Insistência do Brasil em debater compras públicas ameaça acordo Mercosul-UE, diz ala do governo


Setores apontam que texto encabeçado por Casa Civil e Itamaraty traz itens tecnicamente desnecessários, que remetem a outro texto de dez anos atrás e que podem atrapalhar negociação

Por Beatriz Bulla
Atualização:

A contraproposta que Brasília pretende fazer à União Europeia, se avalizada pelos demais parceiros do Mercosul, para avançar no acordo comercial entre os dois blocos, pode ter efeito contrário e travar as negociações, segundo uma ala do próprio governo. O texto deve ser apresentado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva por integrantes do Itamaraty e da Casa Civil ainda nesta semana. Com a permissão de Lula sobre a nova proposta, o documento será compartilhado com Argentina, Uruguai e Paraguai para, então, ser levado aos europeus.

O texto que foi elaborado e que parte do governo diz ser fruto de um consenso entre todos os ministérios envolvidos está longe de ter agradado a ala que se diz mais liberal na Esplanada. A insistência de ministros mais próximos a Lula em reabrir as discussões com os europeus sobre o capítulo relativo a compras governamentais que poderão ser feitas após o acordo UE-Mercosul coloca, de acordo com fontes insatisfeitas com as negociações, o acordo em risco.

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O acordo União Europeia-Mercosul abarca uma série de temas, como bens, serviços, facilitação de comércio e compras governamentais. No capítulo relativo às compras do governo, a intenção do acordo UE-Mercosul é permitir competitividade de estrangeiros em contratações públicas e limitar aquelas feitas sem licitação. Assim, empresas europeias não poderiam ser discriminadas nos processos de licitação no Brasil, por exemplo, salvo em determinados casos. Essa disposição é alinhada com a lei de licitações de 2021, que prevê que estrangeiros devem poder participar das contratações.

Antes de assinar o acordo de 2019, o Brasil negociou com os europeus situações e áreas em que o governo poderia se isentar dessa obrigação assumida com os europeus e usar as compras governamentais para promover políticas públicas. Estatais, por exemplo, podem ter preferência na contratação pelo governo. Compras de pequenas e médias empresas, para incentivar empreendedorismo social, compras para o setor de defesa e compras que sejam consideradas estratégicas para a área de saúde já estão entre as exceções previstas.

O debate sobre reabrir a discussão a respeito do tema colocou, de um lado, os ministérios da Indústria e Comércio, Planejamento, Defesa e Agricultura, e, de outro, Casa Civil, Itamaraty, Saúde e Gestão. Interlocutores do primeiro grupo disseram, internamente, que parte das exceções pleiteadas pela Casa Civil para serem incluídas na contraproposta é tecnicamente desnecessária, remete a um texto de dez anos atrás e atrapalhará o processo de negociação com europeus, podendo inclusive inviabilizar uma conclusão rápida do acordo.

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Lula e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em encontro em Brasília, em junho Foto: Wilton Junior/Estadão

Um dos debates mais recentes girou em torno da possibilidade de incluir, no acordo, exceção para o governo contratar empresas nacionais para serviços de construção civil. O governo Lula tenta estimular o setor através de um novo PAC. Técnicos com conhecimento do texto já assinado em 2019, no entanto, ponderam que esse tipo de debate é infrutífero, pois o acordo não afetaria políticas do PAC por oito anos. O pedido de Lula para proteger pequenas e médias empresas, de acordo com os mesmos técnicos, também já faz parte do acordo e pode ser feito sem novas alterações ou pedidos adicionais.

De outro lado, no entanto, a ponderação feita no governo é a de que é preciso incluir no desenho final do acordo UE-Mercosul temas caros para a atual administração, como ampliar o espaço para o governo poder usar as compras públicas para induzir uma política nacional de industrialização em setores importantes, como o da saúde. O principal argumento, aqui, é o de que o cenário mundial mudou desde 2019, quando o texto foi fechado, para cá. Pandemia e guerra na Ucrânia fizeram os países repensarem suas cadeias de produção para torná-las mais próximas e menos dependentes de China e Índia, por exemplo, no tema da saúde.

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O Estadão ouviu pessoas de cinco ministérios, que pediram para não ser identificadas.

Aprovação rápida

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Parte do setor industrial, que seria beneficiado com a maior flexibilização no capítulo sobre compras governamentais, no entanto, também não acha boa ideia estender a discussão. Em entrevista recente ao Estadão, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade, defende que o governo se empenhe em aprovar com celeridade o acordo, em vez de insistir em ampliar possibilidades de exceção para compras governamentais (um ponto que poderia beneficiar a indústria).

