsável por diversidade e inclusão Antonio Afonso, que é cadeirante há 24 anos e trabalha na empresa há mais de 7. “Enquanto o mentor dá uma espécie de choque de carreira, o mentorado fala como é ser uma pessoa com deficiência, na vida pessoal e profissional”, diz o executivo. “Tem dificuldades, mas o foco está no que a pessoa pode fazer, não no que ela não pode.”

Protagonismo na carreira

Formada em letras e direito, a advogada Fernanda Ferraz, de 40 anos, trabalha na área jurídica do banco e vai participar pela segunda vez da mentoria. Nascida sem o antebraço esquerdo, ela fala que foi criada com muita autonomia, mas no mercado de trabalho esbarrou em algumas resistências. Não se sentia à vontade para tocar no assunto da deficiência e tinha medo de se desafiar.

Quando entrou no Citi, ela conta que isso mudou. “Aqui tem um canal específico que dá voz ao funcionário. Eu sempre trabalhei em banco, mas entrei pela lei de cotas, comecei como escriturária”, relata. “Aqui já entrei como advogada, para fazer aquilo que estava preparada para fazer. Não fui contratada como PCD, mas como uma profissional que tem uma deficiência.”

Ela conta que a mentoria mudou sua percepção sobre a relação com a empresa. “Antes eu achava que o banco tinha de olhar para mim dentro do grupo de PCD. Minha mentora, que é líder da área de risco, me trouxe uma visão um pouco diferente disso”, explica a advogada. “Eu já tinha protagonismo, mas ficava esperando meu gestor adivinhar o que eu queria. Agora vou e falo. Fui promovida esse ano e não quero demorar tanto para alcançar os próximos steps (passos). Estou trabalhando no aperfeiçoamento do que preciso para isso”, conclui.

Apoio e representatividade

Para Renice Pombani, coordenadora executiva de pessoas do Insper, contar com consultorias especializadas para ter um programa real de desenvolvimento profissional das PCD se mostrou um caminho acertado. Hoje o instituto de educação executiva tem aproximadamente 30 profissionais pertencentes a esse grupo, entre encarregados, operacionais e docentes.

Um dos diferenciais do programa aconteceu mais recentemente, segundo ela, com um olhar direcionado também a pessoas com deficiência intelectual, em sua maioria do espectro autista. Esses profissionais ingressam na modalidade de aprendizes, com um espaço maior para respeitar a curva de aprendizagem, para então serem direcionados a diferentes oportunidades na escola.

“São casos que exigem um cuidado maior, principalmente com relação ao preparo do gestor”, explica a coordenadora, pontuando que o Insper também elege um tutor para orientar e acompanhar o profissional em atividades que podem inicialmente representar desafios - do funcionamento das ferramentas e programas usados no dia a dia do trabalho a questões que exigem mais autonomia, como ir ao restaurante e utilizar o VR.

“Tem crescido também o número de alunos que precisam dos mesmos recursos e acessibilidade. É muito importante termos essa representatividade”, ela afirma. “Um desses colaboradores trabalha na biblioteca, orientando os alunos na busca de livros. Recebemos um e-mail de um deles contando que tem uma irmã com TEA e que foi graças a esse profissional que ele percebeu que a irmã também pode se desenvolver profissionalmente.”

ESPECIAL PARA O ESTADÃO - A lei de cotas para pessoas com deficiência (PCD) já completou 31 anos, mas a inclusão produtiva dessas pessoas no mercado de trabalho ainda está longe de ser satisfatória no Brasil. Pesquisa da Noz Inteligência, com mais de 3,7 mil PCDs, mostra profissionais com formação superior continuam invisíveis para o mercado.

Do grupo de pessoas entrevistadas, 55% têm deficiência física ou mobilidade reduzida; 21%, deficiência visual; 21%, auditiva; 2%, intelectual ou mental; 1%, psicossocial; e 3%, Transtorno do Espectro Autista (TEA). Sobre a área de formação, 36% dos entrevistados afirmaram atuar na área e terem cargo compatível com sua especialização.

