“Isso não acaba, a história nunca acaba”, afirma Nadja Gomes, auxiliar de serviços gerais de 46 anos, que há quatro convive com o trauma vivido por ela e pela filha, hoje com 20, quando dois homens invadiram e atacaram alunos, professores e funcionários da Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano. “Só quem passou, viveu e ainda vive isso, sabe como é.”
Nadja e outros cinco responsáveis por ex-alunos do colégio receberam o Estadão no salão de uma igreja, em Poá, para contar como tem sido a vida dos sobreviventes do massacre. O grupo integra uma Comissão de Pais formada por 15 pessoas e responsável por representar mais de 300 outras cujos filhos estudavam na Raul Brasil durante o massacre que deixou dez pessoas mortas, incluindo ambos os autores, em 13 de março de 2019.
“Tudo começou porque não tínhamos informação do que estava acontecendo depois da tragédia. Todo mundo ia para a porta da escola, mas ninguém nos dava atenção”, conta Fábio Vilela, ex-agente de segurança da Fundação Casa cujo filho, na época com 16 anos, também estudava no colégio.
A comissão, contam, foi criada de forma orgânica para intermediar o diálogo entre pais, escola e Estado nos dias, semanas e meses após o ataque. Tanto naquela época como hoje, quando alguns deles ainda têm filhos matriculados na Raul Brasil ou em outras escolas da região, a demanda do grupo continua a mesma: mais segurança e apoio psicológico à comunidade escolar, que ainda sofre com o trauma vivido naquela manhã.
Eles dizem que os primeiros sinais de que a comissão seria necessária veio uma ou duas semanas após o ataque, quando as aulas foram retomadas no Raul Brasil. “A gente esperava uma segurança maior, pessoas capacitadas lá dentro, mas nem os professores estavam preparados”, afirma o pastor Sérgio Luciano de Souza, de 45 anos. “Simplesmente limparam e pintaram”, reforça a esposa Andreia Moreira, de 49 anos.
Cada um dos seis pais presentes na igreja tem alguma história de negligência do Estado e/ou da Raul Brasil com os filhos ou com eles mesmos no período pós-ataque. O mais grave, consideram, foi o clima de falta de segurança que permaneceu e o descaso com o estado psicológico dos alunos quando chegou a hora de voltar às aulas no mesmo lugar que foram ameaçados de morte.
Nadja conta que, duas semanas após voltar à escola, sua filha teve uma crise de pânico e pediu para sair da sala. “Ela foi barrada no corredor pela inspetora, que chamou o ataque dela de ‘frescura’ e disse que ‘já foi um mês do massacre’ e ela ‘tinha que aguentar’. Se fizeram com a minha, com quantos outros não fizeram?”
“Muita criança teve ataque de pânico no meio da sala de aula”, diz Adão Rojo, inspetor de qualidade hoje com 41 anos. Sua esposa Liona Rojo, de 45 anos, afirma que a própria filha teve uma crise de ansiedade quando voltou à escola: “Mas eu ligava lá e ninguém atendia. A resposta de sempre era que estava ‘tudo sob controle’.”
União e acolhimento
Da mesma forma que os pais precisaram se unir em uma comissão para ajudarem uns aos outros, os estudantes que continuaram matriculados na Raul Brasil encontraram acolhimento entre si. O atendimento psicológico e gratuito dado aos sobreviventes, dizem, demorou para chegar e só veio após muita cobrança. Ainda assim, não era o suficiente para todos os alunos, pais e professores.
“Os psicólogos que o Estado arranjou não estavam preparados para o tamanho do horror que iriam ouvir”, diz Liona. Adão afirma que muitos dos profissionais dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) direcionados para ajudar os alunos a lidar com o trauma não deram conta da demanda: “Com cada um ali dando a sua experiência do que passou, teve psicólogo que surtou. Alguns se afastaram e pediram psicólogos para eles mesmos”.
A maioria dos alunos que vivenciou o ataque preferiu continuar no Raul Brasil, ao mesmo tempo em que ouviam histórias de bullying com os amigos que foram transferidos para outros colégios.
“Meu filho disse: ‘Mãe, sabe por que a gente não quer mudar? Se estourar alguma coisa, a gente vai se assustar. E é onde vamos sofrer o bullying por sentir medo’”, conta Andreia. “Ali, eles tinham acolhimento entre eles que viveram a situação. Porque é algo que você leva para o resto da vida.”
Nadja lembra com desespero do dia em que houve uma das primeiras reuniões entre a comissão e a escola. A filha, afirma, desenvolveu um problema cardíaco e continuava sem atendimento psicológico, com sinais de depressão que, mais tarde, foram confirmados no diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático complexo. “Quem me socorreu e acolheu foram eles (da comissão)”, diz, incapaz de controlar o choro: “É como se eu vivesse tudo de novo”.