“O acordo já foi discutido por muitos e muitos anos, é o momento de virarmos essa página. Precisamos urgentemente desse acordo. A questão das compras governamentais, que envolve principalmente a micro e pequena empresa, tem formas de desenvolvermos no Brasil sem interferência com o que está no acordo Mercosul-UE. Precisamos avançar no acordo, é fundamental para a economia toda do País. Não temos mais tempo para ficar discutindo e gastar mais anos e anos”, defende Andrade.

O presidente Lula se encontrou em junho, em Paris, com o presidente francês Emmanuel Macron  Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República
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A crítica principal que vem da ala considerada liberal é a de que argumentos técnicos foram desconsiderados no texto final e que a Casa Civil, ao lado do Itamaraty, acabou liderando esse debate sem participação ampla como havia sido prometido. Afirmam, também, que o Brasil já tem acordos de comércio com as cláusulas incluídas no UE-Mercosul, como o assinado com o Chile. A outra ala do governo, no entanto, considera que é importante que Lula deixe seu DNA no acordo, que foi assinado pela gestão passada, de Jair Bolsonaro.

O desconforto e a divisão de opiniões foram colocados às claras dentro do governo, embora, com o texto considerado fechado, haja agora uma tentativa de minimizar a cisão interna por parte do entorno do presidente.

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Nesta quarta-feira, 12, Lula mostrou, mais uma vez, resistência às imposições da União Europeia e afirmou que o Brasil não irá abrir mão das compras governamentais no acordo. “Nós vamos ter que ter uma disputa”, disse.

O presidente quer que a contraproposta esteja pronta e seja enviada aos parceiros do Mercosul antes de embarcar, no final de semana, para Bruxelas, onde participará de encontro da Comunidade dos Estados da América Latina e Caribe (Celac) com a União Europeia. Ele não irá apresentar o documento aos europeus, mas quer indicar que o Brasil já fez a sua parte e aguardará o retorno dos parceiros regionais para dar andamento às tratativas. Na Europa, Lula também deve fazer comentários sobre parte das propostas brasileiras apresentadas para Uruguai, Paraguai e Argentina.

A expectativa de negociadores é que a rodada de tratativas com europeus aconteça entre agosto e setembro, já com o Brasil na presidência pro tempore do Mercosul.

O Ministério da Fazenda tem tentado colocar panos quentes na divisão. A despeito de, internamente, o ministro Fernando Haddad ter dado sinais de que é favorável a uma conclusão rápida do acordo, a pasta não tem encabeçado um movimento mais crítico às sugestões da Casa Civil.

Rui Costa (E), ministro da Casa Civil, o presidente Lula (C) e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em reunião no Palácio do Planalto  Foto: Wilton Júnior/Estadão

A leitura de assessores de Haddad consultados pela reportagem do Estadão é a de que as condições políticas para assinatura do acordo de forma rápida não estão presentes — e não é por causa do Brasil, mas sim da Europa. Resistências públicas do governo francês ao acordo e a possibilidade de eleição de um governo de direita ou extrema direita na Espanha, no fim de julho, estão entre os desafios no cenário internacional.

O acordo de livre comércio entre Mercosul e UE foi firmado em junho de 2019, depois de duas décadas de negociação. A conclusão completa do texto e o começo do processo para sua implementação ficaram travadas nos últimos anos, pois os europeus resistiam em tratar do assunto com o governo Jair Bolsonaro, diante da piora nos índices de desmatamento na Amazônia. Agora, apesar do trabalho dos dois lados para concluir o acordo ainda neste ano, há negociações adicionais colocadas à mesa pelos europeus e pelo governo Lula.

Os sinais de boa vontade dos dois lados para tirar o acerto do papel foram dados no início deste ano, com o estabelecimento de um cronograma para encerrar até julho todas as pendências, um prazo que não será cumprido. Em março, no entanto, a União Europeia enviou ao Mercosul um protocolo adicional, com novas condicionantes na área ambiental.

O movimento foi considerado “desbalanceado” por Brasília, que discorda da ideia de ter um acordo adicional vinculante, do enfoque considerado punitivista e da abordagem sobre meio ambiente feita pela União Europeia. Do outro lado, Brasília quer aproveitar a negociação aberta para incluir a possibilidade de mais exceções para manter produtos nacionais nas compras governamentais, tema defendido publicamente por Lula.

