Análise|Já é tempo de termos um Orçamento sério


Apesar dos avanços, permanece inacabada a modernização do processo orçamentário no Brasil, ainda pleno de arcaísmos e distorções

Por Maílson da Nóbrega
Atualização:

Nos últimos quarenta anos, o Brasil experimentou grande melhora nas instituições e nas estatísticas das finanças públicas, como mostram Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco (Política fiscal no Brasil de 1981 a 2023: uma retrospectiva histórica - Texto para discussão 157 - BNDES, disponível aqui). No início dos anos 1980, havia três Orçamentos federais: o da União, o Monetário e o da Previdência Social. O primeiro, único aprovado pelo Congresso, equilibrava receitas e despesas. O déficit público e os enormes subsídios apareciam nos outros dois.

O Orçamento Monetário (OM) abrangia as operações do Banco Central e do Banco do Brasil, particularmente as de financiamento da agricultura, da indústria e das exportações. Muitas delas tinham natureza nitidamente fiscal. Seus recursos provinham da expansão da dívida pública, a qual, ao contrário do que ocorre hoje, não se destinava a financiar déficits no Orçamento da União. Emissões de moeda eram outra fonte relevante.

O OM chegou a apoiar ações distantes das questões monetárias, como foram os casos de feiras e exposições e até de uma parte dos custos da Ponte Rio-Niterói. Com as reformas introduzidas entre 1986 e 1988, o OM foi abolido, transferindo-se suas atividades fiscais para o Orçamento da União, que também incorporou o da Previdência.

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Visão de que o governo pode alterar as dotações orçamentárias fixadas em lei pelo Congresso é uma distorção Foto: Dida Sampaio/Estadão

Apesar dos avanços, permanece inacabada a modernização do processo orçamentário, ainda pleno de arcaísmos e distorções. A principal delas, a meu ver, é a visão de que o Orçamento é autorizativo, ou seja, o governo pode alterar a seu talante dotações orçamentárias fixadas em lei pelo Congresso.

É verdade que a Lei de Responsabilidade Fiscal autoriza o Executivo a contingenciar gastos, mas isso contraria o artigo 165, § 8º da Constituição, pelo qual “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa” (grifos meus). Traduzindo: a receita é estimada, mas a despesa é determinada pela lei. Não poderia ser descumprida por decreto ou por ações da Secretaria do Tesouro Nacional.

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Outra distorção é o estabelecimento, pelo Executivo, de impostos e subsídios. São os casos das subvenções estabelecidas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), incluídas nas contas de luz. Tratam-se, na prática, de tributos sobre o consumo e os gastos, criados sem autorização legislativa. Os custos desses subsídios equivalem a 14% do consumo de energia elétrica.

Mais impressionante tem sido o aumento das emendas parlamentares ao Orçamento. Estudo de Marcos Mendes, disponível aqui, indica que elas representaram, em 2022, 24% das despesas discricionárias da União, isto é, as que não têm execução obrigatória. Nos Estados Unidos, país presidencialista como o Brasil, elas representam apenas 2,4%.

Para piorar, em 2015, emenda constitucional tornou livre a aplicação de emendas parlamentares em favor de Estados e municípios, o que representou, no entender de Felipe Salto, “uma má ideia”. Os recursos são repassados diretamente, sem a necessidade de celebração de convênio ou instrumento congênere. Em outras palavras, Estados e municípios são livres para aplicá-los onde bem entenderem. São as chamadas “emendas Pix”.

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Essas distorções desmoralizam o Orçamento, a principal lei econômica e na qual se definem as prioridades do País. Em nações onde a peça orçamentária é levada a sério, não há contingenciamentos. Reduções de gastos são autorizadas apenas pelo Parlamento. Trata-se de processo mais legítimo, que assegura a discussão dos cortes, o que não é possível no Brasil.

Em discurso recente, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, afirmou que “o Orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Poder Legislativo em sua confecção e final aprovação”. Para ele, o orçamento não “pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo e muito menos de uma burocracia técnica que, apesar de seu preparo, não duvido, não foi eleita para escolher as prioridades da nação. E não gasta a sola do sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”. E prosseguiu: “Quanto mais intervenções o Congresso Nacional fizer no Orçamento, tenham certeza: mais o Brasil esquecido será ouvido. Nós somos o elo e a voz dos nossos 5.568 municípios”.

Arthur Lira se equivoca ao sugerir que a missão básica dos parlamentares é transferir recursos para Estados e municípios Foto: Wilton Junior/Estadão
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Para o experimentado jornalista Merval Pereira, a quem muito admiro, “no presidencialismo, é o Executivo que dá as diretrizes gerais do governo, não cabendo ao Legislativo decidir para onde vão as verbas. Os parlamentares “precisam adaptar as necessidades de seus redutos eleitorais ao planejamento central, ou convencer o Executivo a incluir suas prioridades nos planos do governo”.

Ambos se equivocam, especialmente Lira, cujo discurso sugere que a missão básica dos parlamentares é transferir recursos para Estados e municípios. Se fosse assim, milhares de municípios ficariam de fora por não contarem com um padrinho no Congresso. Não foi essa a posição sustentada por deputados e senadores na Constituição de 1988.

O projeto inicial transferia 47% da arrecadação do Imposto de Renda e do IPI para Estados e municípios, e mais 3% para fundos regionais de desenvolvimento. Era uma elevação de 56,7%, representando perdas consideráveis da receita dos dois principais tributos da União. Dizia-se que era para extinguir o “pires na mão” de governadores e prefeitos nos gabinetes de Brasília. Apesar da opinião contrária do Executivo, a medida foi aprovada.

