BRASÍLIA - A tributação das compras de até US$ 50, feitas em sites estrangeiros como Shein e Shopee, se transformou em um cavalo-de-batalha não apenas nas redes sociais, mas também dividiu o setor privado e rachou as bancadas de parlamentares que atuam em defesa de interesses empresariais no Congresso.
De um lado, as grandes varejistas brasileiras, como Riachuelo e Petz, pressionam pela tributação e vêm atuando no Parlamento por meio da Frente Parlamentar do Empreendedorismo. O argumento é que a falta de tributação federal sobre as “blusinhas” fabricadas em países como a China está desempregando no Brasil.
Do outro lado, grandes sites asiáticos, como Shein e Shopee, patrocinam a atuação da Frente Parlamentar do Livre Mercado para defender que a tributação vai punir consumidores das classes de renda mais baixa, que não têm dinheiro para viajar e fazer compras no exterior.
Os argumentos embaralharam a política ao ponto de colocar do mesmo lado políticos bolsonaristas e lulistas, ambos contrários à tributação. O argumento que prevalece nos dois polos é a impopularidade da medida e o temor de como isso pode ser usado como arma nas eleições municipais deste ano.
Lobistas que representam empresas dos dois lados da contenda asseguram que o tema não é consenso em nenhuma das duas bancadas. Ou seja, há também os petistas a favor da tributação, assim como há os aliados de Bolsonaro pró-taxação. Ambos pressionados por entidades patronais e sindicais.
Nesta quarta-feira, 22, circulou entre deputados uma nota subscrita tanto pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que representa um setor mais próximo do bolsonarismo, quanto pela Central Única dos Trabalhadores (CUT), o braço sindical do PT, defendendo a tributação.
A nota menciona uma pesquisa do Instituto de Pesquisa em Reputação e Imagem e FSB com a informação de que as compras desses sites são feitas majoritariamente por consumidores com renda superior a cinco salários mínimos (o equivalente a R$ 8 mil) e que o desemprego provocado pela concorrência estrangeira está afetando quem ganha menos de dois salários (R$ 3,2 mil).
O texto afirma que a isenção “beneficia mais as pessoas com renda mais alta e tira o emprego de quem ganha menos”.
“Não se pode desprezar uma nota dessas, capital e trabalho assinando o mesmo documento e participando do mesmo movimento”, afirma o deputado Zé Neto (PT-BA), que é membro da Frente Parlamentar do Empreendedorismo e autodeclarado defensor da tributação dos sites asiáticos.
O mesmo argumento, porém na direção oposta, consta da carta aberta divulgada também nesta quarta-feira por entidades como o Instituto Millenium, Livres e Instituto do Livre Mercado. Em comum, os três disseminam o liberalismo econômico no Brasil. O terceiro tem entre os seus financiadores a Shein.
“Pesquisa encomendada pelo comércio reforça que 74% das classes C, D e E recorrem aos sites estrangeiros para fazer suas compras. Segundo a Ipsos, esses consumidores representam aproximadamente 90% das compras feitas nas plataformas estrangeiras”, diz o documento.
O diretor executivo do Instituto do Livre Mercado, Rodrigo Marinho, afirma que os consumidores de classes altas compram esses produtos quando viajam ao exterior e que a taxação prejudicará o acesso dos mais pobres a produtos mais baratos.
“A nossa defesa é baixar o imposto para todos, tanto para as compras no exterior como também para as feitas no Brasil com até este valor”, diz Marinho.
A ideia circula no Congresso como parte das soluções apresentadas pela oposição para dissolver o impasse — já que a indústria doméstica se queixa de concorrência desleal, a solução então seria desonerá-la. Petistas afirmam, no entanto, que a renúncia fiscal sequer foi quantificada e dificilmente passaria no Ministério da Fazenda.
“As plataformas permitiram que o brasileiro passe a importar diretamente, sem atravessadores”, acrescenta Marinho.
