BRASÍLIA - Usado pelos super-ricos para proteger o patrimônio e reduzir a incidência de impostos nos investimentos, o chamado “trust” é um dos alvos do projeto de lei que tributa as aplicações financeiras no exterior, feitas por intermédio de empresas e fundos conhecidos como offshores. Muitas dessas alocações são localizadas em paraísos fiscais, que praticam baixa ou nenhuma tributação.
Se o projeto for aprovado pelos parlamentares, essa será a primeira vez que a legislação brasileira vai regular esse tipo de instrumento utilizado no exterior. Pelo mecanismo do “trust”, uma pessoa faz a transferência do seu patrimônio a um terceiro, o curador, que administra esses bens.
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Como o “trust” ainda não é regulado no Brasil, o Ministério da Fazenda considera que essa lacuna vem gerando dúvidas interpretativas relevantes sobre a sua tributação, provocando insegurança jurídica.
“O ‘trust’ é uma grande dúvida na legislação brasileira, o que traz insegurança jurídica. Há interpretações divergentes da Receita Federal, da Secretaria da Fazenda de São Paulo e do próprio contribuinte, com muito risco de contencioso”, disse ao Estadão Daniel Loria, diretor de programa da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária.
Loria explicou que o projeto regulamenta esse instrumento com uma regra simples, que cobra transparência. “A pessoa física declara o que está em baixo (os ativos) do trust. Se tiver um fundo offshore, declara ele. Se for uma aplicação financeira, declara a aplicação financeira, e, assim, sucessivamente”, explicou Loria.
‘Testamento sofisticado’
Segundo ele, o “trust” é muito usado para planejamento tributário sucessório e familiar. Esse tipo de planejamento são estratégias feitas por escritórios de advocacia, que organizam a passagem de bens de uma pessoa para seus herdeiros. Ela pode ocorrer ainda em vida, para tornar o processo simples e evitar possíveis conflitos entre os herdeiros.
Loria explicou que o “trust” permite uma série de regras para a distribuição dos recursos para os beneficiários. “É como se fosse um testamento muito sofisticado”, disse o diretor. “Mas havia, no Brasil, uma dúvida: se o ‘trust’ é uma empresa, um contrato ou uma aplicação financeira e quando os ativos passam para o sucessor”, ressaltou.
Integrante da equipe do secretário de Reforma Tributária, Bernard Appy, Loria fez uma “ponte” nas últimas semanas com o mercado para a elaboração final do texto do projeto das offshores e também da Medida Provisória (MP), que trata da tributação dos fundos dos super-ricos existentes no Brasil.
Como mostrou o Estadão na semana passada, ajustes foram feitos para as medidas chegarem com um consenso maior na Câmara, onde há resistências às mudanças. Esse movimento foi feito em sintonia com a cúpula da Câmara, para viabilizar a aprovação do pacote, que é peça fundamental para o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, buscar o aumento de receitas e cumprir a meta de zerar o déficit das contas públicas em 2024.
Numa conta conservadora, o Ministério da Fazenda projeta uma arrecadação de R$ 20 bilhões em 2024. Entre 2023 e 2026, a expectativa é garantir R$ 45 bilhões de novas receitas com as duas medidas. O mais provável é que a MP dos fundos exclusivos e o projeto das offshores sejam unidos na Câmara num único projeto.
“Eu fiz muitas audiências. Acredito que a maioria de todos os pontos técnicos esteja contemplada”, disse Loria. Segundo ele, a calibragem da alíquota da tributação para a atualização dos valores já declarados, fixada em 10%, será tratada diretamente no Congresso.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), já sinalizou que a alíquota deve ser reduzida para 6%. Com uma alíquota menor, os líderes argumentam que a arrecadação poderá ser até maior, com mais adesão dos investidores e aumento dos ativos que serão atualizados.
Para Loria, o Ministério da Fazenda está trabalhando para que o projeto avance dentro do acordo com o presidente Lira. “O que eu posso dizer é que o texto hoje está muito melhor do que o original. Aqui no Ministério, temos exercitado essa escuta ativa e contemplado diversas mudanças pró-contribuintes e fazendo o possível para ter um texto equilibrado, que avance”, ressaltou o diretor.
Entre os tributaristas, há uma preocupação com o artigo do projeto que obriga o detentor a prestar informações no Brasil. Esse artigo obriga o instituidor ou o beneficiário do “trust” a disponibilizar no Brasil informações necessárias para viabilizar o pagamento do imposto e o cumprimento das demais obrigações tributárias no País.
Para os advogados, esse ponto não vai funcionar na prática, porque os “trust” têm jurisdição e regras distintas em outros países.
“O PL exige que o contribuinte requisite do ‘trustee’ (administrador do ‘trust’) o envio de informações e recursos para que se apure e pague o imposto no Brasil, determinando, inclusive, que o instituidor ou beneficiário do ‘trust’ altere, no prazo de 180 dias, o seu regulamento para obrigar o ‘trustee’ a cumprir aquelas demandas”, explica o tributarista Luiz Bichara, do escritório Bichara Advogados.
“Ocorre que essas normas devem se tornar inócuas, porque a lei brasileira não tem força jurídica extraterritorial para impor ao ‘trustee’ o cumprimento do que está previsto no PL e, além disto, há diversos ‘trusts’ irrevogáveis, em que o instituidor e beneficiário não têm poderes de modificar o regulamento”, pontua o tributarista.