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Posteriormente, aquele porcentual foi aumentado para 50%. Para minimizar os efeitos negativos das novas transferências, a União se viu obrigada a recorrer a tributos não partilháveis com governos subnacionais - as contribuições sociais -, o que piorou a qualidade e a carga do sistema tributário. Governadores e prefeitos continuam a buscar dinheiro em Brasília. O “pires na mão” permanece.

Não é assim que funciona o moderno sistema de finanças públicas. Suas origens remontam à já longínqua Carta Magna inglesa de 1215, pela qual o rei João Sem Terra cedeu a demandas de barões e bispos, aceitando que a elevação de impostos deveria submeter-se à sua prévia autorização. A cobrança somente poderia começar no exercício seguinte. A ideia vige até hoje. É o chamado princípio da anterioridade dos tributos.

Ao longo do tempo, todavia, os reis encontraram formas de contornar tal restrição, como assinalam Douglass North e Barry Weingast em seu clássico artigo Constitutions and Commitment:The Evolution of Institutions Governing Public Choice in Seventeenth-Century England, publicado em dezembro de 1989 pelo The Journal of Economic History. Passaram a recorrer a empréstimos compulsórios, à venda de terras, a concessões de patentes e monopólios, que por não serem impostos independiam da aprovação do Parlamento. Restauraram, além disso, o Power of Conveyance, que dava aos reis o direito de realizar compras governamentais por um valor fixo, abaixo dos preços de mercado.

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Essas ações acarretavam crescente insatisfação. A expansão dos títulos de nobreza, que aumentava o número de membros da Câmara dos Lordes, teve efeito negativo entre os detentores de títulos hereditários, pois limitou sua capacidade de proteger-se contra atos da Coroa. As renovações compulsórias dos empréstimos, às vezes sem juros ou muitos nunca pagos, descontentavam os merchants (os empresários), que eram sua principal fonte.

O rei James II exacerbou o descontentamento com os sinais de que buscaria restabelecer o catolicismo e, assim, abolir a Igreja Anglicana, retomando a submissão de assuntos religiosos ao Vaticano. Ele também abusou da prerrogativa de editar proclamações e decretos sem audiência do Parlamento. A rejeição ao monarca desaguou na Revolução Gloriosa (1688), que o depôs e aboliu a monarquia absoluta. Rejeitou-se a ideia do “poder divino dos reis”, que os situava acima da lei.

Estabeleceu-se a supremacia do Parlamento, ao mesmo tempo em que o rei perdia a prerrogativa de demitir juízes, o que resultou na independência do Judiciário e no fortalecimento dos direitos de propriedade. Os parlamentares passaram a decidir sobre variadas questões, especialmente em matéria financeira, e a impor controles e restrições à ação da Coroa.

A exclusiva autoridade do Parlamento para criar e elevar impostos foi firmemente restabelecida. Mais tarde, isso incluiu a inédita atribuição de auditar as contas da Coroa. Essa combinação significou o exercício do poder de veto sobre a despesa e o direito de monitorar a aplicação da receita. Os calotes na dívida pública desapareceram. Na opinião de North e Weingast, a Revolução Gloriosa promoveu uma revolução fiscal.

Foram cinco suas grandes mudanças institucionais: 1) eliminou um arcaico sistema fiscal e suas respectivas crises; 2) limitou a capacidade da Coroa de alterar regras fiscais sem autorização legislativa; 3) reafirmou o domínio parlamentar sobre a despesa; 4) garantiu ao Parlamento papel decisivo na criação de receitas e no monitoramento da despesa; 5) estabeleceu limites a tendências arbitrárias dos parlamentares.

O Parlamento investiu-se, assim, da função exclusiva de aprovar o Orçamento. Essa mesma atribuição foi inscrita nas Constituições de dois outros grandes movimentos revolucionários do Ocidente, quais sejam a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). Em nenhum desses casos vigora a visão de que o Orçamento é autorizativo.

North e Weingast concluem que a Revolução Gloriosa assegurou a ascensão da Grã-Bretanha à posição de potência hegemônica, que manteve por mais de três séculos. Sem a revolução fiscal e a limitação do poder da Coroa, a Inglaterra dificilmente teria sido o primeiro país a viver a Revolução Industrial nem teria vencido as guerras contra a França, substituindo-a, no século XIX, como a maior e mais poderosa economia da Europa.

Quanto ao Brasil, há indicações de que já foram criadas as condições para contarmos com um Orçamento sério, no qual todas as despesas devem ser impositivas. Já é hora de abandonar o lamentável uso da lei orçamentária como instrumento de barganha com o Congresso, mesmo que se suscitem temores de desastre fiscal. Na verdade, felizmente, as inovações e controles institucionais criados desde a democratização, a imprensa livre e o pluralismo da sociedade podem evitar que o Congresso se transforme em fonte de instabilidade macroeconômica.

No mesmo contexto, há que discutir também a redução drástica do valor das emendas parlamentares, limitando-as a um certo porcentual dos gastos discricionários e não do total. Experiências como as dos EUA, de Portugal e de outros países podem, além disso, justificar a abolição das emendas “Pix”. Este jornal tem apontado, aliás, os inconvenientes institucionais e morais desse tipo de emenda.

O Orçamento impositivo tende a melhorar a gestão e a alocação dos recursos, o que elevará a produtividade e o potencial de crescimento do país. Será também um grande passo civilizacional, que alinhará o Brasil às melhores práticas de formulação e execução das finanças públicas.

