'Não adianta sexta-feira livre se sobrecarga adoece', diz especialista em felicidade


Com base na ciência, pesquisadora Carla Furtado lança livro em que explora paradigmas da felicidade no trabalho, conectado com saúde mental, produtividade e bem-estar

Por Ludimila Honorato

“Nunca foi sobre duas pessoas, a que trabalha e a que vive, hoje menos ainda. Tempo laboral é tempo de vida, seja bem vivido ou não. Vida nunca teve banco de horas.” Essa é uma das diversas frases de impacto que a pesquisadora Carla Furtado traz em seu livro Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da Complexidade, lançado no último mês (Actual, 120 págs.).

Na obra, a mestre e doutoranda em psicologia apresenta embasamentos teórico-científicos para abordar a felicidade, com menção à neurociência, à psicologia positiva e a pensadores como Sócrates, Platão e o filósofo Byung-Chul Han, autor de A Sociedade do Cansaço. Esse caminho científico, segundo ela, poderia melhor orientar as empresas na construção de uma cultura que valoriza o trabalhador em todas as suas vivências, inclusive fora do trabalho.

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Assim, Carla mostra um novo paradigma: não mais falar de felicidade no trabalho, mas da felicidade de quem trabalha. “O bem-estar de quem trabalha é estratégico, indispensável para a sustentabilidade das organizações. Precisa integrar a pauta das reuniões de board, estar no escopo da gestão de riscos, produzir indicadores consistentes para uma tomada de decisão responsável”, ela escreve.

'Para o indivíduo, existe a autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz', diz a pesquisadora Carla Furtado. Foto: J.P.Telles

Para os funcionários, a reflexão é no sentido de entender que o trabalho deve ser apenas uma das fontes de prazer e realização, não a principal. Além disso, compreender que felicidade não é sobre ter sucesso nem uma construção solitária, mas uma dimensão social afetada por fatores externos.

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Em entrevista ao Estadão, Carla Furtado falou mais sobre os aspectos que envolvem a felicidade no trabalho, de quem trabalha e como empresas e trabalhadores podem adotar novas percepções para uma vida feliz.

Como você avalia que a felicidade é encarada nas organizações atualmente?

A gente vê muitas iniciativas e discursos em torno dessa temática e, de maneira geral, estamos dando os primeiros passos ainda. Acho que a gente tem tocado a ponta do iceberg e, de certa forma, uma das críticas que faço a partir da ciência é que muitas vezes essas conversas ficam centradas na questão do autocuidado. A organização vai oferecer um menu de serviços de autocuidado e não vai levar em consideração o que é mais importante, que é cultura e liderança. Oferecer meditação é ótimo, a gente sabe que tem resultados avaliados na ciência, mas isso não faz com que tenha um ambiente de verdade positivo ou saudável.

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Você traz embasamento teórico-científico sobre felicidade e felicidade no trabalho. É nisso que as empresas têm de se basear? Elas estão próximas disso ou não?

É importante, é um conhecimento que está bastante disseminado, tem gente em RH informado sobre isso. A gente precisa se direcionar pela ciência, senão não vai ter resultado. Isso pode ser o que muita gente acredita como uma onda que vai passar, e pode ser que aconteça, mas só tem um jeito, que é o que a ciência mostra. E você não tem só os estudos que ficam na universidade, isso é aplicado, tem estudos acadêmicos de psicologia positiva organizacional.

O grande caminho a ser feito é pela aproximação entre a academia e o meio corporativo. E se a gente está falando de respaldo científico, não é algo que faço de um dia para o outro ou de forma isolada. Para observar resultado consistente em bem-estar, felicidade e saúde mental, tem de instituir esforço de longo prazo, o cuidado tem de ser inserido no escopo estratégico da empresa, entrar e não sair mais.

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Na primeira parte do livro, você fala sobre a felicidade neoliberal, entendida como um percurso individual e desconectado do mundo. Por que parece difícil entender que a felicidade não depende só de nós?

Porque a gente está mergulhado num caldo social e em algumas questões que são ideológicas, então vão falar de produtividade, gestão da marca pessoal, imagem, produção de conteúdo, meritocracia, colocando nas mãos do indivíduo o sucesso da carreira dele. Tudo isso é uma narrativa que atravessa a sociedade. Os sociólogos, filósofos franceses vão dizer que o neoliberalismo é uma racionalidade, a razão de como funcionamos, da competitividade, do “trabalhe enquanto eles dormem”, que muitas vezes a gente adere sem se dar conta.

Somos uma espécie social e, se olhar para o fundamento neurofisiológico, nós funcionamos melhor como espécie em relações, mas estamos comprando a ideia de que depende só de mim, então trabalho mais, estudo mais e chego lá. Acontece que quanto mais exausto, mais infeliz. E tem depressão, transtorno de ansiedade, burnout, uma escalada de transtornos mentais acontecendo. Estamos adoecendo e dificilmente estaremos mais felizes. Essa racionalidade que faz se dedicar mais é muito interessante para o sistema vigente, em que vemos colegas como concorrentes.

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Empresas e até funcionários podem confundir a felicidade no trabalho com outras questões. Quais são as armadilhas da felicidade no trabalho?

Para a empresa, tem de entender que não tem duas pessoas, a que trabalha e a que vive. O paradigma que precisa ser atualizado é de felicidade no trabalho, como se pudesse cuidar dentro da empresa e esquecer fatores externos. O convite é que as organizações precisam pensar na felicidade de quem trabalha, pensar nas necessidades fora do trabalho.