Procurada, a Casa Civil não retornou contatos feitos pelo Estadão até a publicação desta reportagem. O Itamaraty informou que quem se pronuncia sobre o acordo é a Presidência da República./Com Sofia Aguiar e Bruno Luiz

A contraproposta que Brasília pretende fazer à União Europeia, se avalizada pelos demais parceiros do Mercosul, para avançar no acordo comercial entre os dois blocos, pode ter efeito contrário e travar as negociações, segundo uma ala do próprio governo. O texto deve ser apresentado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva por integrantes do Itamaraty e da Casa Civil ainda nesta semana. Com a permissão de Lula sobre a nova proposta, o documento será compartilhado com Argentina, Uruguai e Paraguai para, então, ser levado aos europeus.

O texto que foi elaborado e que parte do governo diz ser fruto de um consenso entre todos os ministérios envolvidos está longe de ter agradado a ala que se diz mais liberal na Esplanada. A insistência de ministros mais próximos a Lula em reabrir as discussões com os europeus sobre o capítulo relativo a compras governamentais que poderão ser feitas após o acordo UE-Mercosul coloca, de acordo com fontes insatisfeitas com as negociações, o acordo em risco.

O acordo União Europeia-Mercosul abarca uma série de temas, como bens, serviços, facilitação de comércio e compras governamentais. No capítulo relativo às compras do governo, a intenção do acordo UE-Mercosul é permitir competitividade de estrangeiros em contratações públicas e limitar aquelas feitas sem licitação. Assim, empresas europeias não poderiam ser discriminadas nos processos de licitação no Brasil, por exemplo, salvo em determinados casos. Essa disposição é alinhada com a lei de licitações de 2021, que prevê que estrangeiros devem poder participar das contratações.

Antes de assinar o acordo de 2019, o Brasil negociou com os europeus situações e áreas em que o governo poderia se isentar dessa obrigação assumida com os europeus e usar as compras governamentais para promover políticas públicas. Estatais, por exemplo, podem ter preferência na contratação pelo governo. Compras de pequenas e médias empresas, para incentivar empreendedorismo social, compras para o setor de defesa e compras que sejam consideradas estratégicas para a área de saúde já estão entre as exceções previstas.

O debate sobre reabrir a discussão a respeito do tema colocou, de um lado, os ministérios da Indústria e Comércio, Planejamento, Defesa e Agricultura, e, de outro, Casa Civil, Itamaraty, Saúde e Gestão. Interlocutores do primeiro grupo disseram, internamente, que parte das exceções pleiteadas pela Casa Civil para serem incluídas na contraproposta é tecnicamente desnecessária, remete a um texto de dez anos atrás e atrapalhará o processo de negociação com europeus, podendo inclusive inviabilizar uma conclusão rápida do acordo.

Lula e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em encontro em Brasília, em junho Foto: Wilton Junior/Estadão

Um dos debates mais recentes girou em torno da possibilidade de incluir, no acordo, exceção para o governo contratar empresas nacionais para serviços de construção civil. O governo Lula tenta estimular o setor através de um novo PAC. Técnicos com conhecimento do texto já assinado em 2019, no entanto, ponderam que esse tipo de debate é infrutífero, pois o acordo não afetaria políticas do PAC por oito anos. O pedido de Lula para proteger pequenas e médias empresas, de acordo com os mesmos técnicos, também já faz parte do acordo e pode ser feito sem novas alterações ou pedidos adicionais.

De outro lado, no entanto, a ponderação feita no governo é a de que é preciso incluir no desenho final do acordo UE-Mercosul temas caros para a atual administração, como ampliar o espaço para o governo poder usar as compras públicas para induzir uma política nacional de industrialização em setores importantes, como o da saúde. O principal argumento, aqui, é o de que o cenário mundial mudou desde 2019, quando o texto foi fechado, para cá. Pandemia e guerra na Ucrânia fizeram os países repensarem suas cadeias de produção para torná-las mais próximas e menos dependentes de China e Índia, por exemplo, no tema da saúde.

O Estadão ouviu pessoas de cinco ministérios, que pediram para não ser identificadas.

Aprovação rápida

Parte do setor industrial, que seria beneficiado com a maior flexibilização no capítulo sobre compras governamentais, no entanto, também não acha boa ideia estender a discussão. Em entrevista recente ao Estadão, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade, defende que o governo se empenhe em aprovar com celeridade o acordo, em vez de insistir em ampliar possibilidades de exceção para compras governamentais (um ponto que poderia beneficiar a indústria).