Nos últimos quarenta anos, o Brasil experimentou grande melhora nas instituições e nas estatísticas das finanças públicas, como mostram Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco (Política fiscal no Brasil de 1981 a 2023: uma retrospectiva histórica - Texto para discussão 157 - BNDES, disponível aqui). No início dos anos 1980, havia três Orçamentos federais: o da União, o Monetário e o da Previdência Social. O primeiro, único aprovado pelo Congresso, equilibrava receitas e despesas. O déficit público e os enormes subsídios apareciam nos outros dois.

O Orçamento Monetário (OM) abrangia as operações do Banco Central e do Banco do Brasil, particularmente as de financiamento da agricultura, da indústria e das exportações. Muitas delas tinham natureza nitidamente fiscal. Seus recursos provinham da expansão da dívida pública, a qual, ao contrário do que ocorre hoje, não se destinava a financiar déficits no Orçamento da União. Emissões de moeda eram outra fonte relevante.

O OM chegou a apoiar ações distantes das questões monetárias, como foram os casos de feiras e exposições e até de uma parte dos custos da Ponte Rio-Niterói. Com as reformas introduzidas entre 1986 e 1988, o OM foi abolido, transferindo-se suas atividades fiscais para o Orçamento da União, que também incorporou o da Previdência.

Visão de que o governo pode alterar as dotações orçamentárias fixadas em lei pelo Congresso é uma distorção Foto: Dida Sampaio/Estadão

Apesar dos avanços, permanece inacabada a modernização do processo orçamentário, ainda pleno de arcaísmos e distorções. A principal delas, a meu ver, é a visão de que o Orçamento é autorizativo, ou seja, o governo pode alterar a seu talante dotações orçamentárias fixadas em lei pelo Congresso.

É verdade que a Lei de Responsabilidade Fiscal autoriza o Executivo a contingenciar gastos, mas isso contraria o artigo 165, § 8º da Constituição, pelo qual “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa” (grifos meus). Traduzindo: a receita é estimada, mas a despesa é determinada pela lei. Não poderia ser descumprida por decreto ou por ações da Secretaria do Tesouro Nacional.

Outra distorção é o estabelecimento, pelo Executivo, de impostos e subsídios. São os casos das subvenções estabelecidas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), incluídas nas contas de luz. Tratam-se, na prática, de tributos sobre o consumo e os gastos, criados sem autorização legislativa. Os custos desses subsídios equivalem a 14% do consumo de energia elétrica.

Mais impressionante tem sido o aumento das emendas parlamentares ao Orçamento. Estudo de Marcos Mendes, disponível aqui, indica que elas representaram, em 2022, 24% das despesas discricionárias da União, isto é, as que não têm execução obrigatória. Nos Estados Unidos, país presidencialista como o Brasil, elas representam apenas 2,4%.

Para piorar, em 2015, emenda constitucional tornou livre a aplicação de emendas parlamentares em favor de Estados e municípios, o que representou, no entender de Felipe Salto, “uma má ideia”. Os recursos são repassados diretamente, sem a necessidade de celebração de convênio ou instrumento congênere. Em outras palavras, Estados e municípios são livres para aplicá-los onde bem entenderem. São as chamadas “emendas Pix”.

Essas distorções desmoralizam o Orçamento, a principal lei econômica e na qual se definem as prioridades do País. Em nações onde a peça orçamentária é levada a sério, não há contingenciamentos. Reduções de gastos são autorizadas apenas pelo Parlamento. Trata-se de processo mais legítimo, que assegura a discussão dos cortes, o que não é possível no Brasil.

Em discurso recente, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, afirmou que “o Orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Poder Legislativo em sua confecção e final aprovação”. Para ele, o orçamento não “pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo e muito menos de uma burocracia técnica que, apesar de seu preparo, não duvido, não foi eleita para escolher as prioridades da nação. E não gasta a sola do sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”. E prosseguiu: “Quanto mais intervenções o Congresso Nacional fizer no Orçamento, tenham certeza: mais o Brasil esquecido será ouvido. Nós somos o elo e a voz dos nossos 5.568 municípios”.

Arthur Lira se equivoca ao sugerir que a missão básica dos parlamentares é transferir recursos para Estados e municípios Foto: Wilton Junior/Estadão

Para o experimentado jornalista Merval Pereira, a quem muito admiro, “no presidencialismo, é o Executivo que dá as diretrizes gerais do governo, não cabendo ao Legislativo decidir para onde vão as verbas. Os parlamentares “precisam adaptar as necessidades de seus redutos eleitorais ao planejamento central, ou convencer o Executivo a incluir suas prioridades nos planos do governo”.

Ambos se equivocam, especialmente Lira, cujo discurso sugere que a missão básica dos parlamentares é transferir recursos para Estados e municípios. Se fosse assim, milhares de municípios ficariam de fora por não contarem com um padrinho no Congresso. Não foi essa a posição sustentada por deputados e senadores na Constituição de 1988.

O projeto inicial transferia 47% da arrecadação do Imposto de Renda e do IPI para Estados e municípios, e mais 3% para fundos regionais de desenvolvimento. Era uma elevação de 56,7%, representando perdas consideráveis da receita dos dois principais tributos da União. Dizia-se que era para extinguir o “pires na mão” de governadores e prefeitos nos gabinetes de Brasília. Apesar da opinião contrária do Executivo, a medida foi aprovada.