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Para o indivíduo, existe algo chamado autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz. A empresa deve trabalhar nas condições do ambiente. A felicidade passa por ter emprego, vida decente, dignidade e deliberação pessoal. Um registro que temos das organizações é oferecer assistência psicológica e uma série de serviços que o colaborador não usa. Então, existe a questão de você assumir a sua responsabilidade dentro da sua relação com o trabalho e não depositar todas as expectativas de uma vida significativa no trabalho.

A gente sempre chama atenção de que é preciso entender as oscilações do trabalho, que envolvem prazer e sofrimento, estresse, prazo, refazer. Isso causa mal-estar, mas é passageiro, são oscilações naturais da vida, pois não existe satisfação linear no trabalho. Mas fora do trabalho, tem de encontrar espaços de satisfação, seja nas conexões, nos hobbies. Mas a maior responsabilidade nessa relação entre funcionário e empresa é da empresa, por causa da sua relação de poder.

Livro de Carla Furtado fala sobre felicidade e trabalho à luz da ciência, com menção à psicologia positiva, neurociência, sociólogos e filósofos que estudam o tema. Foto: J.P. Telles

Tanto que, com a inclusão da síndrome de burnout no rol de doenças ocupacionais, aumentou a responsabilidade das empresas.

Isso está no ambiente da saúde mental, nem é sobre felicidade apenas. Não adianta ter ações de promoção de felicidade quando tem sobrecarga de trabalho que adoece. Não adianta sexta-feira livre, dia do aniversário livre se, quando voltar ao trabalho, estiver imerso em situação que pode adoecer. Sobrecarga é o principal fator para adoecer, porque tem falta de reconhecimento e leva à perda percepção de controle da própria vida. Tem de perceber a dificuldade e dizer que está demais, que não está conseguindo, saber negociar.

No livro, você diz que as empresas teriam de decidir se vão atuar com a felicidade no trabalho ou felicidade de quem trabalha e construir um plano estratégico. O que é mais desafiador nesse processo?

Todos têm certo desafio. A coisa simples é definir o que vão trabalhar: uma coisa é saúde mental, outra é bem-estar e outra é felicidade. Tem intersecção entre elas, mas não pode falar de saúde mental com psicologia positiva de gratidão. É importante ter clareza com o que vai trabalhar, entender que o mais importante nesse processo é o diagnóstico preciso.

Tem de aplicar instrumentos com validade científica, não com esquetes sem rigoroso processo de validação. Há muitos instrumentos e a empresa tem de entender orçamento, qual caminho seguir, fazer com responsabilidade e sem pressa, sem excesso. A gente vê confete em torno das iniciativas de felicidade, mas quando começa não é tão simples quanto parece, porque vai se deparar com sofrimento, pensamentos distintos na própria diretoria, vai e volta do processo.

O que tenho visto de mais consistente são organizações fazendo sem pressa, que usam consultoria, têm formação externa, instituto de pesquisa e, internamente, sabem o que estão fazendo, sem alarde, passo a passo, de forma que consegue sustentar. Todo processo leva tempo, mas quando é legítimo, traz resultados mais rápidos.

Serviço

Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da ComplexidadeAutora: Carla FurtadoEditora: Almedina, Selo ActualPáginas: 120

“Nunca foi sobre duas pessoas, a que trabalha e a que vive, hoje menos ainda. Tempo laboral é tempo de vida, seja bem vivido ou não. Vida nunca teve banco de horas.” Essa é uma das diversas frases de impacto que a pesquisadora Carla Furtado traz em seu livro Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da Complexidade, lançado no último mês (Actual, 120 págs.).

Na obra, a mestre e doutoranda em psicologia apresenta embasamentos teórico-científicos para abordar a felicidade, com menção à neurociência, à psicologia positiva e a pensadores como Sócrates, Platão e o filósofo Byung-Chul Han, autor de A Sociedade do Cansaço. Esse caminho científico, segundo ela, poderia melhor orientar as empresas na construção de uma cultura que valoriza o trabalhador em todas as suas vivências, inclusive fora do trabalho.

Assim, Carla mostra um novo paradigma: não mais falar de felicidade no trabalho, mas da felicidade de quem trabalha. “O bem-estar de quem trabalha é estratégico, indispensável para a sustentabilidade das organizações. Precisa integrar a pauta das reuniões de board, estar no escopo da gestão de riscos, produzir indicadores consistentes para uma tomada de decisão responsável”, ela escreve.

'Para o indivíduo, existe a autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz', diz a pesquisadora Carla Furtado. Foto: J.P.Telles

Para os funcionários, a reflexão é no sentido de entender que o trabalho deve ser apenas uma das fontes de prazer e realização, não a principal. Além disso, compreender que felicidade não é sobre ter sucesso nem uma construção solitária, mas uma dimensão social afetada por fatores externos.

Em entrevista ao Estadão, Carla Furtado falou mais sobre os aspectos que envolvem a felicidade no trabalho, de quem trabalha e como empresas e trabalhadores podem adotar novas percepções para uma vida feliz.

Como você avalia que a felicidade é encarada nas organizações atualmente?

