BRASÍLIA – O Ministério da Fazenda alertou para o risco de fraude e de despesas serem classificadas como irregulares no novo desenho do Auxílio Gás, proposto pelo governo Lula ao Congresso, mas mesmo assim o ministro da pasta, Fernando Haddad, assinou o projeto. O texto é assinado também pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, defensor do desenho.
O Estadão obteve acesso aos documentos que embasaram a elaboração da proposta via Lei de Acesso à Informação (LAI). O Ministério da Fazenda não quis se manifestar sobre as conclusões alegando que o projeto está em tramitação no Congresso. O Ministério de Minas e Energia e a Casa Civil, por onde o texto passou antes de virar um projeto de lei, também foram procurados pela reportagem, mas não comentaram.
O governo enviou o projeto em regime de urgência na Câmara, ou seja, colocando prioridade sobre outras propostas, mas, nesta terça-feira, 15, conforme informou a Coluna do Estadão, retirou a urgência do texto, dando mais tempo para analisar os efeitos do texto.
Atualmente, o Auxílio Gás envolve recursos do Orçamento da União e se submete ao arcabouço fiscal, que limita as despesas do governo federal. O poder público repassa o dinheiro diretamente para famílias de baixa renda comprarem o gás de cozinha. O projeto de lei prevê uma mudança no repasse. A proposta provocou crítica de especialistas por autorizar despesas fora do Orçamento, driblando as regras fiscais.
Com a mudança, empresas da área de petróleo passariam a depositar valor equivalente à parcela de suas obrigações com a União que bancam o Fundo Social em uma conta da Caixa. O banco, por sua vez, faria o pagamento do auxílio para o fornecedor do botijão ou para o beneficiário. O valor que não é pago para a União diminui a arrecadação do governo. O benefício operado pela Caixa vira uma despesa, mas não aparece no Orçamento federal, driblando os limites fiscais.
“O modelo de descontos diretos pode gerar incentivo a fraudes na política pública, a exemplo da revenda de botijões por beneficiários ou da existência de operações fictícias entre revendedores e beneficiários”, diz uma nota técnica da Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda elaborada no dia 23 de agosto, três dias antes de o projeto ser anunciado.
“Por outro lado, destaca-se que o Brasil também possui programas de referência de desconto ou gratuidade no acesso a determinados produtos, com destaque para o Programa Farmácia Popular, que permite o acesso da população a remédios e apresenta repercussões significativas na saúde pública da população de modo a que se apropriem dos descontos concedidos.” O órgão entendeu que a Fazenda ainda deveria analisar os impactos fiscais do projeto.
Coube à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, também vinculada ao Ministério da Fazenda, tecer conclusões sobre os aspectos orçamentários do projeto. O órgão identificou “potenciais efeitos financeiros” envolvendo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), “cujo cumprimento pode ser atestado no momento da regulamentação, sob pena de as despesas serem consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público.” Essa manifestação foi feita às 20h do dia 26 de agosto, quando Lula e Silveira já haviam anunciado a proposta.
Após o envio do projeto, o Ministério da Fazenda admitiu preocupações e passou a defender correção de “eventuais erros”. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o formato seria revisto para trazer as despesas para dentro do Orçamento. Até o momento, porém, não houve essa correção. Procurado pela reportagem, o Ministério da Fazenda afirmou que não iria se manifestar, uma vez que o projeto está em tramitação no Congresso Nacional.
Outros ministros do governo defendem o projeto como foi enviado. “Sem papas na língua, eu defendo que seja pago pelos fundos. Qual é o problema que tem o Fundo Social do pré-sal pagar isso? Isso aqui é ou não social?”, afirmou o ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, ao Estadão. Com a mudança, o Auxílio Gás sairia da alçada da pasta e iria para o Ministério de Minas e Energia.
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A Consultoria de Orçamentos da Câmara apontou uma série de violações à Constituição e às leis na proposta pelo pagamento de despesas à margem do processo legislativo orçamentário. “Desse modo, ainda que o pagamento desse dispêndio represente uma despesa primária, a não consignação dessas despesas na lei orçamentária anual da União implica que os montantes envolvidos em tal operação não estarão sujeitos aos limites de despesas estabelecidos pelo RFS (Regime Fiscal Sustentável – o novo arcabouço fiscal)”, diz nota da consultoria.
Os consultores da Câmara concluíram que o projeto deveria vir acompanhado de estimativa de impacto no Orçamento, o que não ocorreu. A Fazenda não viu essa necessidade ao falar que o novo modelo, que gera renúncia de receitas para a União, é autorizativo, e não obrigatório. Mas, para os técnicos do Congresso, a proposta teria de ser acompanhada do cálculo. “No caso concreto, diante da constatação de que o PL 3.335/2024 não se fez acompanhar de tais estimativas de impacto, a proposição é inadequada e incompatível sob os aspectos orçamentário e financeiro”, diz a nota da consultoria.
Minas e Energia e Casa Civil defenderam modelo
Durante a elaboração do projeto, o Ministério de Minas e Energia argumentou que o desenho atual não garante que os beneficiados estejam usando o dinheiro para comprar o gás de cozinha. “Assim, o objetivo energético da política pública, qual seja o de redução da pobreza energética, pode não estar sendo alcançado por meio do mecanismo atual”, diz nota técnica da Secretaria Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do MME, assinada no dia 15 de agosto.
A operação pela Caixa, segundo a pasta de Alexandre Silveira, permite que a política pública “seja eficiente e capilarizada, de modo a garantir o acesso facilitado e rápido ao GLP pelas famílias beneficiárias em todo o País.” Além disso, o órgão viu vantagens no projeto, como combate à pobreza e à desigualdade, ampliação do mercado de trabalho, proteção dos interesses do consumidor quanto ao preço e garantia do fornecimento de derivados de petróleo em todo o território nacional.
O Orçamento de 2025 foi elaborado pelo governo incorporando o novo modelo. O governo cortou 84% da verba do Auxílio Gás na proposta, deixando um dinheiro insuficiente para bancar o benefício no próximo ano. Dessa forma, as despesas já começariam a vir da nova operação.
A Casa Civil, chefiada pelo ministro Rui Costa, também defensor da proposta, elaborou uma nota afirmando que modelo que viabiliza o desconto na compra do gás de cozinha por famílias de baixa renda, com possibilidade de financiamento tanto com o Orçamento da União quanto com os recursos do pré-sal, “contribuindo para a segurança alimentar das pessoas, para o acesso a combustível limpo para cocção e para o combate à pobreza energética.”
Na última hora, houve uma mudança que não passou pelo crivo das consultorias técnicas dos ministérios. A minuta elaborada pelo Ministério de Minas Energia autorizava o governo a usar dividendos da Petrobras que são pagos à União e passariam a ser direcionados à Caixa para bancar o novo desenho do Auxílio Gás. A versão final do projeto de lei ficou sem essa previsão. O Ministério de Minas e Energia e a Casa Civil não se manifestaram sobre a mudança e sobre os alertas feitos pela Fazenda durante a elaboração do texto.