BRASÍLIA - As últimas movimentações da empresa que administra o Aeroporto Internacional de Viracopos (SP), em processo de devolução desde 2019, aumentaram a percepção no governo e no setor de que a concessionária quer manter o terminal, frustrando o plano de fazer um novo leilão. Para chegar a esse resultado, a Aeroportos Brasil Viracopos (ABV), no entanto, não deverá ter vida fácil na Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Segundo apurou o Estadão/Broadcast, técnicos têm afirmado que o órgão regulador está comprometido em fazer dar certo o processo de devolução, resultando em um novo leilão. Esse certame é prometido pelo Ministério da Infraestrutura desde o início do governo Bolsonaro, mas atrasos no processo de relicitação e questionamentos da ABV travaram a programação.
Nos bastidores, fontes próximas à concessionária afirmam que manter a operação do terminal até o fim do contrato não é um objetivo final da ABV, mas que, caso aconteça, será um resultado satisfatório para o consórcio, que une TPI (Triunfo Participação e Investimentos), UTC Participações e Egis Airport Operation. No ano passado, pela primeira vez, a administradora de Viracopos registrou um resultado positivo, consolidando a vantagem que o terminal, forte em transporte de cargas, teve durante a pandemia da covid-19.
A situação em Viracopos, já classificada como uma “novela” no setor, obrigou o governo federal a prorrogar por mais dois anos o prazo para transferir o ativo para outra concessionária, o que será feito apenas após um novo leilão. O campo da disputa, que pode eventualmente até parar na Justiça, se dá no valor de indenização que o governo terá de pagar à ABV, confirmada a sua saída do terminal.
Apesar de a concessionária dever taxas e multas calculadas em R$ 1,2 bilhão, a saída antecipada da operação dá direito à indenização por investimentos feitos no terminal. A ABV ainda alega ter direito a reequilíbrios contratuais que já foram rejeitados administrativamente pela Anac. É por meio da discussão sobre esses valores que, na visão de técnicos envolvidos no processo, a concessionária atrasa o processo de relicitação, não tendo uma postura ágil nas etapas de arbitragem e auditoria. Procurada, a ABV afirmou que cumpriu todos os prazos para entrega de documentação estipulados pelo governo.
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Na Anac, duas questões principais estão em jogo. A principal delas é que, na avaliação da agência, é preciso reforçar ao setor que as concessionárias devem cumprir contratos, e não recorrer sempre a tentativas vistas como não justificadas de reequilíbrio dos negócios. A mensagem é de que, se não cumprirem os contratos, irão perder suas concessões. Do contrário, o País estaria fazendo o que investidores externos receavam sobre o mercado brasileiro no início das concessões aeroportuárias.
O outro ponto colocado no órgão regulador é que, de acordo com a lei das relicitações, a adesão ao processo é “irrevogável e irretratável”. O temor é de que, se o poder público ceder, o instrumento seja banalizado, e usado como um período para as concessionárias “arrumarem a casa” e depois permanecerem com o projeto. O processo de relicitação - que em Viracopos já dura dois anos - suspende obrigações de investimento que estão a vencer.
Vantagens
A ABV, por outro lado, argumenta que um novo leilão do ativo seria duplamente desvantajoso à União. Primeiro, porque, na visão da concessionária, o valor de indenização que será pago a ela é possivelmente “expressivo” - como classificou em carta enviada ao governo no fim de maio.
Em segundo lugar, vem a alegação de que o novo projeto de licitação de Viracopos não seria tão bom quanto a atual concessão, reduzindo, por exemplo, o número de pistas a serem administradas pelo parceiro privado. Quem defende o atual projeto diz exatamente o contrário: que a nova modelagem é mais vantajosa por incorporar modernizações regulatórias e de engenharia.
A concessionária também reclama que não foi atendida pela Anac em uma série de pedidos de reequilíbrio do contrato. O principal deles se refere a desapropriação de áreas que seriam entregues à ABV para expansão do aerotropolis, e que o consórcio diz ter recebido apenas 20% do previsto, frustrando o projeto comercial do terminal.
Sobre o montante da indenização, contudo, a avaliação do poder concedente é de que o ágio no novo leilão de Viracopos deve ultrapassar o que será devido à ABV. A concessionária calcula que tem a receber cerca de R$ 5 bilhões por investimentos. O projeto de novo leilão enviado ao TCU estima uma outorga inicial (taxa paga ao governo para administrar o terminal) de R$ 3,4 bilhões, mas a expectativa é que a disputa pelo aeroporto seja acirrada, o que pode pelo menos dobrar esse valor.
O montante final só será completamente fechado, contudo, quando o processo arbitral entre Anac e Viracopos tiver fim. Atualmente, a arbitragem discute multas aplicadas à ABV e reequilíbrios exigidos pela concessionária. Futuramente, já é esperado que o valor da indenização também vá para arbitragem, após a Anac fechar os cálculos de quanto entende que deve à ABV.