A gente vê muitas iniciativas e discursos em torno dessa temática e, de maneira geral, estamos dando os primeiros passos ainda. Acho que a gente tem tocado a ponta do iceberg e, de certa forma, uma das críticas que faço a partir da ciência é que muitas vezes essas conversas ficam centradas na questão do autocuidado. A organização vai oferecer um menu de serviços de autocuidado e não vai levar em consideração o que é mais importante, que é cultura e liderança. Oferecer meditação é ótimo, a gente sabe que tem resultados avaliados na ciência, mas isso não faz com que tenha um ambiente de verdade positivo ou saudável.

Você traz embasamento teórico-científico sobre felicidade e felicidade no trabalho. É nisso que as empresas têm de se basear? Elas estão próximas disso ou não?

É importante, é um conhecimento que está bastante disseminado, tem gente em RH informado sobre isso. A gente precisa se direcionar pela ciência, senão não vai ter resultado. Isso pode ser o que muita gente acredita como uma onda que vai passar, e pode ser que aconteça, mas só tem um jeito, que é o que a ciência mostra. E você não tem só os estudos que ficam na universidade, isso é aplicado, tem estudos acadêmicos de psicologia positiva organizacional.

O grande caminho a ser feito é pela aproximação entre a academia e o meio corporativo. E se a gente está falando de respaldo científico, não é algo que faço de um dia para o outro ou de forma isolada. Para observar resultado consistente em bem-estar, felicidade e saúde mental, tem de instituir esforço de longo prazo, o cuidado tem de ser inserido no escopo estratégico da empresa, entrar e não sair mais.

Na primeira parte do livro, você fala sobre a felicidade neoliberal, entendida como um percurso individual e desconectado do mundo. Por que parece difícil entender que a felicidade não depende só de nós?

Porque a gente está mergulhado num caldo social e em algumas questões que são ideológicas, então vão falar de produtividade, gestão da marca pessoal, imagem, produção de conteúdo, meritocracia, colocando nas mãos do indivíduo o sucesso da carreira dele. Tudo isso é uma narrativa que atravessa a sociedade. Os sociólogos, filósofos franceses vão dizer que o neoliberalismo é uma racionalidade, a razão de como funcionamos, da competitividade, do “trabalhe enquanto eles dormem”, que muitas vezes a gente adere sem se dar conta.

Somos uma espécie social e, se olhar para o fundamento neurofisiológico, nós funcionamos melhor como espécie em relações, mas estamos comprando a ideia de que depende só de mim, então trabalho mais, estudo mais e chego lá. Acontece que quanto mais exausto, mais infeliz. E tem depressão, transtorno de ansiedade, burnout, uma escalada de transtornos mentais acontecendo. Estamos adoecendo e dificilmente estaremos mais felizes. Essa racionalidade que faz se dedicar mais é muito interessante para o sistema vigente, em que vemos colegas como concorrentes.

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Empresas e até funcionários podem confundir a felicidade no trabalho com outras questões. Quais são as armadilhas da felicidade no trabalho?

Para a empresa, tem de entender que não tem duas pessoas, a que trabalha e a que vive. O paradigma que precisa ser atualizado é de felicidade no trabalho, como se pudesse cuidar dentro da empresa e esquecer fatores externos. O convite é que as organizações precisam pensar na felicidade de quem trabalha, pensar nas necessidades fora do trabalho.

Para o indivíduo, existe algo chamado autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz. A empresa deve trabalhar nas condições do ambiente. A felicidade passa por ter emprego, vida decente, dignidade e deliberação pessoal. Um registro que temos das organizações é oferecer assistência psicológica e uma série de serviços que o colaborador não usa. Então, existe a questão de você assumir a sua responsabilidade dentro da sua relação com o trabalho e não depositar todas as expectativas de uma vida significativa no trabalho.

A gente sempre chama atenção de que é preciso entender as oscilações do trabalho, que envolvem prazer e sofrimento, estresse, prazo, refazer. Isso causa mal-estar, mas é passageiro, são oscilações naturais da vida, pois não existe satisfação linear no trabalho. Mas fora do trabalho, tem de encontrar espaços de satisfação, seja nas conexões, nos hobbies. Mas a maior responsabilidade nessa relação entre funcionário e empresa é da empresa, por causa da sua relação de poder.

Livro de Carla Furtado fala sobre felicidade e trabalho à luz da ciência, com menção à psicologia positiva, neurociência, sociólogos e filósofos que estudam o tema. Foto: J.P. Telles

Tanto que, com a inclusão da síndrome de burnout no rol de doenças ocupacionais, aumentou a responsabilidade das empresas.

Isso está no ambiente da saúde mental, nem é sobre felicidade apenas. Não adianta ter ações de promoção de felicidade quando tem sobrecarga de trabalho que adoece. Não adianta sexta-feira livre, dia do aniversário livre se, quando voltar ao trabalho, estiver imerso em situação que pode adoecer. Sobrecarga é o principal fator para adoecer, porque tem falta de reconhecimento e leva à perda percepção de controle da própria vida. Tem de perceber a dificuldade e dizer que está demais, que não está conseguindo, saber negociar.

No livro, você diz que as empresas teriam de decidir se vão atuar com a felicidade no trabalho ou felicidade de quem trabalha e construir um plano estratégico. O que é mais desafiador nesse processo?

Todos têm certo desafio. A coisa simples é definir o que vão trabalhar: uma coisa é saúde mental, outra é bem-estar e outra é felicidade. Tem intersecção entre elas, mas não pode falar de saúde mental com psicologia positiva de gratidão. É importante ter clareza com o que vai trabalhar, entender que o mais importante nesse processo é o diagnóstico preciso.

