Demorou um quarto de século, mas em 6 de dezembro, na segunda tentativa, a União Europeia (UE) e o Mercosul, um bloco baseado no Brasil e na Argentina, finalizaram o texto de um amplo tratado que consagra a cooperação comercial e política. Seu impacto sobre o comércio mundial será modesto. Mas seu simbolismo geopolítico é muito maior. Com os Estados Unidos prestes a se tornarem ainda mais protecionistas sob o comando de Donald Trump e com a grande e crescente influência da China na América Latina, o tratado marca um esforço para fortalecer as relações entre duas regiões democráticas há muito ligadas pela cultura e pela história. Mas sua ratificação pelos europeus está longe de ser certa, já que os agricultores influentes do continente temem o agronegócio altamente eficientes do Mercosul.
As negociações entre os dois blocos começaram em 1999, no auge do livre comércio e da globalização. Mas elas prosseguiram de forma desordenada. Foram necessários 20 anos, o advento de Trump e a ascensão da China para produzir um acordo inicial em 2019. Mas ambos os lados tinham dúvidas. Muitos europeus se opuseram ao apoio agressivo de Jair Bolsonaro, o presidente de extrema-direita do Brasil de 2019-23, à agricultura, pecuária e mineração na floresta amazônica. E, na época, o esquerdista Luiz Inácio Lula da Silva (conhecido como Lula), que estava na oposição, e o governo da Argentina estavam preocupados com que conceder mais acesso às exportações de manufaturados da UE só serviria para acelerar a desindustrialização de seus países.
Nos últimos 18 meses, Lula, agora de volta à presidência, e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, tentaram concluir o acordo. Lula, que esta semana foi submetido a uma cirurgia por uma hemorragia cerebral, conseguiu uma exclusão parcial das compras governamentais; o serviço de saúde do Brasil continuará a comprar principalmente de empresas farmacêuticas locais. O novo acordo incorpora o Acordo de Paris sobre o combate às mudanças climáticas. Um novo “mecanismo de reequilíbrio” permite que qualquer um dos lados invoque a mediação e uma possível retaliação se ações unilaterais, como a regulamentação proposta pela UE sobre o desmatamento, prejudicarem o comércio da outra parte.
Se a comissão estava preparada para ser mais flexível do que no passado, é porque a invasão da Ucrânia pela Rússia e o retorno de Trump fizeram muitos líderes europeus repensarem. “Para a UE, isso é importante do ponto de vista econômico, mas é uma decisão geopolítica”, diz Cecilia Malmström, ex-comissária europeia de comércio. “Com uma possível guerra tarifária se aproximando, a Europa precisa de amigos e aliados.”
O acordo não é uma revolução no comércio livre. Ele removerá as tarifas de cerca de 90% do comércio de mercadorias entre as duas partes, mas principalmente em um período de até 12 anos e, em alguns casos, mais longo. As exportações agrícolas do Mercosul estarão sujeitas a cotas que aumentarão gradualmente. No entanto, o acordo é importante. Os principais membros do Mercosul, que também incluem o Paraguai e o Uruguai, têm uma população combinada de 275 milhões de pessoas e um PIB total de US$ 3 trilhões (R$ 18 trilhões), o que o torna o maior parceiro econômico da UE, depois do Japão e da Grã-Bretanha. (A Bolívia entrou para o Mercosul este ano, mas não faz parte do acordo). O comércio total entre os dois blocos é de cerca de US$ 150 bilhões (R$ 904 bilhões) por ano.
Em um estudo sobre o acordo de 2019, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada do Brasil (Ipea), um think-tank ligado ao governo, calculou que o Brasil teria os maiores ganhos, com mais US$ 6,2 bilhões (R$ 37,4 bilhões) em exportações agrícolas entre 2024 e 2040. Mas as exportações europeias de produtos manufaturados também aumentariam. E a UE conseguiu que o Mercosul reconhecesse a definição geográfica de mais de 350 produtos: portanto, nada mais de “champanhe” argentino ou “gorgonzola” brasileiro.
Talvez mais importante, o acordo pode levar a um aumento no comércio de serviços e no investimento europeu no Mercosul, diz Welber Barral, ex-secretário de comércio do Brasil. “Ele aumenta a segurança jurídica para os investidores e a reforça no Mercosul”, diz ele. A Europa, em particular, valoriza o acesso seguro a minerais e matérias-primas essenciais para a energia verde. O Brasil e a Argentina são fontes significativas de cobre e lítio, e o Brasil também tem terras raras (minerais usados em aplicações industriais e tecnológicas). Acima de tudo, o acordo fornece à Europa uma estratégia para a América do Sul, uma região em que ela continua sendo uma importante parceira econômica, mas que vem perdendo força rapidamente para a China.
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A mudança de Lula de cético para defensor do acordo reflete seu desejo de que o Brasil mantenha sua autonomia em um mundo onde Trump e a China pressionam os países a tomar partido. O Brasil tem se sentido incomodado com a iniciativa da China de expandir o grupo Brics em uma frente antiocidental. “Ter alternativas é fundamental”, diz Oliver Stuenkel, da Fundação Getulio Vargas, uma universidade brasileira. “Quanto mais o Brasil e outros países da América Latina puderem trabalhar para diversificar suas parcerias estratégicas, melhor.” A mesma lógica se aplica ao lado europeu.
O acordo pode reviver o Mercosul, uma pedra angular da política externa do Brasil desde a década de 1990. Ele esteve perto da morte. O crescimento das exportações de commodities de seus membros para a China, o declínio da indústria e a volatilidade política reduziram a importância que o bloco teve nos primeiros anos após sua fundação em 1994. Em parte devido ao protecionismo brasileiro, o Mercosul já havia fechado acordos comerciais apenas com economias pequenas, como as de Israel, Egito e Cingapura. O Uruguai tem flertado com a possibilidade de fechar um acordo comercial bilateral com a China, o que seria contrário às regras do Mercosul. O novo presidente da Argentina, Javier Milei, ameaçou sair. O acordo com a UE “dá ao Mercosul uma tábua de salvação”, diz Stuenkel. “Se ele for aprovado, há uma chance de que Milei o mantenha.”
Para facilitar a ratificação na Europa, a parte comercial foi duplicada em um acordo separado que requer apenas o consentimento do Conselho Europeu e do Parlamento Europeu para entrar em vigor. O tratado completo deve ser aprovado pelos parlamentos nacionais. O Conselho provavelmente discutirá o acordo no verão.
Ele está dividido entre seus instintos protecionistas e os cálculos geopolíticos. A França se opõe ao acordo comercial, mas talvez não consiga obter a minoria de bloqueio necessária de pelo menos quatro países, totalizando 35% da população da UE. Com a Alemanha, a Espanha e a Suécia fortemente a favor, o resultado pode depender da Polônia e da Itália. A credibilidade da UE como parceira econômica estará em jogo.
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