Posteriormente, aquele porcentual foi aumentado para 50%. Para minimizar os efeitos negativos das novas transferências, a União se viu obrigada a recorrer a tributos não partilháveis com governos subnacionais - as contribuições sociais -, o que piorou a qualidade e a carga do sistema tributário. Governadores e prefeitos continuam a buscar dinheiro em Brasília. O “pires na mão” permanece.

Não é assim que funciona o moderno sistema de finanças públicas. Suas origens remontam à já longínqua Carta Magna inglesa de 1215, pela qual o rei João Sem Terra cedeu a demandas de barões e bispos, aceitando que a elevação de impostos deveria submeter-se à sua prévia autorização. A cobrança somente poderia começar no exercício seguinte. A ideia vige até hoje. É o chamado princípio da anterioridade dos tributos.

Ao longo do tempo, todavia, os reis encontraram formas de contornar tal restrição, como assinalam Douglass North e Barry Weingast em seu clássico artigo Constitutions and Commitment:The Evolution of Institutions Governing Public Choice in Seventeenth-Century England, publicado em dezembro de 1989 pelo The Journal of Economic History. Passaram a recorrer a empréstimos compulsórios, à venda de terras, a concessões de patentes e monopólios, que por não serem impostos independiam da aprovação do Parlamento. Restauraram, além disso, o Power of Conveyance, que dava aos reis o direito de realizar compras governamentais por um valor fixo, abaixo dos preços de mercado.

Essas ações acarretavam crescente insatisfação. A expansão dos títulos de nobreza, que aumentava o número de membros da Câmara dos Lordes, teve efeito negativo entre os detentores de títulos hereditários, pois limitou sua capacidade de proteger-se contra atos da Coroa. As renovações compulsórias dos empréstimos, às vezes sem juros ou muitos nunca pagos, descontentavam os merchants (os empresários), que eram sua principal fonte.

O rei James II exacerbou o descontentamento com os sinais de que buscaria restabelecer o catolicismo e, assim, abolir a Igreja Anglicana, retomando a submissão de assuntos religiosos ao Vaticano. Ele também abusou da prerrogativa de editar proclamações e decretos sem audiência do Parlamento. A rejeição ao monarca desaguou na Revolução Gloriosa (1688), que o depôs e aboliu a monarquia absoluta. Rejeitou-se a ideia do “poder divino dos reis”, que os situava acima da lei.

Estabeleceu-se a supremacia do Parlamento, ao mesmo tempo em que o rei perdia a prerrogativa de demitir juízes, o que resultou na independência do Judiciário e no fortalecimento dos direitos de propriedade. Os parlamentares passaram a decidir sobre variadas questões, especialmente em matéria financeira, e a impor controles e restrições à ação da Coroa.

A exclusiva autoridade do Parlamento para criar e elevar impostos foi firmemente restabelecida. Mais tarde, isso incluiu a inédita atribuição de auditar as contas da Coroa. Essa combinação significou o exercício do poder de veto sobre a despesa e o direito de monitorar a aplicação da receita. Os calotes na dívida pública desapareceram. Na opinião de North e Weingast, a Revolução Gloriosa promoveu uma revolução fiscal.

Foram cinco suas grandes mudanças institucionais: 1) eliminou um arcaico sistema fiscal e suas respectivas crises; 2) limitou a capacidade da Coroa de alterar regras fiscais sem autorização legislativa; 3) reafirmou o domínio parlamentar sobre a despesa; 4) garantiu ao Parlamento papel decisivo na criação de receitas e no monitoramento da despesa; 5) estabeleceu limites a tendências arbitrárias dos parlamentares.

O Parlamento investiu-se, assim, da função exclusiva de aprovar o Orçamento. Essa mesma atribuição foi inscrita nas Constituições de dois outros grandes movimentos revolucionários do Ocidente, quais sejam a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). Em nenhum desses casos vigora a visão de que o Orçamento é autorizativo.

North e Weingast concluem que a Revolução Gloriosa assegurou a ascensão da Grã-Bretanha à posição de potência hegemônica, que manteve por mais de três séculos. Sem a revolução fiscal e a limitação do poder da Coroa, a Inglaterra dificilmente teria sido o primeiro país a viver a Revolução Industrial nem teria vencido as guerras contra a França, substituindo-a, no século XIX, como a maior e mais poderosa economia da Europa.

Quanto ao Brasil, há indicações de que já foram criadas as condições para contarmos com um Orçamento sério, no qual todas as despesas devem ser impositivas. Já é hora de abandonar o lamentável uso da lei orçamentária como instrumento de barganha com o Congresso, mesmo que se suscitem temores de desastre fiscal. Na verdade, felizmente, as inovações e controles institucionais criados desde a democratização, a imprensa livre e o pluralismo da sociedade podem evitar que o Congresso se transforme em fonte de instabilidade macroeconômica.

No mesmo contexto, há que discutir também a redução drástica do valor das emendas parlamentares, limitando-as a um certo porcentual dos gastos discricionários e não do total. Experiências como as dos EUA, de Portugal e de outros países podem, além disso, justificar a abolição das emendas “Pix”. Este jornal tem apontado, aliás, os inconvenientes institucionais e morais desse tipo de emenda.

O Orçamento impositivo tende a melhorar a gestão e a alocação dos recursos, o que elevará a produtividade e o potencial de crescimento do país. Será também um grande passo civilizacional, que alinhará o Brasil às melhores práticas de formulação e execução das finanças públicas.