Tem de aplicar instrumentos com validade científica, não com esquetes sem rigoroso processo de validação. Há muitos instrumentos e a empresa tem de entender orçamento, qual caminho seguir, fazer com responsabilidade e sem pressa, sem excesso. A gente vê confete em torno das iniciativas de felicidade, mas quando começa não é tão simples quanto parece, porque vai se deparar com sofrimento, pensamentos distintos na própria diretoria, vai e volta do processo.

O que tenho visto de mais consistente são organizações fazendo sem pressa, que usam consultoria, têm formação externa, instituto de pesquisa e, internamente, sabem o que estão fazendo, sem alarde, passo a passo, de forma que consegue sustentar. Todo processo leva tempo, mas quando é legítimo, traz resultados mais rápidos.

Serviço

Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da ComplexidadeAutora: Carla FurtadoEditora: Almedina, Selo ActualPáginas: 120

“Nunca foi sobre duas pessoas, a que trabalha e a que vive, hoje menos ainda. Tempo laboral é tempo de vida, seja bem vivido ou não. Vida nunca teve banco de horas.” Essa é uma das diversas frases de impacto que a pesquisadora Carla Furtado traz em seu livro Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da Complexidade, lançado no último mês (Actual, 120 págs.).

Na obra, a mestre e doutoranda em psicologia apresenta embasamentos teórico-científicos para abordar a felicidade, com menção à neurociência, à psicologia positiva e a pensadores como Sócrates, Platão e o filósofo Byung-Chul Han, autor de A Sociedade do Cansaço. Esse caminho científico, segundo ela, poderia melhor orientar as empresas na construção de uma cultura que valoriza o trabalhador em todas as suas vivências, inclusive fora do trabalho.

Assim, Carla mostra um novo paradigma: não mais falar de felicidade no trabalho, mas da felicidade de quem trabalha. “O bem-estar de quem trabalha é estratégico, indispensável para a sustentabilidade das organizações. Precisa integrar a pauta das reuniões de board, estar no escopo da gestão de riscos, produzir indicadores consistentes para uma tomada de decisão responsável”, ela escreve.

'Para o indivíduo, existe a autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz', diz a pesquisadora Carla Furtado. Foto: J.P.Telles

Para os funcionários, a reflexão é no sentido de entender que o trabalho deve ser apenas uma das fontes de prazer e realização, não a principal. Além disso, compreender que felicidade não é sobre ter sucesso nem uma construção solitária, mas uma dimensão social afetada por fatores externos.

Em entrevista ao Estadão, Carla Furtado falou mais sobre os aspectos que envolvem a felicidade no trabalho, de quem trabalha e como empresas e trabalhadores podem adotar novas percepções para uma vida feliz.

Como você avalia que a felicidade é encarada nas organizações atualmente?

A gente vê muitas iniciativas e discursos em torno dessa temática e, de maneira geral, estamos dando os primeiros passos ainda. Acho que a gente tem tocado a ponta do iceberg e, de certa forma, uma das críticas que faço a partir da ciência é que muitas vezes essas conversas ficam centradas na questão do autocuidado. A organização vai oferecer um menu de serviços de autocuidado e não vai levar em consideração o que é mais importante, que é cultura e liderança. Oferecer meditação é ótimo, a gente sabe que tem resultados avaliados na ciência, mas isso não faz com que tenha um ambiente de verdade positivo ou saudável.

Você traz embasamento teórico-científico sobre felicidade e felicidade no trabalho. É nisso que as empresas têm de se basear? Elas estão próximas disso ou não?

É importante, é um conhecimento que está bastante disseminado, tem gente em RH informado sobre isso. A gente precisa se direcionar pela ciência, senão não vai ter resultado. Isso pode ser o que muita gente acredita como uma onda que vai passar, e pode ser que aconteça, mas só tem um jeito, que é o que a ciência mostra. E você não tem só os estudos que ficam na universidade, isso é aplicado, tem estudos acadêmicos de psicologia positiva organizacional.

O grande caminho a ser feito é pela aproximação entre a academia e o meio corporativo. E se a gente está falando de respaldo científico, não é algo que faço de um dia para o outro ou de forma isolada. Para observar resultado consistente em bem-estar, felicidade e saúde mental, tem de instituir esforço de longo prazo, o cuidado tem de ser inserido no escopo estratégico da empresa, entrar e não sair mais.

Na primeira parte do livro, você fala sobre a felicidade neoliberal, entendida como um percurso individual e desconectado do mundo. Por que parece difícil entender que a felicidade não depende só de nós?

Porque a gente está mergulhado num caldo social e em algumas questões que são ideológicas, então vão falar de produtividade, gestão da marca pessoal, imagem, produção de conteúdo, meritocracia, colocando nas mãos do indivíduo o sucesso da carreira dele. Tudo isso é uma narrativa que atravessa a sociedade. Os sociólogos, filósofos franceses vão dizer que o neoliberalismo é uma racionalidade, a razão de como funcionamos, da competitividade, do “trabalhe enquanto eles dormem”, que muitas vezes a gente adere sem se dar conta.