Aos poucos, a comissão se organizou entre si e com os outros 300 pais, mães e responsáveis de alunos. Mais do que cobrar ações, eles passaram a se revezar para vigiar o portão da escola, levar e buscar os estudantes na aula e trocar informações. “A gente não queria ir contra a gestão da escola, queríamos só ajudar. Fomos chamados até de comissão do mal, pra você ter uma ideia”, diz Sérgio.
O atendimento psicológico tão cobrado pela comissão finalmente veio. Mas as sessões, que deveriam durar um ano, foram interrompidas depois de três meses pela pandemia do coronavírus. “Minha filha ficou um ano dentro de casa chorando todos os dias. Não tinha como ver os amigos, não tinha conforto de uma pessoa próxima”, lembra Liona.
Em nota, a Secretaria da Educação do Estado (Seduc) diz que “é fundamental o cuidado com a saúde mental” e que na época do ataque foi criada uma parceria com a prefeitura de Suzano para a contratação de psicólogos presenciais e que “cada setor da escola contava com um psicólogo alocado na UBS”.
A pasta ressalta que “as escolas da rede estadual estão atentas aos comportamentos dos estudantes, atuando com a escuta ativa e mediação, buscando solucionar os conflitos identificados”.
Sequelas e gatilhos
Nos meses seguintes ao massacre, o grupo conta que muitos alunos desenvolveram depressão e não conseguiam levantar da cama para ir à aula. Os pais, também fragilizados, não sabiam como agir e pediam ajuda à comissão, que ia de casa em casa conversar com as famílias.
As reações, dizem, variavam entre tristeza, desânimo, culpa, automutilação e ódio pelo ataque. Além do abalo psicológico, alguns tiveram gastrite nervosa, adicção, queda no rendimento escolar etc.
Mesmo hoje, mais de quatro ano depois, a data do ataque segue como um dos principais gatilhos. “Todo 13 de março é um novo trauma para a minha filha”, diz Liona. Nadja concorda: “No último, eu falei bom dia pra minha filha e ela só respondeu ‘Mãe, é dia 13′. Eu demorei um minuto para lembrar do que ela estava falando e quando cheguei no quarto ela estava chorando.”
Outro fator agravante chega toda vez que um novo ataque em escola é noticiado, como o da última segunda-feira, 27, registrado na capital paulista. “Eles evitam ver. Mas quando ficam sabendo, é como se revivessem tudo de novo”, diz Liona, admitindo que isso também abala seu psicológico.
“Quando a gente vê uma coisa dessas, a gente sabe o que acontece nessas escolas. A gente tem noção e fica apreensivo. Entendemos a dor daquele povo e sabemos o que eles estão passando.”
Jussara Melo, de 59 anos, era professora de Espanhol no Raul Brasil quando aconteceu o ataque. Desde aquele dia, ela não consegue mais lecionar e precisou abandonar a carreira. “Eu não aceitei aquelas mortes. Fiquei decepcionada comigo mesma por não ser tão forte como meus outros colegas, e não entendia isso”, conta.
“Mesmo passando tanto tempo, nossos filhos continuam não estando bem. Porque é colocar uma reportagem e lembrar alguma coisa que volta tudo. Aí eles ficam com depressão, com medo, nervosos, com raiva, desejam maldade da outra pessoa”, completa Nadja. “Eu tenho medo de a minha filha fazer alguma besteira.”
Esperança de soluções possíveis
A notícia da proatividade demonstrada pela Comissão de Pais da Raul Brasil se espalhou pela região. Hoje, dizem, pais de alunos de outros colégios buscam apoio e conselhos do grupo para lidar com problemas escolares e cobrar ações do poder público.
“O (Raul Brasil) ficou lindo. Mas o problema não é o que está vindo de fora, é o que tá dentro: um aluno que pode entrar com arma branca ou revólver de novo a qualquer momento”, diz Sérgio.
Para o grupo, só é possível impedir que novos ataques em escolas aconteçam se houver investimento em dois pontos principais: reforço na segurança e acompanhamento da saúde mental de alunos e professores, as mesmas bandeiras que levantam desde o início.
“Pelo menos na porta das escolas precisa ter segurança reforçada”, diz Fábio. O grupo aponta que outras medidas possíveis são a presença de um “tio da segurança” treinado para trabalhar em ambiente escolar, a implementação de detector de metais, catraca nas entradas e câmeras de vigilância.
A comissão tem planos de conseguir uma reunião com o novo secretário da Educação, Renato Feder, e entregar pessoalmente essas sugestões. “Nós, do Raul Brasil, estamos resolvendo problemas de outras escolas”, diz Fábio. “Nos tornamos referência.”
Segundo a Seduc, o governo do Estado lançou ainda em 2019 o Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar (Conviva SP), que visa a “identificar vulnerabilidades de cada unidade escolar para a implementar ações proativas de segurança”. A pasta reitera também que “promove encontros formativos” junto aos Coordenadores de Organização Escolar, “cujas pautas são voltadas à promoção da cultura da paz, à valorização da vida e à mediação de conflitos”.