Nos últimos quarenta anos, o Brasil experimentou grande melhora nas instituições e nas estatísticas das finanças públicas, como mostram Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco (Política fiscal no Brasil de 1981 a 2023: uma retrospectiva histórica - Texto para discussão 157 - BNDES, disponível aqui). No início dos anos 1980, havia três Orçamentos federais: o da União, o Monetário e o da Previdência Social. O primeiro, único aprovado pelo Congresso, equilibrava receitas e despesas. O déficit público e os enormes subsídios apareciam nos outros dois.

O Orçamento Monetário (OM) abrangia as operações do Banco Central e do Banco do Brasil, particularmente as de financiamento da agricultura, da indústria e das exportações. Muitas delas tinham natureza nitidamente fiscal. Seus recursos provinham da expansão da dívida pública, a qual, ao contrário do que ocorre hoje, não se destinava a financiar déficits no Orçamento da União. Emissões de moeda eram outra fonte relevante.

O OM chegou a apoiar ações distantes das questões monetárias, como foram os casos de feiras e exposições e até de uma parte dos custos da Ponte Rio-Niterói. Com as reformas introduzidas entre 1986 e 1988, o OM foi abolido, transferindo-se suas atividades fiscais para o Orçamento da União, que também incorporou o da Previdência.

Visão de que o governo pode alterar as dotações orçamentárias fixadas em lei pelo Congresso é uma distorção Foto: Dida Sampaio/Estadão

Apesar dos avanços, permanece inacabada a modernização do processo orçamentário, ainda pleno de arcaísmos e distorções. A principal delas, a meu ver, é a visão de que o Orçamento é autorizativo, ou seja, o governo pode alterar a seu talante dotações orçamentárias fixadas em lei pelo Congresso.

É verdade que a Lei de Responsabilidade Fiscal autoriza o Executivo a contingenciar gastos, mas isso contraria o artigo 165, § 8º da Constituição, pelo qual “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa” (grifos meus). Traduzindo: a receita é estimada, mas a despesa é determinada pela lei. Não poderia ser descumprida por decreto ou por ações da Secretaria do Tesouro Nacional.

Outra distorção é o estabelecimento, pelo Executivo, de impostos e subsídios. São os casos das subvenções estabelecidas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), incluídas nas contas de luz. Tratam-se, na prática, de tributos sobre o consumo e os gastos, criados sem autorização legislativa. Os custos desses subsídios equivalem a 14% do consumo de energia elétrica.

Mais impressionante tem sido o aumento das emendas parlamentares ao Orçamento. Estudo de Marcos Mendes, disponível aqui, indica que elas representaram, em 2022, 24% das despesas discricionárias da União, isto é, as que não têm execução obrigatória. Nos Estados Unidos, país presidencialista como o Brasil, elas representam apenas 2,4%.

Para piorar, em 2015, emenda constitucional tornou livre a aplicação de emendas parlamentares em favor de Estados e municípios, o que representou, no entender de Felipe Salto, “uma má ideia”. Os recursos são repassados diretamente, sem a necessidade de celebração de convênio ou instrumento congênere. Em outras palavras, Estados e municípios são livres para aplicá-los onde bem entenderem. São as chamadas “emendas Pix”.

Essas distorções desmoralizam o Orçamento, a principal lei econômica e na qual se definem as prioridades do País. Em nações onde a peça orçamentária é levada a sério, não há contingenciamentos. Reduções de gastos são autorizadas apenas pelo Parlamento. Trata-se de processo mais legítimo, que assegura a discussão dos cortes, o que não é possível no Brasil.

Em discurso recente, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, afirmou que “o Orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Poder Legislativo em sua confecção e final aprovação”. Para ele, o orçamento não “pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo e muito menos de uma burocracia técnica que, apesar de seu preparo, não duvido, não foi eleita para escolher as prioridades da nação. E não gasta a sola do sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”. E prosseguiu: “Quanto mais intervenções o Congresso Nacional fizer no Orçamento, tenham certeza: mais o Brasil esquecido será ouvido. Nós somos o elo e a voz dos nossos 5.568 municípios”.

Arthur Lira se equivoca ao sugerir que a missão básica dos parlamentares é transferir recursos para Estados e municípios Foto: Wilton Junior/Estadão

Para o experimentado jornalista Merval Pereira, a quem muito admiro, “no presidencialismo, é o Executivo que dá as diretrizes gerais do governo, não cabendo ao Legislativo decidir para onde vão as verbas. Os parlamentares “precisam adaptar as necessidades de seus redutos eleitorais ao planejamento central, ou convencer o Executivo a incluir suas prioridades nos planos do governo”.

Ambos se equivocam, especialmente Lira, cujo discurso sugere que a missão básica dos parlamentares é transferir recursos para Estados e municípios. Se fosse assim, milhares de municípios ficariam de fora por não contarem com um padrinho no Congresso. Não foi essa a posição sustentada por deputados e senadores na Constituição de 1988.

O projeto inicial transferia 47% da arrecadação do Imposto de Renda e do IPI para Estados e municípios, e mais 3% para fundos regionais de desenvolvimento. Era uma elevação de 56,7%, representando perdas consideráveis da receita dos dois principais tributos da União. Dizia-se que era para extinguir o “pires na mão” de governadores e prefeitos nos gabinetes de Brasília. Apesar da opinião contrária do Executivo, a medida foi aprovada.