Mas nem esse ponto está pacificado. Enquanto a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Internacional Expresso de Cargas (Abraec) é contra a tributação, uma vez que são elas que trazem as encomendas da Ásia, a plataforma de logística Mercado Livre é a favor, com o argumento de que os produtores locais estão vendendo menos.
A regra
A tributação das compras de até US$ 50, hoje isentas de tributos federais, entrou nos holofotes porque foi inserida no projeto que cria benefícios tributários para a indústria automotiva, o Mover, por decisão do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Em um jantar promovido pela Frente Parlamentar do Empreendedorismo há pouco mais de um mês, Lira disse o que pensava sobre o assunto: “O que é bom para a indústria automotiva e para a industrialização do Brasil tem que ser bom para os outros setores também”.
Naquele momento, foi dada a senha para que a pressão dos setores produtivos sobre os parlamentares começasse. A guerra dos lobbies acabou interferindo, porém, nos interesses do Ministério da Indústria, comandado pelo vice Geraldo Alckmin.
Na última semana, ele defendeu que o tema fosse apartado. O PT da Câmara classificou a iniciativa como “jabuti” e há três semanas vem conseguindo interditar a votação do Mover. O mesmo ocorreu nesta quarta, quando após uma série de declarações de lado a lado e reuniões, o assunto saiu da pauta.
Lobistas afirmam que Alckmin tem dito ser favorável à tributação, até como uma estratégia de defesa comercial. O ministério dele vem levantando várias barreiras à importação considerada desleal, como foi o caso do antidumping ao aço chinês.
Em público, porém, o vice tem evitado considerações sobre o mérito da medida. É sabido que a ala política do governo não quer a taxação, com a avaliação de que, seja quem vote contra ou a favor, no final o eleitor culpará o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mas falas recentes do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deram sinal diferente aos entusiastas da tributação.
Em audiência pública na Câmara nesta quarta, Haddad disse que o pleito da indústria doméstica local é “legítimo” por igualdade de condições e que a decisão dos Estados de cobrar ICMS sobre essas compras (eles cobram uma alíquota única de 17%) é correta.
“Todas as confederações da indústria e do comércio estão pedindo um debate sincero sobre o tema. Vocês (oposição) estão desprestigiando as lideranças patronais e de trabalhadores e vocês não querem debater esse assunto? Vocês não acham sério esse assunto? O mundo inteiro está debatendo esse assunto. Porque é uma nova realidade. Essa questão dos aplicativos, dos marketplaces, é uma nova realidade que nós temos que estudar e ver a repercussão econômica. Vocês querem ideologizar esse debate?”, afirmou Haddad.
As falas do ministro foram recortadas e retransmitidas em grupos de WhatsApp formados por empresários e lobistas, aliviados pelo reforço que consideram ter arregimentado.
Opositores afirmam, contudo, que a declaração do ministro não apazígua os ânimos no meio político e, por consequência, no meio econômico. A avaliação é que o governo quer a tributação, até para obter mais receita em tempos de ajuste fiscal, mas o PT não quer, numa dualidade na qual o governo colhe o bônus da medida, ao mesmo tempo em que divide o ônus da impopularidade com o Parlamento.
“Eles querem ganhar o imposto e não querem o desgate em aprovar a tributação. Ser governo é ter desgaste, ninguém faz omelete sem quebrar os ovos”, afirma Joaquim Passarinho (PL-PA), que preside a Frente do Empreendedorismo e, ao mesmo, é membro da Frente Parlamentar do Livre Mercado.
Ele lamenta que o setor privado tenha se dividido ao ponto de ir para o tudo ou nada — ou ganha um ou ganha o outro.
“Tentamos construir uma solução intermediária, de que a taxação não fosse imediatamente para 60%, mas os empresários não aceitaram. Agora talvez aceitem”, diz, diante do impasse instalado no Congresso.