Para fazer frente ao enorme desafio representado pela implantação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na área da saúde - especialmente no seu projeto dedicado ao desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde, por meio do qual pretende estimular a produção nacional de medicamentos e assegurar a oferta de medicamentos essenciais à população -, o governo brasileiro precisa alterar o marco legal que rege as operações do Laboratório Farmanguinhos. É de urgente necessidade transformar esse laboratório - que já demonstrou ser uma importante ponta de lança para a viabilização do Complexo Industrial da Saúde - em empresa pública vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Somente sob uma nova configuração jurídica, que resulte em agilidade e em flexibilidade administrativa, financeira e operacional, o principal laboratório público do Brasil poderá cumprir seu papel de liderança na recuperação da indústria farmacêutica nacional, viabilizando, dessa maneira, a montagem de estratégicas parcerias público-privadas. O grande modelo brasileiro de como é possível desenvolver um complexo produtivo em torno de uma empresa pública - com benefícios para a economia e para a sociedade - é o da Petrobrás, por meio de seu programa de apoio à fabricação nacional, que é representado pela rede de fornecedores que criou no Brasil e pelas empresas privadas que viabilizou na área da petroquímica. Mas temos, também, um bom exemplo na área da saúde, que ficou esquecido durante a onda neoliberal que assolou o Brasil nas últimas décadas: a Central de Medicamentos (Ceme), que foi criada em 1971 como órgão autônomo do então Ministério da Previdência e Assistência Social, diretamente subordinado ao ministro da pasta e com jurisdição sobre todo o território nacional. A Ceme, ambiciosamente, tinha como finalidade "promover e organizar o fornecimento - por preços acessíveis ou a título gratuito - de medicamentos a quantos brasileiros não pudessem adquiri-los a preços comuns do mercado". O modelo então utilizado era o de gestão pública direta e centralizada, por meio de um órgão específico responsável pela emissão de diretrizes e pela participação direta em sua execução, o que representa um equívoco de governança. Premida pelas restrições impostas ao administrador público e acuada por pressões políticas patrocinadas por interesses privados, a Central de Medicamentos foi afetada por uma permanente instabilidade em sua gestão: em 26 anos de existência, a Central teve 15 presidentes e sofreu diversas alterações de vinculação, do que resultaram situações de grave desabastecimento do mercado nacional de medicamentos. Como geralmente ocorre no Brasil, em vez de corrigirem os problemas atacando de frente suas reais causas, a decisão governamental foi "retirar o sofá da sala". Assim, em 1997 foi extinta a Central de Medicamentos, com a transferência de suas atribuições para diversos órgãos do Ministério da Saúde. A despeito de todos esses fatos, a Central de Medicamentos desempenhou um relevante papel no processo de desenvolvimento industrial da química fina brasileira ao longo dos anos 80. Naquela época, com o apoio do Conselho de Desenvolvimento Industrial (CDI), a indústria farmoquímica e farmacêutica nacional foi alvo de investimentos privados que superaram a casa de US$ 1 bilhão entre 1984 e 1990. Essa política industrial, competentemente desenvolvida pelo governo brasileiro na segunda metade da década de 1980, certamente serviu de modelo para o processo de estruturação da indústria farmoquímica do Leste Asiático, que nessa época era incipiente e hoje tem na Índia, por exemplo, um grande player internacional. O que gerou a defasagem atualmente existente entre o Brasil e os Tigres Asiáticos (Hong Kong, Cingapura, Coreia do Sul e Taiwan) na química fina foi a tão conhecida descontinuidade administrativa brasileira. A política industrial para a química fina brasileira durou cinco anos, enquanto nos países asiáticos ela permanece vigente até os dias atuais. Precisamos recuperar o terreno perdido, aprendendo com as lições do passado e aprimorando o nosso modelo. A empresa pública Farmanguinhos, assim formada, poderá se constituir num modelo para parcerias público-privadas regionais, de caráter industrial, na área de produtos para a saúde, mobilizando o poder de compra do Estado em benefício da autossuficiência do País em medicamentos essenciais. A empresa poderá, ainda, vir a ser também um agente pioneiro para testar industrialmente e modelar as inovações tecnológicas, implementando-as em parcerias público-privadas, como ocorreu no recente desenvolvimento do medicamento Efavirenz nacional, bem como liderar projetos de exportação constituídos sob esse modelo para países menos desenvolvidos na área da saúde pública. Além disso, a empresa contribuirá para a preservação do domínio público nacional em conhecimento científico e tecnológico, mediante a colaboração com o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) na análise dos pedidos de patentes de fármacos e farmacêuticas. É importante destacar que não se busca substituir o produtor privado pelo Estado - longe disso e bem ao contrário -, mas sim potencializar a atuação de ambos por meio de parcerias público-privadas que não sejam desfiguradas por influências político-partidárias e por outros desvios de função. E que essas parcerias público-privadas tenham por objetivo maior atender aos programas de interesse nacional na área da saúde pública. *Nelson Brasil de Oliveira é vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria de Química Fina (Abifina)