Posteriormente, aquele porcentual foi aumentado para 50%. Para minimizar os efeitos negativos das novas transferências, a União se viu obrigada a recorrer a tributos não partilháveis com governos subnacionais - as contribuições sociais -, o que piorou a qualidade e a carga do sistema tributário. Governadores e prefeitos continuam a buscar dinheiro em Brasília. O “pires na mão” permanece.

Não é assim que funciona o moderno sistema de finanças públicas. Suas origens remontam à já longínqua Carta Magna inglesa de 1215, pela qual o rei João Sem Terra cedeu a demandas de barões e bispos, aceitando que a elevação de impostos deveria submeter-se à sua prévia autorização. A cobrança somente poderia começar no exercício seguinte. A ideia vige até hoje. É o chamado princípio da anterioridade dos tributos.

Ao longo do tempo, todavia, os reis encontraram formas de contornar tal restrição, como assinalam Douglass North e Barry Weingast em seu clássico artigo Constitutions and Commitment:The Evolution of Institutions Governing Public Choice in Seventeenth-Century England, publicado em dezembro de 1989 pelo The Journal of Economic History. Passaram a recorrer a empréstimos compulsórios, à venda de terras, a concessões de patentes e monopólios, que por não serem impostos independiam da aprovação do Parlamento. Restauraram, além disso, o Power of Conveyance, que dava aos reis o direito de realizar compras governamentais por um valor fixo, abaixo dos preços de mercado.

Essas ações acarretavam crescente insatisfação. A expansão dos títulos de nobreza, que aumentava o número de membros da Câmara dos Lordes, teve efeito negativo entre os detentores de títulos hereditários, pois limitou sua capacidade de proteger-se contra atos da Coroa. As renovações compulsórias dos empréstimos, às vezes sem juros ou muitos nunca pagos, descontentavam os merchants (os empresários), que eram sua principal fonte.

O rei James II exacerbou o descontentamento com os sinais de que buscaria restabelecer o catolicismo e, assim, abolir a Igreja Anglicana, retomando a submissão de assuntos religiosos ao Vaticano. Ele também abusou da prerrogativa de editar proclamações e decretos sem audiência do Parlamento. A rejeição ao monarca desaguou na Revolução Gloriosa (1688), que o depôs e aboliu a monarquia absoluta. Rejeitou-se a ideia do “poder divino dos reis”, que os situava acima da lei.

Estabeleceu-se a supremacia do Parlamento, ao mesmo tempo em que o rei perdia a prerrogativa de demitir juízes, o que resultou na independência do Judiciário e no fortalecimento dos direitos de propriedade. Os parlamentares passaram a decidir sobre variadas questões, especialmente em matéria financeira, e a impor controles e restrições à ação da Coroa.

A exclusiva autoridade do Parlamento para criar e elevar impostos foi firmemente restabelecida. Mais tarde, isso incluiu a inédita atribuição de auditar as contas da Coroa. Essa combinação significou o exercício do poder de veto sobre a despesa e o direito de monitorar a aplicação da receita. Os calotes na dívida pública desapareceram. Na opinião de North e Weingast, a Revolução Gloriosa promoveu uma revolução fiscal.

Foram cinco suas grandes mudanças institucionais: 1) eliminou um arcaico sistema fiscal e suas respectivas crises; 2) limitou a capacidade da Coroa de alterar regras fiscais sem autorização legislativa; 3) reafirmou o domínio parlamentar sobre a despesa; 4) garantiu ao Parlamento papel decisivo na criação de receitas e no monitoramento da despesa; 5) estabeleceu limites a tendências arbitrárias dos parlamentares.

O Parlamento investiu-se, assim, da função exclusiva de aprovar o Orçamento. Essa mesma atribuição foi inscrita nas Constituições de dois outros grandes movimentos revolucionários do Ocidente, quais sejam a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). Em nenhum desses casos vigora a visão de que o Orçamento é autorizativo.

North e Weingast concluem que a Revolução Gloriosa assegurou a ascensão da Grã-Bretanha à posição de potência hegemônica, que manteve por mais de três séculos. Sem a revolução fiscal e a limitação do poder da Coroa, a Inglaterra dificilmente teria sido o primeiro país a viver a Revolução Industrial nem teria vencido as guerras contra a França, substituindo-a, no século XIX, como a maior e mais poderosa economia da Europa.

Quanto ao Brasil, há indicações de que já foram criadas as condições para contarmos com um Orçamento sério, no qual todas as despesas devem ser impositivas. Já é hora de abandonar o lamentável uso da lei orçamentária como instrumento de barganha com o Congresso, mesmo que se suscitem temores de desastre fiscal. Na verdade, felizmente, as inovações e controles institucionais criados desde a democratização, a imprensa livre e o pluralismo da sociedade podem evitar que o Congresso se transforme em fonte de instabilidade macroeconômica.

No mesmo contexto, há que discutir também a redução drástica do valor das emendas parlamentares, limitando-as a um certo porcentual dos gastos discricionários e não do total. Experiências como as dos EUA, de Portugal e de outros países podem, além disso, justificar a abolição das emendas “Pix”. Este jornal tem apontado, aliás, os inconvenientes institucionais e morais desse tipo de emenda.

O Orçamento impositivo tende a melhorar a gestão e a alocação dos recursos, o que elevará a produtividade e o potencial de crescimento do país. Será também um grande passo civilizacional, que alinhará o Brasil às melhores práticas de formulação e execução das finanças públicas.