Somos uma espécie social e, se olhar para o fundamento neurofisiológico, nós funcionamos melhor como espécie em relações, mas estamos comprando a ideia de que depende só de mim, então trabalho mais, estudo mais e chego lá. Acontece que quanto mais exausto, mais infeliz. E tem depressão, transtorno de ansiedade, burnout, uma escalada de transtornos mentais acontecendo. Estamos adoecendo e dificilmente estaremos mais felizes. Essa racionalidade que faz se dedicar mais é muito interessante para o sistema vigente, em que vemos colegas como concorrentes.

  • Quer debater assuntos de Carreira e Empreendedorismo? Entre para o nosso grupo no Telegram pelo link ou digite @gruposuacarreira na barra de pesquisa do aplicativo.

Empresas e até funcionários podem confundir a felicidade no trabalho com outras questões. Quais são as armadilhas da felicidade no trabalho?

Para a empresa, tem de entender que não tem duas pessoas, a que trabalha e a que vive. O paradigma que precisa ser atualizado é de felicidade no trabalho, como se pudesse cuidar dentro da empresa e esquecer fatores externos. O convite é que as organizações precisam pensar na felicidade de quem trabalha, pensar nas necessidades fora do trabalho.

Para o indivíduo, existe algo chamado autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz. A empresa deve trabalhar nas condições do ambiente. A felicidade passa por ter emprego, vida decente, dignidade e deliberação pessoal. Um registro que temos das organizações é oferecer assistência psicológica e uma série de serviços que o colaborador não usa. Então, existe a questão de você assumir a sua responsabilidade dentro da sua relação com o trabalho e não depositar todas as expectativas de uma vida significativa no trabalho.

A gente sempre chama atenção de que é preciso entender as oscilações do trabalho, que envolvem prazer e sofrimento, estresse, prazo, refazer. Isso causa mal-estar, mas é passageiro, são oscilações naturais da vida, pois não existe satisfação linear no trabalho. Mas fora do trabalho, tem de encontrar espaços de satisfação, seja nas conexões, nos hobbies. Mas a maior responsabilidade nessa relação entre funcionário e empresa é da empresa, por causa da sua relação de poder.

Livro de Carla Furtado fala sobre felicidade e trabalho à luz da ciência, com menção à psicologia positiva, neurociência, sociólogos e filósofos que estudam o tema. Foto: J.P. Telles

Tanto que, com a inclusão da síndrome de burnout no rol de doenças ocupacionais, aumentou a responsabilidade das empresas.

Isso está no ambiente da saúde mental, nem é sobre felicidade apenas. Não adianta ter ações de promoção de felicidade quando tem sobrecarga de trabalho que adoece. Não adianta sexta-feira livre, dia do aniversário livre se, quando voltar ao trabalho, estiver imerso em situação que pode adoecer. Sobrecarga é o principal fator para adoecer, porque tem falta de reconhecimento e leva à perda percepção de controle da própria vida. Tem de perceber a dificuldade e dizer que está demais, que não está conseguindo, saber negociar.

No livro, você diz que as empresas teriam de decidir se vão atuar com a felicidade no trabalho ou felicidade de quem trabalha e construir um plano estratégico. O que é mais desafiador nesse processo?

Todos têm certo desafio. A coisa simples é definir o que vão trabalhar: uma coisa é saúde mental, outra é bem-estar e outra é felicidade. Tem intersecção entre elas, mas não pode falar de saúde mental com psicologia positiva de gratidão. É importante ter clareza com o que vai trabalhar, entender que o mais importante nesse processo é o diagnóstico preciso.

Tem de aplicar instrumentos com validade científica, não com esquetes sem rigoroso processo de validação. Há muitos instrumentos e a empresa tem de entender orçamento, qual caminho seguir, fazer com responsabilidade e sem pressa, sem excesso. A gente vê confete em torno das iniciativas de felicidade, mas quando começa não é tão simples quanto parece, porque vai se deparar com sofrimento, pensamentos distintos na própria diretoria, vai e volta do processo.

O que tenho visto de mais consistente são organizações fazendo sem pressa, que usam consultoria, têm formação externa, instituto de pesquisa e, internamente, sabem o que estão fazendo, sem alarde, passo a passo, de forma que consegue sustentar. Todo processo leva tempo, mas quando é legítimo, traz resultados mais rápidos.

Serviço

Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da ComplexidadeAutora: Carla FurtadoEditora: Almedina, Selo ActualPáginas: 120

“Nunca foi sobre duas pessoas, a que trabalha e a que vive, hoje menos ainda. Tempo laboral é tempo de vida, seja bem vivido ou não. Vida nunca teve banco de horas.” Essa é uma das diversas frases de impacto que a pesquisadora Carla Furtado traz em seu livro Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da Complexidade, lançado no último mês (Actual, 120 págs.).

Na obra, a mestre e doutoranda em psicologia apresenta embasamentos teórico-científicos para abordar a felicidade, com menção à neurociência, à psicologia positiva e a pensadores como Sócrates, Platão e o filósofo Byung-Chul Han, autor de A Sociedade do Cansaço. Esse caminho científico, segundo ela, poderia melhor orientar as empresas na construção de uma cultura que valoriza o trabalhador em todas as suas vivências, inclusive fora do trabalho.

Assim, Carla mostra um novo paradigma: não mais falar de felicidade no trabalho, mas da felicidade de quem trabalha. “O bem-estar de quem trabalha é estratégico, indispensável para a sustentabilidade das organizações. Precisa integrar a pauta das reuniões de board, estar no escopo da gestão de riscos, produzir indicadores consistentes para uma tomada de decisão responsável”, ela escreve.