“O acordo já foi discutido por muitos e muitos anos, é o momento de virarmos essa página. Precisamos urgentemente desse acordo. A questão das compras governamentais, que envolve principalmente a micro e pequena empresa, tem formas de desenvolvermos no Brasil sem interferência com o que está no acordo Mercosul-UE. Precisamos avançar no acordo, é fundamental para a economia toda do País. Não temos mais tempo para ficar discutindo e gastar mais anos e anos”, defende Andrade.

O presidente Lula se encontrou em junho, em Paris, com o presidente francês Emmanuel Macron  Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

A crítica principal que vem da ala considerada liberal é a de que argumentos técnicos foram desconsiderados no texto final e que a Casa Civil, ao lado do Itamaraty, acabou liderando esse debate sem participação ampla como havia sido prometido. Afirmam, também, que o Brasil já tem acordos de comércio com as cláusulas incluídas no UE-Mercosul, como o assinado com o Chile. A outra ala do governo, no entanto, considera que é importante que Lula deixe seu DNA no acordo, que foi assinado pela gestão passada, de Jair Bolsonaro.

O desconforto e a divisão de opiniões foram colocados às claras dentro do governo, embora, com o texto considerado fechado, haja agora uma tentativa de minimizar a cisão interna por parte do entorno do presidente.

Nesta quarta-feira, 12, Lula mostrou, mais uma vez, resistência às imposições da União Europeia e afirmou que o Brasil não irá abrir mão das compras governamentais no acordo. “Nós vamos ter que ter uma disputa”, disse.

O presidente quer que a contraproposta esteja pronta e seja enviada aos parceiros do Mercosul antes de embarcar, no final de semana, para Bruxelas, onde participará de encontro da Comunidade dos Estados da América Latina e Caribe (Celac) com a União Europeia. Ele não irá apresentar o documento aos europeus, mas quer indicar que o Brasil já fez a sua parte e aguardará o retorno dos parceiros regionais para dar andamento às tratativas. Na Europa, Lula também deve fazer comentários sobre parte das propostas brasileiras apresentadas para Uruguai, Paraguai e Argentina.

A expectativa de negociadores é que a rodada de tratativas com europeus aconteça entre agosto e setembro, já com o Brasil na presidência pro tempore do Mercosul.

O Ministério da Fazenda tem tentado colocar panos quentes na divisão. A despeito de, internamente, o ministro Fernando Haddad ter dado sinais de que é favorável a uma conclusão rápida do acordo, a pasta não tem encabeçado um movimento mais crítico às sugestões da Casa Civil.

Rui Costa (E), ministro da Casa Civil, o presidente Lula (C) e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em reunião no Palácio do Planalto  Foto: Wilton Júnior/Estadão

A leitura de assessores de Haddad consultados pela reportagem do Estadão é a de que as condições políticas para assinatura do acordo de forma rápida não estão presentes — e não é por causa do Brasil, mas sim da Europa. Resistências públicas do governo francês ao acordo e a possibilidade de eleição de um governo de direita ou extrema direita na Espanha, no fim de julho, estão entre os desafios no cenário internacional.

O acordo de livre comércio entre Mercosul e UE foi firmado em junho de 2019, depois de duas décadas de negociação. A conclusão completa do texto e o começo do processo para sua implementação ficaram travadas nos últimos anos, pois os europeus resistiam em tratar do assunto com o governo Jair Bolsonaro, diante da piora nos índices de desmatamento na Amazônia. Agora, apesar do trabalho dos dois lados para concluir o acordo ainda neste ano, há negociações adicionais colocadas à mesa pelos europeus e pelo governo Lula.

Os sinais de boa vontade dos dois lados para tirar o acerto do papel foram dados no início deste ano, com o estabelecimento de um cronograma para encerrar até julho todas as pendências, um prazo que não será cumprido. Em março, no entanto, a União Europeia enviou ao Mercosul um protocolo adicional, com novas condicionantes na área ambiental.

O movimento foi considerado “desbalanceado” por Brasília, que discorda da ideia de ter um acordo adicional vinculante, do enfoque considerado punitivista e da abordagem sobre meio ambiente feita pela União Europeia. Do outro lado, Brasília quer aproveitar a negociação aberta para incluir a possibilidade de mais exceções para manter produtos nacionais nas compras governamentais, tema defendido publicamente por Lula.