Nos últimos quarenta anos, o Brasil experimentou grande melhora nas instituições e nas estatísticas das finanças públicas, como mostram Fabio Giambiagi e Guilherme Tinoco (Política fiscal no Brasil de 1981 a 2023: uma retrospectiva histórica - Texto para discussão 157 - BNDES, disponível aqui). No início dos anos 1980, havia três Orçamentos federais: o da União, o Monetário e o da Previdência Social. O primeiro, único aprovado pelo Congresso, equilibrava receitas e despesas. O déficit público e os enormes subsídios apareciam nos outros dois.

O Orçamento Monetário (OM) abrangia as operações do Banco Central e do Banco do Brasil, particularmente as de financiamento da agricultura, da indústria e das exportações. Muitas delas tinham natureza nitidamente fiscal. Seus recursos provinham da expansão da dívida pública, a qual, ao contrário do que ocorre hoje, não se destinava a financiar déficits no Orçamento da União. Emissões de moeda eram outra fonte relevante.

O OM chegou a apoiar ações distantes das questões monetárias, como foram os casos de feiras e exposições e até de uma parte dos custos da Ponte Rio-Niterói. Com as reformas introduzidas entre 1986 e 1988, o OM foi abolido, transferindo-se suas atividades fiscais para o Orçamento da União, que também incorporou o da Previdência.

Visão de que o governo pode alterar as dotações orçamentárias fixadas em lei pelo Congresso é uma distorção Foto: Dida Sampaio/Estadão

Apesar dos avanços, permanece inacabada a modernização do processo orçamentário, ainda pleno de arcaísmos e distorções. A principal delas, a meu ver, é a visão de que o Orçamento é autorizativo, ou seja, o governo pode alterar a seu talante dotações orçamentárias fixadas em lei pelo Congresso.

É verdade que a Lei de Responsabilidade Fiscal autoriza o Executivo a contingenciar gastos, mas isso contraria o artigo 165, § 8º da Constituição, pelo qual “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa” (grifos meus). Traduzindo: a receita é estimada, mas a despesa é determinada pela lei. Não poderia ser descumprida por decreto ou por ações da Secretaria do Tesouro Nacional.

Outra distorção é o estabelecimento, pelo Executivo, de impostos e subsídios. São os casos das subvenções estabelecidas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), incluídas nas contas de luz. Tratam-se, na prática, de tributos sobre o consumo e os gastos, criados sem autorização legislativa. Os custos desses subsídios equivalem a 14% do consumo de energia elétrica.

Mais impressionante tem sido o aumento das emendas parlamentares ao Orçamento. Estudo de Marcos Mendes, disponível aqui, indica que elas representaram, em 2022, 24% das despesas discricionárias da União, isto é, as que não têm execução obrigatória. Nos Estados Unidos, país presidencialista como o Brasil, elas representam apenas 2,4%.

Para piorar, em 2015, emenda constitucional tornou livre a aplicação de emendas parlamentares em favor de Estados e municípios, o que representou, no entender de Felipe Salto, “uma má ideia”. Os recursos são repassados diretamente, sem a necessidade de celebração de convênio ou instrumento congênere. Em outras palavras, Estados e municípios são livres para aplicá-los onde bem entenderem. São as chamadas “emendas Pix”.

Essas distorções desmoralizam o Orçamento, a principal lei econômica e na qual se definem as prioridades do País. Em nações onde a peça orçamentária é levada a sério, não há contingenciamentos. Reduções de gastos são autorizadas apenas pelo Parlamento. Trata-se de processo mais legítimo, que assegura a discussão dos cortes, o que não é possível no Brasil.

Em discurso recente, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, afirmou que “o Orçamento da União pertence a todos e todas e não apenas ao Executivo porque, se assim fosse, a Constituição não determinaria a necessária participação do Poder Legislativo em sua confecção e final aprovação”. Para ele, o orçamento não “pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo e muito menos de uma burocracia técnica que, apesar de seu preparo, não duvido, não foi eleita para escolher as prioridades da nação. E não gasta a sola do sapato percorrendo os pequenos municípios brasileiros como nós, parlamentares”. E prosseguiu: “Quanto mais intervenções o Congresso Nacional fizer no Orçamento, tenham certeza: mais o Brasil esquecido será ouvido. Nós somos o elo e a voz dos nossos 5.568 municípios”.

Arthur Lira se equivoca ao sugerir que a missão básica dos parlamentares é transferir recursos para Estados e municípios Foto: Wilton Junior/Estadão

Para o experimentado jornalista Merval Pereira, a quem muito admiro, “no presidencialismo, é o Executivo que dá as diretrizes gerais do governo, não cabendo ao Legislativo decidir para onde vão as verbas. Os parlamentares “precisam adaptar as necessidades de seus redutos eleitorais ao planejamento central, ou convencer o Executivo a incluir suas prioridades nos planos do governo”.

Ambos se equivocam, especialmente Lira, cujo discurso sugere que a missão básica dos parlamentares é transferir recursos para Estados e municípios. Se fosse assim, milhares de municípios ficariam de fora por não contarem com um padrinho no Congresso. Não foi essa a posição sustentada por deputados e senadores na Constituição de 1988.

O projeto inicial transferia 47% da arrecadação do Imposto de Renda e do IPI para Estados e municípios, e mais 3% para fundos regionais de desenvolvimento. Era uma elevação de 56,7%, representando perdas consideráveis da receita dos dois principais tributos da União. Dizia-se que era para extinguir o “pires na mão” de governadores e prefeitos nos gabinetes de Brasília. Apesar da opinião contrária do Executivo, a medida foi aprovada.