Procurada, a Anac afirmou que a apuração do montante devido à concessionária por investimentos não amortizados é objeto de processo administrativo específico. “Uma vez que o processo ainda se encontra em andamento no âmbito da Agência, ainda não é possível estimar de forma razoável o valor final que será levantado em favor da Concessionária”, disse a agência, acrescentando que as arbitragens em andamento hoje dizem respeito a processos judiciais preexistentes entre concessionária e Anac. “Tendo em vista que não há decisão administrativa sobre o tema, a indenização ainda não é discutida em arbitragem”, afirmou a Anac.
Na Justiça
A concessionária que administra o aeroporto de Viracopos (SP) vai brigar para manter a operação do terminal até que o governo pague 100% da indenização ao consórcio, valor que deverá ser completamente fechado - incluindo os montantes discutidos em arbitragem - apenas em 2023.
A ABV reclama que o governo mudou as “regras do jogo durante a partida” ao prever essa repartição e, por isso, atua no Tribunal de Contas da União (TCU) para receber todo o valor da indenização antes de deixar Viracopos.
Técnicos do Ministério da Infraestrutura e da Anac, por outro lado, pontuam que a divisão está definida no próprio aditivo de relicitação assinado pela concessionária em 2020.
Ele prevê que os valores deverão ser pagos até o início do novo contrato de parceria, sem prejuízo de outros montantes a serem apurados e pagos “posteriormente”, resultados, por exemplo, de decisão judicial e arbitral. Esse entendimento foi reforçado em emenda aprovada na Medida Provisória do Voo Simples, convertida em lei neste ano. O texto estabelece que o procedimento de cálculo de indenização e sua conferência não impedem a nova licitação do ativo.
Mas fontes próximas à ABV alegam que esse aval para pagamentos posteriores só valeria para disputas que não estavam no radar do governo e da concessionária quando o aditivo de relicitação foi assinado. Dizem ainda que, inicialmente, o pagamento da indenização seria feito apenas com os recursos de outorga do novo leilão e que, portanto, a possibilidade de a União bancar uma parte do ressarcimento com recursos do Tesouro seria novidade. Integrantes do governo e da Anac, no entanto, rechaçam essa interpretação.
Outro argumento colocado é de que aguardar todo o processo de arbitragem inviabilizaria um novo leilão do ativo, mantendo o aeroporto por anos sob o ônus de um processo de devolução. Na outra ponta, a concessionária ventila desde já que só seria possível aferir se a relicitação é vantajosa à União a partir da conclusão da arbitragem, ponto que também opõe o consórcio e o poder concedente.
O conflito ganhou um terceiro personagem no ano passado, quando o TCU começou a discutir os processos de relicitação por meio do caso do aeroporto de São Gonçalo do Amarante (RN), em devolução pela Inframerica desde 2020. O projeto do novo leilão do terminal de Natal já está há um ano na Corte de Contas sem ter sido julgado, justamente em razão da controvérsia sobre o pagamento da indenização.
Alterações no TCU
Segundo apurou o Estadão/Broadcast, uma das possibilidades que foram estudadas no gabinete do ministro Aroldo Cedraz, relator do processo sobre São Gonçalo, seria de apenas recomendar que o governo aguardasse o fechamento do valor de indenização (finalizada auditoria independente, aprovada pela ANAC e TCU) para publicar o novo edital de leilão, mas indicando que para os próximos ativos, o que incluiria Viracopos, esse passo a passo funcionaria como uma determinação. Questionado, o ministro informou ao Estadão/Broadcast, por meio da assessoria do TCU, que está avaliando “as possíveis alterações no voto e acórdão” após a sanção da lei do Voo Simples. A Corte também respondeu que não há previsão de quando os processos de São Gonçalo e Viracopos - relatado pelo ministro Vital do Rêgo - serão levados a julgamento.
Há alguns dias, a ABV foi aceita como interessada no processo da relicitação de Viracopos no TCU. Segundo apurou o Estadão/Broadcast, a concessionária já sugeriu ao tribunal que somente concessionárias que aceitem aderir ao regramento previsto na lei do Voo Simples sejam submetidas a divisão de valores controversos e incontroversos. As que não acatarem, aguardariam o recebimento de toda a indenização para sair do ativo. Isso abriria espaço para o caso de São Gonçalo ter uma resolução rápida, como quer a Inframerica, sem vincular o processo de Viracopos. Para técnicos da Anac, isso não faria sentido porque a repartição já está prevista no termo aditivo assinado pela ABV - ou seja, não haveria sido uma inovação para ser ‘aceita’ pelas empresas.