'Para o indivíduo, existe a autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz', diz a pesquisadora Carla Furtado. Foto: J.P.Telles

Para os funcionários, a reflexão é no sentido de entender que o trabalho deve ser apenas uma das fontes de prazer e realização, não a principal. Além disso, compreender que felicidade não é sobre ter sucesso nem uma construção solitária, mas uma dimensão social afetada por fatores externos.

Em entrevista ao Estadão, Carla Furtado falou mais sobre os aspectos que envolvem a felicidade no trabalho, de quem trabalha e como empresas e trabalhadores podem adotar novas percepções para uma vida feliz.

Como você avalia que a felicidade é encarada nas organizações atualmente?

A gente vê muitas iniciativas e discursos em torno dessa temática e, de maneira geral, estamos dando os primeiros passos ainda. Acho que a gente tem tocado a ponta do iceberg e, de certa forma, uma das críticas que faço a partir da ciência é que muitas vezes essas conversas ficam centradas na questão do autocuidado. A organização vai oferecer um menu de serviços de autocuidado e não vai levar em consideração o que é mais importante, que é cultura e liderança. Oferecer meditação é ótimo, a gente sabe que tem resultados avaliados na ciência, mas isso não faz com que tenha um ambiente de verdade positivo ou saudável.

Você traz embasamento teórico-científico sobre felicidade e felicidade no trabalho. É nisso que as empresas têm de se basear? Elas estão próximas disso ou não?

É importante, é um conhecimento que está bastante disseminado, tem gente em RH informado sobre isso. A gente precisa se direcionar pela ciência, senão não vai ter resultado. Isso pode ser o que muita gente acredita como uma onda que vai passar, e pode ser que aconteça, mas só tem um jeito, que é o que a ciência mostra. E você não tem só os estudos que ficam na universidade, isso é aplicado, tem estudos acadêmicos de psicologia positiva organizacional.

O grande caminho a ser feito é pela aproximação entre a academia e o meio corporativo. E se a gente está falando de respaldo científico, não é algo que faço de um dia para o outro ou de forma isolada. Para observar resultado consistente em bem-estar, felicidade e saúde mental, tem de instituir esforço de longo prazo, o cuidado tem de ser inserido no escopo estratégico da empresa, entrar e não sair mais.

Na primeira parte do livro, você fala sobre a felicidade neoliberal, entendida como um percurso individual e desconectado do mundo. Por que parece difícil entender que a felicidade não depende só de nós?

Porque a gente está mergulhado num caldo social e em algumas questões que são ideológicas, então vão falar de produtividade, gestão da marca pessoal, imagem, produção de conteúdo, meritocracia, colocando nas mãos do indivíduo o sucesso da carreira dele. Tudo isso é uma narrativa que atravessa a sociedade. Os sociólogos, filósofos franceses vão dizer que o neoliberalismo é uma racionalidade, a razão de como funcionamos, da competitividade, do “trabalhe enquanto eles dormem”, que muitas vezes a gente adere sem se dar conta.

Somos uma espécie social e, se olhar para o fundamento neurofisiológico, nós funcionamos melhor como espécie em relações, mas estamos comprando a ideia de que depende só de mim, então trabalho mais, estudo mais e chego lá. Acontece que quanto mais exausto, mais infeliz. E tem depressão, transtorno de ansiedade, burnout, uma escalada de transtornos mentais acontecendo. Estamos adoecendo e dificilmente estaremos mais felizes. Essa racionalidade que faz se dedicar mais é muito interessante para o sistema vigente, em que vemos colegas como concorrentes.

  • Quer debater assuntos de Carreira e Empreendedorismo? Entre para o nosso grupo no Telegram pelo link ou digite @gruposuacarreira na barra de pesquisa do aplicativo.

Empresas e até funcionários podem confundir a felicidade no trabalho com outras questões. Quais são as armadilhas da felicidade no trabalho?

Para a empresa, tem de entender que não tem duas pessoas, a que trabalha e a que vive. O paradigma que precisa ser atualizado é de felicidade no trabalho, como se pudesse cuidar dentro da empresa e esquecer fatores externos. O convite é que as organizações precisam pensar na felicidade de quem trabalha, pensar nas necessidades fora do trabalho.

Para o indivíduo, existe algo chamado autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz. A empresa deve trabalhar nas condições do ambiente. A felicidade passa por ter emprego, vida decente, dignidade e deliberação pessoal. Um registro que temos das organizações é oferecer assistência psicológica e uma série de serviços que o colaborador não usa. Então, existe a questão de você assumir a sua responsabilidade dentro da sua relação com o trabalho e não depositar todas as expectativas de uma vida significativa no trabalho.

A gente sempre chama atenção de que é preciso entender as oscilações do trabalho, que envolvem prazer e sofrimento, estresse, prazo, refazer. Isso causa mal-estar, mas é passageiro, são oscilações naturais da vida, pois não existe satisfação linear no trabalho. Mas fora do trabalho, tem de encontrar espaços de satisfação, seja nas conexões, nos hobbies. Mas a maior responsabilidade nessa relação entre funcionário e empresa é da empresa, por causa da sua relação de poder.