Procurada, a Casa Civil não retornou contatos feitos pelo Estadão até a publicação desta reportagem. O Itamaraty informou que quem se pronuncia sobre o acordo é a Presidência da República./Com Sofia Aguiar e Bruno Luiz

A contraproposta que Brasília pretende fazer à União Europeia, se avalizada pelos demais parceiros do Mercosul, para avançar no acordo comercial entre os dois blocos, pode ter efeito contrário e travar as negociações, segundo uma ala do próprio governo. O texto deve ser apresentado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva por integrantes do Itamaraty e da Casa Civil ainda nesta semana. Com a permissão de Lula sobre a nova proposta, o documento será compartilhado com Argentina, Uruguai e Paraguai para, então, ser levado aos europeus.

O texto que foi elaborado e que parte do governo diz ser fruto de um consenso entre todos os ministérios envolvidos está longe de ter agradado a ala que se diz mais liberal na Esplanada. A insistência de ministros mais próximos a Lula em reabrir as discussões com os europeus sobre o capítulo relativo a compras governamentais que poderão ser feitas após o acordo UE-Mercosul coloca, de acordo com fontes insatisfeitas com as negociações, o acordo em risco.

O acordo União Europeia-Mercosul abarca uma série de temas, como bens, serviços, facilitação de comércio e compras governamentais. No capítulo relativo às compras do governo, a intenção do acordo UE-Mercosul é permitir competitividade de estrangeiros em contratações públicas e limitar aquelas feitas sem licitação. Assim, empresas europeias não poderiam ser discriminadas nos processos de licitação no Brasil, por exemplo, salvo em determinados casos. Essa disposição é alinhada com a lei de licitações de 2021, que prevê que estrangeiros devem poder participar das contratações.

Antes de assinar o acordo de 2019, o Brasil negociou com os europeus situações e áreas em que o governo poderia se isentar dessa obrigação assumida com os europeus e usar as compras governamentais para promover políticas públicas. Estatais, por exemplo, podem ter preferência na contratação pelo governo. Compras de pequenas e médias empresas, para incentivar empreendedorismo social, compras para o setor de defesa e compras que sejam consideradas estratégicas para a área de saúde já estão entre as exceções previstas.

O debate sobre reabrir a discussão a respeito do tema colocou, de um lado, os ministérios da Indústria e Comércio, Planejamento, Defesa e Agricultura, e, de outro, Casa Civil, Itamaraty, Saúde e Gestão. Interlocutores do primeiro grupo disseram, internamente, que parte das exceções pleiteadas pela Casa Civil para serem incluídas na contraproposta é tecnicamente desnecessária, remete a um texto de dez anos atrás e atrapalhará o processo de negociação com europeus, podendo inclusive inviabilizar uma conclusão rápida do acordo.

Lula e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em encontro em Brasília, em junho Foto: Wilton Junior/Estadão

Um dos debates mais recentes girou em torno da possibilidade de incluir, no acordo, exceção para o governo contratar empresas nacionais para serviços de construção civil. O governo Lula tenta estimular o setor através de um novo PAC. Técnicos com conhecimento do texto já assinado em 2019, no entanto, ponderam que esse tipo de debate é infrutífero, pois o acordo não afetaria políticas do PAC por oito anos. O pedido de Lula para proteger pequenas e médias empresas, de acordo com os mesmos técnicos, também já faz parte do acordo e pode ser feito sem novas alterações ou pedidos adicionais.

De outro lado, no entanto, a ponderação feita no governo é a de que é preciso incluir no desenho final do acordo UE-Mercosul temas caros para a atual administração, como ampliar o espaço para o governo poder usar as compras públicas para induzir uma política nacional de industrialização em setores importantes, como o da saúde. O principal argumento, aqui, é o de que o cenário mundial mudou desde 2019, quando o texto foi fechado, para cá. Pandemia e guerra na Ucrânia fizeram os países repensarem suas cadeias de produção para torná-las mais próximas e menos dependentes de China e Índia, por exemplo, no tema da saúde.

O Estadão ouviu pessoas de cinco ministérios, que pediram para não ser identificadas.

Aprovação rápida

Parte do setor industrial, que seria beneficiado com a maior flexibilização no capítulo sobre compras governamentais, no entanto, também não acha boa ideia estender a discussão. Em entrevista recente ao Estadão, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade, defende que o governo se empenhe em aprovar com celeridade o acordo, em vez de insistir em ampliar possibilidades de exceção para compras governamentais (um ponto que poderia beneficiar a indústria).