Outros 50% vivem uma situação diferente: 20% atuam na própria área, mas em cargo inferior à formação ou especialização, e 30% informaram que não atuam na área por falta de oportunidades no mercado. 14% não atuam na área de especialização, mas por escolha própria.

Para a economista Juliana Vanin, fundadora da Noz Inteligência e coordenadora da pesquisa, os dados apontam para um cenário fortemente capacitista no mundo do trabalho. “No nosso estudo, trouxemos um recorte de pessoas bastante escolarizadas. Isso eliminou a ideia de que (o problema) seria apenas a falta de escolaridade das PCD”, diz.

A economista explica que a lei de cotas precisa ser revisada e trazer novas políticas para que exista uma evolução. “Funciona, mas quase sempre sem passar dos 50% de cumprimento. A lei tem gaps porque insere no mercado, mas não faz com que o profissional tenha as mesmas oportunidades que os outros e um plano de carreira”, aponta.

A dificuldade dessas pessoas começa na formação básica. Em 2019, baseado na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontou que cerca de 67,6% da população com deficiência não tinha instrução ou tinha o ensino fundamental incompleto - mais que o dobro do porcentual entre as pessoas sem nenhuma deficiência, que era de 30,9%. Quanto a ter nível superior completo, o índice era de 5% entre as PCD, contra 17% do restante.

Mas o problema vai além. Mesmo quando têm formação superior, esses profissionais seguem invisibilizados por um mercado que não reconhece suas competências.

À frente da consultoria em diversidade e inclusão Newa, a jornalista e socióloga Carine Roos diz que a inclusão produtiva é muito importante para as empresas que realmente querem impulsionar a carreira das PCD, e não apenas cumprir uma meta. “Primeiro precisa ver o talento, a competência, a experiência dessa pessoa, e depois olhar a deficiência”, ela afirma, lembrando que o capacitismo ignora a bagagem e o conhecimento desses profissionais.

“Outra coisa que acontece é a invisibilização dessas pessoas no ambiente de trabalho”, acrescenta ela. “Não há um plano de carreira estruturado para sua ascensão - fato que a gente também vê acontecer com outros grupos minorizados, como mulheres e pessoas negras. Falta capacitação de lideranças e colaboradores nesse sentido e criar mais políticas e processos internos para que efetivamente a equidade aconteça.”

A especialista enfatiza que a estratégia deve abranger desde políticas, práticas e processos mais inclusivos até o preparo do ambiente organizacional para que a pessoa tenha segurança psicológica. “Isso significa preparar as pessoas que vão receber esses talentos dentro da companhia. Pode ser feito por meio de sensibilizações, como palestras e workshops, e ações intencionais que façam essa pessoa se sentir pertencente dentro da organização”, indica.

Além da cota

Com mais de 2 mil funcionários no Brasil, o Citi Brasil vem investindo parte do budget (orçamento) em talentos - e isso inclui o foco em profissionais que são também pessoas com deficiência, segundo Guilherme Mancin, responsável de RH do banco. Ele fala que no início do trabalho com cotas, as vagas eram muito operacionais, mas agora houve uma guinada na prática de contratação.

“Existem as vagas regulares marcadas para PCD, mas agora estamos trazendo essas pessoas também para atividades que requerem conhecimentos acadêmicos bastante específicos. As últimas três contratações foram para atuar em riscos e finanças”, exemplifica. “Para uma vaga de estatístico, entrevistamos 5 ou 6 profissionais extraordinários. Ainda não sobram talentos PCD no mercado, mas se você procura, acha.”

O cadeirante e responsável pelo setor de diversidade e inclusão no Citi, Antonio Afonso, o responsável por recursos humanos no Citi, Guilherme Mancin, e a advogada Fernanda Ferraz Foto: Taba Benedicto/Estadão

Para a inclusão dessa diversidade física e intelectual, o executivo conta que a empresa investe na educação do time em três vertentes. A primeira é focada nos gestores, responsáveis pelo acolhimento dos funcionários; há também um treinamento global contra vieses inconscientes, além dos grupos de afinidade - são 6 ao todo, entre eles o de PCD -, responsáveis por dar feedbacks.