Livro de Carla Furtado fala sobre felicidade e trabalho à luz da ciência, com menção à psicologia positiva, neurociência, sociólogos e filósofos que estudam o tema. Foto: J.P. Telles

Tanto que, com a inclusão da síndrome de burnout no rol de doenças ocupacionais, aumentou a responsabilidade das empresas.

Isso está no ambiente da saúde mental, nem é sobre felicidade apenas. Não adianta ter ações de promoção de felicidade quando tem sobrecarga de trabalho que adoece. Não adianta sexta-feira livre, dia do aniversário livre se, quando voltar ao trabalho, estiver imerso em situação que pode adoecer. Sobrecarga é o principal fator para adoecer, porque tem falta de reconhecimento e leva à perda percepção de controle da própria vida. Tem de perceber a dificuldade e dizer que está demais, que não está conseguindo, saber negociar.

No livro, você diz que as empresas teriam de decidir se vão atuar com a felicidade no trabalho ou felicidade de quem trabalha e construir um plano estratégico. O que é mais desafiador nesse processo?

Todos têm certo desafio. A coisa simples é definir o que vão trabalhar: uma coisa é saúde mental, outra é bem-estar e outra é felicidade. Tem intersecção entre elas, mas não pode falar de saúde mental com psicologia positiva de gratidão. É importante ter clareza com o que vai trabalhar, entender que o mais importante nesse processo é o diagnóstico preciso.

Tem de aplicar instrumentos com validade científica, não com esquetes sem rigoroso processo de validação. Há muitos instrumentos e a empresa tem de entender orçamento, qual caminho seguir, fazer com responsabilidade e sem pressa, sem excesso. A gente vê confete em torno das iniciativas de felicidade, mas quando começa não é tão simples quanto parece, porque vai se deparar com sofrimento, pensamentos distintos na própria diretoria, vai e volta do processo.

O que tenho visto de mais consistente são organizações fazendo sem pressa, que usam consultoria, têm formação externa, instituto de pesquisa e, internamente, sabem o que estão fazendo, sem alarde, passo a passo, de forma que consegue sustentar. Todo processo leva tempo, mas quando é legítimo, traz resultados mais rápidos.

Serviço

Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da ComplexidadeAutora: Carla FurtadoEditora: Almedina, Selo ActualPáginas: 120

“Nunca foi sobre duas pessoas, a que trabalha e a que vive, hoje menos ainda. Tempo laboral é tempo de vida, seja bem vivido ou não. Vida nunca teve banco de horas.” Essa é uma das diversas frases de impacto que a pesquisadora Carla Furtado traz em seu livro Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da Complexidade, lançado no último mês (Actual, 120 págs.).

Na obra, a mestre e doutoranda em psicologia apresenta embasamentos teórico-científicos para abordar a felicidade, com menção à neurociência, à psicologia positiva e a pensadores como Sócrates, Platão e o filósofo Byung-Chul Han, autor de A Sociedade do Cansaço. Esse caminho científico, segundo ela, poderia melhor orientar as empresas na construção de uma cultura que valoriza o trabalhador em todas as suas vivências, inclusive fora do trabalho.

Assim, Carla mostra um novo paradigma: não mais falar de felicidade no trabalho, mas da felicidade de quem trabalha. “O bem-estar de quem trabalha é estratégico, indispensável para a sustentabilidade das organizações. Precisa integrar a pauta das reuniões de board, estar no escopo da gestão de riscos, produzir indicadores consistentes para uma tomada de decisão responsável”, ela escreve.

'Para o indivíduo, existe a autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz', diz a pesquisadora Carla Furtado. Foto: J.P.Telles

Para os funcionários, a reflexão é no sentido de entender que o trabalho deve ser apenas uma das fontes de prazer e realização, não a principal. Além disso, compreender que felicidade não é sobre ter sucesso nem uma construção solitária, mas uma dimensão social afetada por fatores externos.

Em entrevista ao Estadão, Carla Furtado falou mais sobre os aspectos que envolvem a felicidade no trabalho, de quem trabalha e como empresas e trabalhadores podem adotar novas percepções para uma vida feliz.

Como você avalia que a felicidade é encarada nas organizações atualmente?

A gente vê muitas iniciativas e discursos em torno dessa temática e, de maneira geral, estamos dando os primeiros passos ainda. Acho que a gente tem tocado a ponta do iceberg e, de certa forma, uma das críticas que faço a partir da ciência é que muitas vezes essas conversas ficam centradas na questão do autocuidado. A organização vai oferecer um menu de serviços de autocuidado e não vai levar em consideração o que é mais importante, que é cultura e liderança. Oferecer meditação é ótimo, a gente sabe que tem resultados avaliados na ciência, mas isso não faz com que tenha um ambiente de verdade positivo ou saudável.

Você traz embasamento teórico-científico sobre felicidade e felicidade no trabalho. É nisso que as empresas têm de se basear? Elas estão próximas disso ou não?

É importante, é um conhecimento que está bastante disseminado, tem gente em RH informado sobre isso. A gente precisa se direcionar pela ciência, senão não vai ter resultado. Isso pode ser o que muita gente acredita como uma onda que vai passar, e pode ser que aconteça, mas só tem um jeito, que é o que a ciência mostra. E você não tem só os estudos que ficam na universidade, isso é aplicado, tem estudos acadêmicos de psicologia positiva organizacional.