“O acordo já foi discutido por muitos e muitos anos, é o momento de virarmos essa página. Precisamos urgentemente desse acordo. A questão das compras governamentais, que envolve principalmente a micro e pequena empresa, tem formas de desenvolvermos no Brasil sem interferência com o que está no acordo Mercosul-UE. Precisamos avançar no acordo, é fundamental para a economia toda do País. Não temos mais tempo para ficar discutindo e gastar mais anos e anos”, defende Andrade.

O presidente Lula se encontrou em junho, em Paris, com o presidente francês Emmanuel Macron  Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

A crítica principal que vem da ala considerada liberal é a de que argumentos técnicos foram desconsiderados no texto final e que a Casa Civil, ao lado do Itamaraty, acabou liderando esse debate sem participação ampla como havia sido prometido. Afirmam, também, que o Brasil já tem acordos de comércio com as cláusulas incluídas no UE-Mercosul, como o assinado com o Chile. A outra ala do governo, no entanto, considera que é importante que Lula deixe seu DNA no acordo, que foi assinado pela gestão passada, de Jair Bolsonaro.

O desconforto e a divisão de opiniões foram colocados às claras dentro do governo, embora, com o texto considerado fechado, haja agora uma tentativa de minimizar a cisão interna por parte do entorno do presidente.

Nesta quarta-feira, 12, Lula mostrou, mais uma vez, resistência às imposições da União Europeia e afirmou que o Brasil não irá abrir mão das compras governamentais no acordo. “Nós vamos ter que ter uma disputa”, disse.

O presidente quer que a contraproposta esteja pronta e seja enviada aos parceiros do Mercosul antes de embarcar, no final de semana, para Bruxelas, onde participará de encontro da Comunidade dos Estados da América Latina e Caribe (Celac) com a União Europeia. Ele não irá apresentar o documento aos europeus, mas quer indicar que o Brasil já fez a sua parte e aguardará o retorno dos parceiros regionais para dar andamento às tratativas. Na Europa, Lula também deve fazer comentários sobre parte das propostas brasileiras apresentadas para Uruguai, Paraguai e Argentina.

A expectativa de negociadores é que a rodada de tratativas com europeus aconteça entre agosto e setembro, já com o Brasil na presidência pro tempore do Mercosul.

O Ministério da Fazenda tem tentado colocar panos quentes na divisão. A despeito de, internamente, o ministro Fernando Haddad ter dado sinais de que é favorável a uma conclusão rápida do acordo, a pasta não tem encabeçado um movimento mais crítico às sugestões da Casa Civil.

Rui Costa (E), ministro da Casa Civil, o presidente Lula (C) e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em reunião no Palácio do Planalto  Foto: Wilton Júnior/Estadão

A leitura de assessores de Haddad consultados pela reportagem do Estadão é a de que as condições políticas para assinatura do acordo de forma rápida não estão presentes — e não é por causa do Brasil, mas sim da Europa. Resistências públicas do governo francês ao acordo e a possibilidade de eleição de um governo de direita ou extrema direita na Espanha, no fim de julho, estão entre os desafios no cenário internacional.

O acordo de livre comércio entre Mercosul e UE foi firmado em junho de 2019, depois de duas décadas de negociação. A conclusão completa do texto e o começo do processo para sua implementação ficaram travadas nos últimos anos, pois os europeus resistiam em tratar do assunto com o governo Jair Bolsonaro, diante da piora nos índices de desmatamento na Amazônia. Agora, apesar do trabalho dos dois lados para concluir o acordo ainda neste ano, há negociações adicionais colocadas à mesa pelos europeus e pelo governo Lula.

Os sinais de boa vontade dos dois lados para tirar o acerto do papel foram dados no início deste ano, com o estabelecimento de um cronograma para encerrar até julho todas as pendências, um prazo que não será cumprido. Em março, no entanto, a União Europeia enviou ao Mercosul um protocolo adicional, com novas condicionantes na área ambiental.

O movimento foi considerado “desbalanceado” por Brasília, que discorda da ideia de ter um acordo adicional vinculante, do enfoque considerado punitivista e da abordagem sobre meio ambiente feita pela União Europeia. Do outro lado, Brasília quer aproveitar a negociação aberta para incluir a possibilidade de mais exceções para manter produtos nacionais nas compras governamentais, tema defendido publicamente por Lula.

Procurada, a Casa Civil não retornou contatos feitos pelo Estadão até a publicação desta reportagem. O Itamaraty informou que quem se pronuncia sobre o acordo é a Presidência da República./Com Sofia Aguiar e Bruno Luiz

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