A ideia é fazer avanços tanto na infraestrutura adequada como no desenvolvimento e crescimento profissional dentro da organização, segundo ele. “Hoje temos 13 pessoas com deficiência em cargos de liderança, mas ainda é baixa a aplicação para outras vagas (que não sejam só para PCD). É algo que a gente precisa trabalhar, mas está melhorando. Porque as vagas são para todos, todos podem aplicar.”

“Choque de carreira”

Outra iniciativa importante foi a mentoria com foco na evolução de carreira, de acordo com Mancin. “Começamos a contratar pessoas mais sênior, mas a questão era como avançar com os outros”, afirma. Surgiu então a ideia de convocar colaboradores com mais tempo de carreira para formar duplas, em uma espécie de “mentoria reversa falsa”.

Quem explica isso é o responsável por diversidade e inclusão Antonio Afonso, que é cadeirante há 24 anos e trabalha na empresa há mais de 7. “Enquanto o mentor dá uma espécie de choque de carreira, o mentorado fala como é ser uma pessoa com deficiência, na vida pessoal e profissional”, diz o executivo. “Tem dificuldades, mas o foco está no que a pessoa pode fazer, não no que ela não pode.”

Protagonismo na carreira

Formada em letras e direito, a advogada Fernanda Ferraz, de 40 anos, trabalha na área jurídica do banco e vai participar pela segunda vez da mentoria. Nascida sem o antebraço esquerdo, ela fala que foi criada com muita autonomia, mas no mercado de trabalho esbarrou em algumas resistências. Não se sentia à vontade para tocar no assunto da deficiência e tinha medo de se desafiar.

Quando entrou no Citi, ela conta que isso mudou. “Aqui tem um canal específico que dá voz ao funcionário. Eu sempre trabalhei em banco, mas entrei pela lei de cotas, comecei como escriturária”, relata. “Aqui já entrei como advogada, para fazer aquilo que estava preparada para fazer. Não fui contratada como PCD, mas como uma profissional que tem uma deficiência.”

Ela conta que a mentoria mudou sua percepção sobre a relação com a empresa. “Antes eu achava que o banco tinha de olhar para mim dentro do grupo de PCD. Minha mentora, que é líder da área de risco, me trouxe uma visão um pouco diferente disso”, explica a advogada. “Eu já tinha protagonismo, mas ficava esperando meu gestor adivinhar o que eu queria. Agora vou e falo. Fui promovida esse ano e não quero demorar tanto para alcançar os próximos steps (passos). Estou trabalhando no aperfeiçoamento do que preciso para isso”, conclui.

Apoio e representatividade

Para Renice Pombani, coordenadora executiva de pessoas do Insper, contar com consultorias especializadas para ter um programa real de desenvolvimento profissional das PCD se mostrou um caminho acertado. Hoje o instituto de educação executiva tem aproximadamente 30 profissionais pertencentes a esse grupo, entre encarregados, operacionais e docentes.

Um dos diferenciais do programa aconteceu mais recentemente, segundo ela, com um olhar direcionado também a pessoas com deficiência intelectual, em sua maioria do espectro autista. Esses profissionais ingressam na modalidade de aprendizes, com um espaço maior para respeitar a curva de aprendizagem, para então serem direcionados a diferentes oportunidades na escola.

“São casos que exigem um cuidado maior, principalmente com relação ao preparo do gestor”, explica a coordenadora, pontuando que o Insper também elege um tutor para orientar e acompanhar o profissional em atividades que podem inicialmente representar desafios - do funcionamento das ferramentas e programas usados no dia a dia do trabalho a questões que exigem mais autonomia, como ir ao restaurante e utilizar o VR.

“Tem crescido também o número de alunos que precisam dos mesmos recursos e acessibilidade. É muito importante termos essa representatividade”, ela afirma. “Um desses colaboradores trabalha na biblioteca, orientando os alunos na busca de livros. Recebemos um e-mail de um deles contando que tem uma irmã com TEA e que foi graças a esse profissional que ele percebeu que a irmã também pode se desenvolver profissionalmente.”

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