O grande caminho a ser feito é pela aproximação entre a academia e o meio corporativo. E se a gente está falando de respaldo científico, não é algo que faço de um dia para o outro ou de forma isolada. Para observar resultado consistente em bem-estar, felicidade e saúde mental, tem de instituir esforço de longo prazo, o cuidado tem de ser inserido no escopo estratégico da empresa, entrar e não sair mais.

Na primeira parte do livro, você fala sobre a felicidade neoliberal, entendida como um percurso individual e desconectado do mundo. Por que parece difícil entender que a felicidade não depende só de nós?

Porque a gente está mergulhado num caldo social e em algumas questões que são ideológicas, então vão falar de produtividade, gestão da marca pessoal, imagem, produção de conteúdo, meritocracia, colocando nas mãos do indivíduo o sucesso da carreira dele. Tudo isso é uma narrativa que atravessa a sociedade. Os sociólogos, filósofos franceses vão dizer que o neoliberalismo é uma racionalidade, a razão de como funcionamos, da competitividade, do “trabalhe enquanto eles dormem”, que muitas vezes a gente adere sem se dar conta.

Somos uma espécie social e, se olhar para o fundamento neurofisiológico, nós funcionamos melhor como espécie em relações, mas estamos comprando a ideia de que depende só de mim, então trabalho mais, estudo mais e chego lá. Acontece que quanto mais exausto, mais infeliz. E tem depressão, transtorno de ansiedade, burnout, uma escalada de transtornos mentais acontecendo. Estamos adoecendo e dificilmente estaremos mais felizes. Essa racionalidade que faz se dedicar mais é muito interessante para o sistema vigente, em que vemos colegas como concorrentes.

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Empresas e até funcionários podem confundir a felicidade no trabalho com outras questões. Quais são as armadilhas da felicidade no trabalho?

Para a empresa, tem de entender que não tem duas pessoas, a que trabalha e a que vive. O paradigma que precisa ser atualizado é de felicidade no trabalho, como se pudesse cuidar dentro da empresa e esquecer fatores externos. O convite é que as organizações precisam pensar na felicidade de quem trabalha, pensar nas necessidades fora do trabalho.

Para o indivíduo, existe algo chamado autorresponsabilidade. O Estado não faz o cidadão feliz, empresa não faz funcionário feliz. A empresa deve trabalhar nas condições do ambiente. A felicidade passa por ter emprego, vida decente, dignidade e deliberação pessoal. Um registro que temos das organizações é oferecer assistência psicológica e uma série de serviços que o colaborador não usa. Então, existe a questão de você assumir a sua responsabilidade dentro da sua relação com o trabalho e não depositar todas as expectativas de uma vida significativa no trabalho.

A gente sempre chama atenção de que é preciso entender as oscilações do trabalho, que envolvem prazer e sofrimento, estresse, prazo, refazer. Isso causa mal-estar, mas é passageiro, são oscilações naturais da vida, pois não existe satisfação linear no trabalho. Mas fora do trabalho, tem de encontrar espaços de satisfação, seja nas conexões, nos hobbies. Mas a maior responsabilidade nessa relação entre funcionário e empresa é da empresa, por causa da sua relação de poder.

Livro de Carla Furtado fala sobre felicidade e trabalho à luz da ciência, com menção à psicologia positiva, neurociência, sociólogos e filósofos que estudam o tema. Foto: J.P. Telles

Tanto que, com a inclusão da síndrome de burnout no rol de doenças ocupacionais, aumentou a responsabilidade das empresas.

Isso está no ambiente da saúde mental, nem é sobre felicidade apenas. Não adianta ter ações de promoção de felicidade quando tem sobrecarga de trabalho que adoece. Não adianta sexta-feira livre, dia do aniversário livre se, quando voltar ao trabalho, estiver imerso em situação que pode adoecer. Sobrecarga é o principal fator para adoecer, porque tem falta de reconhecimento e leva à perda percepção de controle da própria vida. Tem de perceber a dificuldade e dizer que está demais, que não está conseguindo, saber negociar.

No livro, você diz que as empresas teriam de decidir se vão atuar com a felicidade no trabalho ou felicidade de quem trabalha e construir um plano estratégico. O que é mais desafiador nesse processo?

Todos têm certo desafio. A coisa simples é definir o que vão trabalhar: uma coisa é saúde mental, outra é bem-estar e outra é felicidade. Tem intersecção entre elas, mas não pode falar de saúde mental com psicologia positiva de gratidão. É importante ter clareza com o que vai trabalhar, entender que o mais importante nesse processo é o diagnóstico preciso.

Tem de aplicar instrumentos com validade científica, não com esquetes sem rigoroso processo de validação. Há muitos instrumentos e a empresa tem de entender orçamento, qual caminho seguir, fazer com responsabilidade e sem pressa, sem excesso. A gente vê confete em torno das iniciativas de felicidade, mas quando começa não é tão simples quanto parece, porque vai se deparar com sofrimento, pensamentos distintos na própria diretoria, vai e volta do processo.

O que tenho visto de mais consistente são organizações fazendo sem pressa, que usam consultoria, têm formação externa, instituto de pesquisa e, internamente, sabem o que estão fazendo, sem alarde, passo a passo, de forma que consegue sustentar. Todo processo leva tempo, mas quando é legítimo, traz resultados mais rápidos.

Serviço

Feliciência: Felicidade e Trabalho na Era da ComplexidadeAutora: Carla FurtadoEditora: Almedina, Selo ActualPáginas: 120

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