Posteriormente, aquele porcentual foi aumentado para 50%. Para minimizar os efeitos negativos das novas transferências, a União se viu obrigada a recorrer a tributos não partilháveis com governos subnacionais - as contribuições sociais -, o que piorou a qualidade e a carga do sistema tributário. Governadores e prefeitos continuam a buscar dinheiro em Brasília. O “pires na mão” permanece.

Não é assim que funciona o moderno sistema de finanças públicas. Suas origens remontam à já longínqua Carta Magna inglesa de 1215, pela qual o rei João Sem Terra cedeu a demandas de barões e bispos, aceitando que a elevação de impostos deveria submeter-se à sua prévia autorização. A cobrança somente poderia começar no exercício seguinte. A ideia vige até hoje. É o chamado princípio da anterioridade dos tributos.

Ao longo do tempo, todavia, os reis encontraram formas de contornar tal restrição, como assinalam Douglass North e Barry Weingast em seu clássico artigo Constitutions and Commitment:The Evolution of Institutions Governing Public Choice in Seventeenth-Century England, publicado em dezembro de 1989 pelo The Journal of Economic History. Passaram a recorrer a empréstimos compulsórios, à venda de terras, a concessões de patentes e monopólios, que por não serem impostos independiam da aprovação do Parlamento. Restauraram, além disso, o Power of Conveyance, que dava aos reis o direito de realizar compras governamentais por um valor fixo, abaixo dos preços de mercado.

Essas ações acarretavam crescente insatisfação. A expansão dos títulos de nobreza, que aumentava o número de membros da Câmara dos Lordes, teve efeito negativo entre os detentores de títulos hereditários, pois limitou sua capacidade de proteger-se contra atos da Coroa. As renovações compulsórias dos empréstimos, às vezes sem juros ou muitos nunca pagos, descontentavam os merchants (os empresários), que eram sua principal fonte.

O rei James II exacerbou o descontentamento com os sinais de que buscaria restabelecer o catolicismo e, assim, abolir a Igreja Anglicana, retomando a submissão de assuntos religiosos ao Vaticano. Ele também abusou da prerrogativa de editar proclamações e decretos sem audiência do Parlamento. A rejeição ao monarca desaguou na Revolução Gloriosa (1688), que o depôs e aboliu a monarquia absoluta. Rejeitou-se a ideia do “poder divino dos reis”, que os situava acima da lei.

Estabeleceu-se a supremacia do Parlamento, ao mesmo tempo em que o rei perdia a prerrogativa de demitir juízes, o que resultou na independência do Judiciário e no fortalecimento dos direitos de propriedade. Os parlamentares passaram a decidir sobre variadas questões, especialmente em matéria financeira, e a impor controles e restrições à ação da Coroa.

A exclusiva autoridade do Parlamento para criar e elevar impostos foi firmemente restabelecida. Mais tarde, isso incluiu a inédita atribuição de auditar as contas da Coroa. Essa combinação significou o exercício do poder de veto sobre a despesa e o direito de monitorar a aplicação da receita. Os calotes na dívida pública desapareceram. Na opinião de North e Weingast, a Revolução Gloriosa promoveu uma revolução fiscal.

Foram cinco suas grandes mudanças institucionais: 1) eliminou um arcaico sistema fiscal e suas respectivas crises; 2) limitou a capacidade da Coroa de alterar regras fiscais sem autorização legislativa; 3) reafirmou o domínio parlamentar sobre a despesa; 4) garantiu ao Parlamento papel decisivo na criação de receitas e no monitoramento da despesa; 5) estabeleceu limites a tendências arbitrárias dos parlamentares.

O Parlamento investiu-se, assim, da função exclusiva de aprovar o Orçamento. Essa mesma atribuição foi inscrita nas Constituições de dois outros grandes movimentos revolucionários do Ocidente, quais sejam a Revolução Americana (1776) e a Revolução Francesa (1789). Em nenhum desses casos vigora a visão de que o Orçamento é autorizativo.

North e Weingast concluem que a Revolução Gloriosa assegurou a ascensão da Grã-Bretanha à posição de potência hegemônica, que manteve por mais de três séculos. Sem a revolução fiscal e a limitação do poder da Coroa, a Inglaterra dificilmente teria sido o primeiro país a viver a Revolução Industrial nem teria vencido as guerras contra a França, substituindo-a, no século XIX, como a maior e mais poderosa economia da Europa.

Quanto ao Brasil, há indicações de que já foram criadas as condições para contarmos com um Orçamento sério, no qual todas as despesas devem ser impositivas. Já é hora de abandonar o lamentável uso da lei orçamentária como instrumento de barganha com o Congresso, mesmo que se suscitem temores de desastre fiscal. Na verdade, felizmente, as inovações e controles institucionais criados desde a democratização, a imprensa livre e o pluralismo da sociedade podem evitar que o Congresso se transforme em fonte de instabilidade macroeconômica.

No mesmo contexto, há que discutir também a redução drástica do valor das emendas parlamentares, limitando-as a um certo porcentual dos gastos discricionários e não do total. Experiências como as dos EUA, de Portugal e de outros países podem, além disso, justificar a abolição das emendas “Pix”. Este jornal tem apontado, aliás, os inconvenientes institucionais e morais desse tipo de emenda.

O Orçamento impositivo tende a melhorar a gestão e a alocação dos recursos, o que elevará a produtividade e o potencial de crescimento do país. Será também um grande passo civilizacional, que alinhará o Brasil às melhores práticas de formulação e execução das finanças públicas.

Análise por Maílson da Nóbrega

Ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria

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